Índice
História clínica
Paciente do sexo feminino, parda, 10 anos, admitida em setor pediátrico de hospital terciário público com quadro de movimentos involuntários iniciado de forma insidiosa há 15 dias (apresentando piora ao longo desse período) e agitação psicomotora. A genitora da paciente relata que os movimentos predominam no hemicorpo esquerdo, desaparecendo durante o sono e piorando quando a paciente se agita. Refere ainda que a paciente vem apresentando inquietação e comportamento agressivo. Nega presença de febre durante esse período e ocorrência anterior de quadro semelhante na paciente ou em outros familiares. A genitora relata que a gestação da paciente sucedeu sem intercorrência, nega consanguinidade e refere que a paciente nasceu a termo de parto cesáreo por desproporção céfalo-pélvica e que apresentou desenvolvimento neuropsicomotor adequado. Paciente apresenta alergia a dipirona e asma intermitente, fazendo uso de salbutamol 100 mcg em aerossol durante as crises; nega uso de outras medicações. Refere ainda que a paciente apresentou ao menos 4 episódios de faringoamigdalite no último ano, tendo feito uso de amoxicilina sem aval médico.
Exame físico
Sinais vitais
• T: 36,1º C;
• FC: 90 bpm;
• FR: 18 irpm.
Ectoscopia: paciente em bom estado geral, acordada, orientada em tempo e espaço, eupneica em ar ambiente, afebril, acianótica, anictérica, hidratada e normocorada.
Aparelho cardiovascular: ritmo cardíaco regular em 2 tempos, bulhas normofonéticas, presença de sopro holossistólico em foco mitral (2+/6+).
Aparelho respiratório: tórax simétrico sem retrações ou abaulamentos, murmúrio vesicular presente em ambos hemitóraces, sem ruídos adventícios.
Abdome: plano, ruídos hidroaéreos presentes, normotimpânico, flácido, indolor a palpação, sem massas palpáveis ou visceromegalias.
Extremidades: aquecidas e bem perfundidas, pulsos periféricos palpáveis, amplos e simétricos, sem edemas.
Osteoarticular: ausência de sinais flogísticos em articulações.
Neurológico: presença de movimentos coreoatetóticos com predomínio em hemicorpo esquerdo. Disartria leve, força muscular preservada e simétrica (grau V), reflexos profundos simétricos, sinal de Hoffman ausente bilateralmente, ausência de clônus de pé e patela, reflexo cutâneo-plantar em flexão (sinal de Babinski ausente), discretamente hipotônica, sem alteração de sensibilidade. Ausência de sinais de irritação meníngea.
Psiquiátrico: Humor irritado, apresentando agitação psicomotora e atenção diminuída.
Exames complementares





Exames de imagem
Ecocardiografia Transtorácica
Presença de refluxo mitral discreto e refluxo aórtico mínimo. Demais achados dentro dos padrões da normalidade.
Tomografia de Crânio sem Contraste

Parênquima cerebral com morfologia e coeficientes de atenuação normais. Sem evidência de focos de hemorragia aguda intraparenquimatosa; coleções líquidas extra-axiais acima ou abaixo do tentório. Sulcos e cisternas encefálicas preservadas. Ventrículos laterais e III e IV ventrículos com morfologia, dimensões e topografia normais.
QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO
1. Semiologia e diagnósticos diferenciais de coreias.
2. Diagnósticos neurológicos sindrômico, topográfico e etiológico.
3. Quais os critérios diagnósticos para a doença apresentada no caso?
4. Qual a conduta mais adequada para este caso?
5. Importância da avaliação clínica e complementar pormenorizada.
6. Evolução e prognóstico dessa doença. ?
Discussão
A paciente apresenta um caso típico de coreia de Sydenham, também denominada como coreia reumática ou coreia menor, a qual é uma das principais manifestações clínicas da febre reumática aguda e também é a forma mais comum, quase exclusiva, de coreia adquirida na infância.1,3 Trata-se de um distúrbio do movimento caracterizado pela coreia, labilidade emocional e hipotonia.1 A palavra coreia é derivada do termo grego para a dança (khoros, na verdade, um tipo particular de dança circular), sendo um distúrbio do movimento hipercinético caracterizado por contrações involuntárias, aleatórias e irregulares, que transmitem uma sensação de inquietação ao observador.2,4
Um grande número de distúrbios neurológicos pode causar coreia e seu diagnóstico pode ser um desafio. A coreia pode estar presente em uma série de distúrbios genéticos, ou ainda estar associada a distúrbios autoimunes, metabólicos ou ao uso de certas drogas e hormônios.4,2 Subsídios para o diagnóstico de coreia podem ser encontrados em características familiares, história médica e exame clínico minucioso.4 Embora a coreia de Sydenham esteja claramente relacionada à infecção estreptocócica do grupo A, sua patogênese não é completamente compreendida. Do ponto de vista fisiopatológico, os dados disponíveis sugerem envolvimento dos gânglios basais e estruturas corticais.1,2
O início de coreia de Sydenham é tipicamente insidioso, mas pode ser abrupto. Os sintomas são tipicamente contínuos durante a vigília, pioram com a tentativa de movimento e melhoram com o sono. A coreia geralmente é generalizada, entretanto pode haver predomínio em um lado em 20% a 30% dos casos, apresentando-se como uma hemicoreia.1,5 Nota-se que o restante do exame neurológico e do estado mental geralmente são normais. As funções dos nervos cranianos não são afetadas. Não ocorre alterações sensoriais e os reflexos patelares não são afetados ou podem ser “desligados” devido a uma combinação de hipotonia e contração sustentada. A marcha pode estar cambaleando ou instável devido a intrusões coreicas. A coreia de Sydenham é frequentemente associada com uma variedade de sintomas psiquiátricos, incluindo irritabilidade, depressão, comportamento impróprio, alterações da atenção e sintomatologia obsessivo-compulsiva.1
A avaliação diagnóstica de pacientes com suspeita de coreia de Sydenham deve ser direcionada para o diagnóstico de febre reumática. Isso inclui testes da infecção pelo estreptococo do grupo A e avaliação cardíaca para investigação de cardite, como foi encontrada na paciente do caso clínico. Além disso, os marcadores inflamatórios, proteína C reativa (PCR) e velocidade de hemossedimentação (VHS) devem ser medidos no momento da apresentação inicial. Em crianças com características atípicas, a análise do líquido cefalorraquidiano, a neuroimagem ou testes adicionais podem ajudar a excluir outras causas da coreia.1 Evidências de uma recente infecção estreptocócica do grupo A podem ser difíceis ou impossíveis de documentar devido ao longo período de latência entre a infecção estreptocócica incitante e o início da coreia.5 Em contraste com a cardite e artrite, que normalmente ocorre dentro de 21 dias, o início da coreia geralmente ocorre de um a oito meses após a infecção inicial.2 O diagnóstico de febre reumática baseia-se nos critérios de Jones, que foram revisados pela American Heart Association em 2015, apresentados na tabela a seguir:



A paciente do caso teve seu diagnóstico fechado para febre reumática, possuindo dois critérios maiores e um menor dos critérios de Jones revisados. Entretanto, é necessário frisar que existem situações que permitem o diagnóstico de febre reumática fora dos critérios de Jones, como no caso de coreia de Sydenham isolada ou em casos de indivíduos com cardite reumática crônica e indolente com início insidioso e progressão lenta.5
Em pacientes que apresentam características clínicas consistentes com coreia de Sydenham, a neuroimagem normalmente não fornece informação adicional de diagnóstico ou prognóstico. No entanto, a neuroimagem pode ser necessária para excluir outras causas de coreia em pacientes com achados clínicos atípicos, com fatores de risco para doença cerebrovascular ou na ausência de evidência de suporte de infecção estreptocócica. A tomografia computadorizada geralmente não é útil na avaliação. Os achados de ressonância magnética são variáveis e não há achados patognomônicos, sendo o resultado normal em muitos pacientes.1
No tratamento sintomático para coreia, utiliza-se tipicamente um agente de bloqueio do receptor de dopamina (D2) de alta potência e em baixa dose. Em casos mais leves, outras alternativas incluem fenobarbital, ácido valproico, carbamazepina e diazepam, entre outros. Em casos moderados a graves, a supressão com corticosteroides é uma opção de tratamento e pode encurtar a duração dos sintomas. Os corticosteroides como a prednisona parecem encurtar o curso da coreia. Em casos graves, pode ser utilizada a imunoglobulina intravenosa ou plasmaférese. Contudo, os dados sobre o uso da imunoglobulina e plasmaférese nesses casos são limitados.1 Na paciente do caso foi utilizado haloperidol 2 mg/ dia, ácido valproico 250 mg/dia, diazepam 0,7 mg/dia e prednisona 20 mg/dia.
A coreia de Sydenham normalmente melhora gradualmente, com uma duração média de 12 a 15 semanas. A recuperação completa ocorre em quase todos os pacientes, mas os sintomas ocasionalmente persistem por dois anos ou mais. A maioria das recidivas deve-se a reinfecções estreptocócicas do grupo A. Os pacientes que não recebem profilaxia antibiótica contínua apresentam maior risco de recidivas e, em alguns relatos, a recorrência foi observada apenas em tais pacientes.1
Diagnósticos diferenciais


Habilidades/competências
• Realizar um exame neurológico do paciente com distúrbio do movimento;
• Caracterizar e diferenciar os distúrbios do movimento hipercinéticos;
• Elaborar diagnósticos diferenciais para coreia;
• Conhecer as indicações de exames complementares para investigação de um caso de coreia de Sydenhyam;
• Aprender os Critérios de Jones Revisados;
• Distinguir as formas de tratamento disponíveis para coreia de Sydenhyam;
• Conhecer a evolução e prognóstico dessa doença.
Dicas práticas
• A coreia, a atetose e o balismo frequentemente coexistem no mesmo paciente e são tidos como sendo parte do mesmo espectro coreiforme.
• É importante compreender que a cardite subclínica (detectada apenas ao ecocardiograma, na ausência de sopros ou outras manifestações clínicas) deve ser investigada num paciente com suspeita de Coreia de Sydenhyam.
• Paciente com história de febre reumática devem receber antibioticoprofilaxia contra infecções estreptocócicas do grupo A, visando prevenir novos surtos.
• Sintomas psiquiátricos estão presentes em pacientes com coreia de Sydenham comumente, sendo de fundamental importância sua valorização e identificação.