Casos Clínicos: Coréia de Sydenham

Índice

História clínica

FSS, 9 anos, feminina, parda, estudante, natural e residente em município do interior, foi levada ao ambulatório de neurologia pela mãe com a queixa de que a filha estava com “nervosismo, voz diferente e movimentos anormais”. Há cerca de 15 dias a professora observou o nervosismo da menina, choro fácil, epistaxe, frequentes movimentos anormais da cabeça, braços, alteração da voz e emissão de grunhidos. Reclamou à mãe sobre a indisciplina da criança. Há 2 dias a menina não foi a escola devido ao agravamento dos sintomas e por ter se tornado alvo de comentários dos colegas. Mãe relatou dificuldades em atividades da vida diária, piora dos movimentos com o estresse e melhora ao dormir. Histórico de faringoamigdalite há mais de 30 dias tratada com amoxicilina por 5 dias. A criança manteve choro constante, irritada, com alteração do comportamento, com períodos de stress crescente e sem motivo, até mesmo no momento da consulta.

Exame físico

Geral: Bom estado geral; consciente, orientada em tempo e espaço; afebril, normocorada; hidratada; acianótica.

Sinais vitais: FC: 120 bpm; FR: 16 irpm; PA: 110 x 70 mmHg; Temperatura: 36ºC; saturação de 97%.

Neurológico: movimentos coreicos predominantes em MMSS e face; tiques; “Sinal do pronador”; mão coreica; sensibilidade superficial, vibratória e proprioceptiva preservada; força e tônus normal, reflexos ativos e simétricos; equilíbrio preservado.

Cardíaco: Ritmo cardíaco regular, taquicárdico, 2 tempos, bulhas normofonéticas, sopro mesossistólico (2+/6+) em foco mitral.

Pulmonar: tórax sem retrações e abaulamentos; expansibilidade e frêmito tóraco-vocal normais; som claro-pulmonar; murmúrio vesicular fisiológico sem ruídos adventícios.

Abdome: plano, sem retrações, abaulamentos, lesões e cicatrizes; ruídos hidroaéreos normais; som timpânico fisiológico; indolor à palpação superficial e profunda; ausência de circulação colateral, nódulos, massa ou visceromegalias.

Membros superiores e inferiores: pulsos palpáveis, cheios, simétricos e regulares. Sem edema ou alterações articulares.

Exames complementares

ECG: ritmo sinusal normal, sem alterações (Figura 1).

Ecocardiograma: Refluxo valvar e tricuspídeo mínimo; derrame pericárdico discreto (Figura 2).

Rx de tórax: normal.

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1. Com base na história e exame clínico, qual o diagnóstico provável?

2. Quais os achados clínicos característicos desta doença?

3. Quais os principais diagnósticos diferenciais?

Discussão

A história de faringoamigdalite, associada aos movimentos involuntários, irregulares e rápidos da paciente, bem como a instabilidade emocional fortificam a hipótese diagnóstica de Coréia de Sydenham (CS). Este distúrbio neurológico é a causa mais comum de coreia infantil aguda adquirida no mundo.1,7,9 Aparece geralmente 6-8 semanas4 após infecção por Estreptococo beta hemolítico do grupo A (EBHA), embora possa surgir tanto antes como anos após o quadro infeccioso.2 Faz parte do espectro clínico da febre reumática (FR) em cerca de 10-20% dos pacientes, sendo um dos critérios maiores de Jones (Tabela 1) que, excluídos outros diagnósticos diferenciais, define a doença, mesmo isoladamente2,12. Apresenta incidência predominante entre 8 e 9 anos de idade e no sexo feminino.1,2 O início é insidioso, apresentando perda da coordenação motora para segurar objetos, bem como atos desajeitados.3 A piora é progressiva, surgindo movimentos espasmódicos3 que fluem de um lado ao outro do corpo,1 além de hipotonia, disartria, ataxia e dificuldade para escrever2 . A CS dura por volta de 2-3 meses, podendo prolongar-se por mais tempo2 . Mãos, pés, face, pálpebras, lábios e língua são mais atingidos pela impersistência motora, refletindo no surgimento de caretas, sorrisos, franzimento, fala irregular e língua “dardejante”1 ou semelhante a um “saco de vermes” quando protraída3 . Também pode apresentar deambulação comprometida3 , caligrafia ilegível; mão em aspecto semelhante de colher, com flexão do punho e hiperextensão dos dedos: “mão coreica’’3 e, quando elevadas acima da cabeça, podem pronar: “sinal do pronador”; incapacidade de sustentar as contrações ao apertar a mão do examinador: “aperto de leiteira”7 ; movimentos bilaterais do corpo, e hemicoreia em certos pacientes. Ressalta-se que os movimentos cessam durante o sono, e acentuam-se com estímulos estressantes ou solicitação para realizar vários movimentos simultaneamente. Frequentemente as desordens motoras são mascaradas pelo paciente, que completa os fragmentos de movimento parecendo ser propositais, o que corresponde a paracinesias.7 Alterações sensoriais e do trato piramidal não são observados.3

* Populações de baixo risco são aquelas com incidência de Febre reumática aguda ≤2 por 100.000 crianças em idade escolar ou prevalência de doença cardíaca reumática em todas as idades ≤1 por 1.000 habitantes por ano. Populações de risco moderado/alto são aquelas com incidência de Febre reumática aguda > 2 por 100.000 crianças em idade escolar ou prevalência de doença cardíaca reumática em todas as idades > 1 por 1.000 habitantes por ano. + Cardite subclínica indica valvulite ecocardiográfica Fonte: American Heart Association, 2015(10) (adaptado)

A instabilidade emocional é característica importante do início da CS3 , que dificulta o diagnóstico. Irritação, choro fácil, perda do apetite, desatenção nas atividades escolares, ou mesmo perturbação psíquica severa são indícios desta manifestação. Tiques, transtorno obsessivo compulsivo, depressão, ansiedade e impulsividade podem compor o quadro precoce ou tardiamente.2,9

A CS é uma disfunção dos gânglios basais imunomediada. Envolve a produção de anticorpos polirreativos através do mimetismo molecular entre antígenos estreptocócicos e hospedeiros (sistema nervosa central), com formação de anticorpos antigânglios da base, os quais desencadeiam, em última instância, a liberação sináptica de dopamina.1,7 Em relação às alterações laboratoriais destaca-se que devido ao prolongado período de latência da CS os títulos de anticorpos antiestreptocócicos e as provas inflamatórios podem estar ausentes, quando aparecem a coreia.3

Sugere-se que aliado a predisposição genética de certos indivíduos, a CS pode induzir suscetibilidade à movimentos coreiformes futuros, haja vista que é comum pacientes com coréia gravídica, ou induzida por contraceptivo oral, terem histórico de coréia, inclusive CS.3

A CS pode se confundir com Distúrbios neuropsiquiátricos autoimunes pediátricos associados a infecções estreptocócicas (PANDAS).3,4,5,6,7 Eles podem levar a quadros recorrentes de coreia. Tiques motores simples ou movimentos da síndrome de Tourette também podem induzir a equívoco diagnóstico.3 Um achado cardíaco importante é a disfunção diastólica leve, constatada na paciente estudada.4

Em casos isolados de CS no espectro da FR, deve-se descartar lúpus eritematoso sistêmico, solicitando o anticorpo antinúcleo. Além do aspecto neurológico estas duas doenças assemelhamse quanto a presença de lesões dermatológicas, cardíacas, articulares e febre.3 Síndrome antifosfolípide também deve ser descartada, através do Anticorpo anticardiolipina.2

O tratamento da CS é importante para evitar recorrências. O fármaco mais utilizado é o ácido valproico, que foi prontamente iniciado na paciente em questão. Corticoides (como a prednisolona) e outros anticonvulsivantes como a carbamazepina podem ser tolerados.11 Em casos de refratariedade ou de coreia paralítica (raros), utiliza-se bloqueadores dos receptores de dopamina, como pimozida, risperidona e haloperidol. 4,7,9,11

Sequelas neurológicas e psicológicas como redução da capacidade cognitiva, convulsões, distúrbios comportamentais e psicose foram relatados.3

Apesar da presença isolada de CS indicar o diagnóstico de FR, devem ser investigados os demais critérios diagnósticos. No caso descrito, foram identificados valores elevados de VHS, PCR, antiestreptolisina O, um anticorpo antiestreptocócico e cardite leve, consolidando a hipótese de Febre reumática aguda recorrente, considerando que a paciente pertence a população de moderado/alto risco12. A cardite é a manifestação clínica mais importante da FR, a qual pode resultar em sequelas incapacitantes para o indivíduo, se não abordada adequadamente. Portanto foi instituído tratamento com Penicilina Benzatina 1.200.000 UI IM em dose única para erradicação do EBHA. Esta deve ser a primeira medida a ser realizada em casos de FR.12

Importante ressaltar a necessidade de acompanhamento ambulatorial de pacientes com FR e CS tal como realização de profilaxia secundária para impedir recidivas do surto. A profilaxia secundária da CS é feita com penicilina benzatina de 600.000 a 1.200.000 UI, IM, a cada 21 a 28 dias.9 Já a prevenção da FR, para pacientes que apresentaram cardite leve, é realizada até os 25 anos ou até 10 anos após o último surto (o que tiver maior duração), com penicilina benzatina, IM, a cada 21 dias, 1.200.000 UI, para crianças com peso maior do que 20 kg e 600.000 UI para crianças com peso até 20 kg.12

A paciente retratada recebeu alta hospitalar após 4 dias de internação, apresentando discreta melhora dos movimentos coreicos e do comportamento, permancendo em uso de ácido valproico. Foi iniciada profilaxia a longo prazo com penicilina e encaminhada para acompanhamento ambulatorial.

Diagnósticos diferenciais principais

Objetivos de aprendizado/ competências

• Conseguir pelos sinais e sintomas decifrar fortes indícios da CS;

• Considerar que as infecções pelo EBHA são ainda desafiadoras no diagnóstico de PANDAS ou CS devido às alterações de comportamento semelhantes;

• Observar meticulosamente os movimentos caracterizando ritmo, repetição e interrupção dos mesmos.

Pontos importantes

• Uma história completa é a ferramenta mais valiosa para formular o diagnóstico preciso de uma criança que apresenta movimentos anormais;

• Priorizar idade de início e duração dos movimentos anormais;

• A labilidade emocional é uma caracterísitca inicial importante da CS, que pode surgir antes da coreia;

• Pode haver uma predisposição a movimentos coreiformes em pacientes que experimentaram a CS;

• O diagnóstico diferencial e a apresentação diagnóstica dependerão se a apresentação dos sintomas são agudos, subagudos, crônico, progressivo ou paroxístico;

• O rápido tratamento após o diagnóstico evita a recorrência de coréia ou sintomas neuropsiquiátricos;

• Os principais tratamentos farmacológicos e não farmacológicos usados nestes pacientes têm evidência científica limitada;

• Os objetivos de tratamento da coreia são: suprimir ou restringir o efeito num sistema músculo esquelético em crescimento, melhorando a qualidade de vida.

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