Índice
HISTÓRIA CLÍNICA
Paciente do sexo masculino, 40 anos, homossexual (mesmo parceiro há 4 anos) e usuário ocasional de cocaína inalatória. Foi admitido no Serviço de Emergência, com queixa de oligúria, urina escura, fraqueza, dores musculares há 24h. Há 48h da admissão tinha feito uso de cocaína inalatória, seguida de agitação psicomotora intensa, sem convulsão, perda de consciência ou febre. Negou uso de outras drogas associadas, como álcool ou anfetaminas. Referiu hepatite A há quatro meses, sem necessidade de internação hospitalar (diagnóstico confirmado por sorologia). Sem história prévia pessoal ou familiar de HAS, DM ou nefropatias.
EXAME FÍSICO
Consciente, orientado, taquipsíquico, eupneico, corado e desidratado ++/4.
PA: 150×100 mmHg; FC: 120 bpm, rítmico FR: 16 ipm; T. axilar: 36.5 o C.
Ausência de achados relevantes.
Ausência de déficits focais.
Murmúrio vesicular (MV) presente, sem ruídos adventícios.
Ritmo cardíaco regular, em 2 tempos, bulhas normofonéticas, sem sopros.
Plano, RHA +, fígado palpável sob RCD e espaço de Traube cheio.
Sem edemas.
Ausência de sinais flogísticos. Exame de força muscular limitado por dor à palpação de musculatura difusamente, maior em membros inferiores (MMII).
EXAMES COMPLEMENTARES




USG renal: Rim Direito = 13,9 cm e Rim Esquerdo = 13 cm com elevação difusa da ecotextura do parênquima, sem perda da relação cortico-medular. Biópsia Renal: discreta proliferação de células mesangiais sem expansão da matriz, alguns túbulos em necrose, outros em fase de regeneração e raros túbulos atróficos. Material amorfo, acidófilo, com reação giganto-celular ao redor, amiloide negativo. ECG: taquicardia sinusal. Ecocardiograma: normal.
PONTOS DE DISCUSSÃO
1. Qual a causa da disfunção renal apresentada pelo paciente?
2. Quais são os dados clínicos e laboratoriais que sugerem o diagnóstico da questão 1?
3. Quais os diagnósticos diferenciais possíveis?
4. Quais as principais medidas terapêuticas para este caso?
DISCUSSÃO
Trata-se de um jovem, previamente hígido, que apresentou Injúria Renal Aguda (IRA) secundária a rabdomiólise por uso de cocaína inalatória. Esse quadro é muito comum em homens, jovens, negros e após uso da substância. A rabdomiólise é uma síndrome aguda e potencialmente fatal caracterizada pela desintegração do músculo esquelético resultando em liberação de elementos da célula muscular, como mioglobinas e creatinina quinase, na corrente sanguínea e na urina. Ela pode ser induzida por exercício físico intenso, por abuso de drogas, devido a estado de mal epiléptico, traumatismos graves, cirurgia e comas prolongados, além dos casos secundários a alcoolismo, deficiência de potássio, barbitúricos, venenos, cetoacidose diabética, insolação, envenenamento por monóxido de carbono (CO) e insuficiência cardíaca congestiva.
Nesse caso, a cocaína é descrita como causa de rabdomiólise, provavelmente, devido a mais de um mecanismo: isquemia muscular por vasoconstrição induzida pela droga; toxicidade muscular direta; hipertermia e aumento da atividade muscular por agitação motora ou convulsão.1-3 A manifestação clínica clássica da rabdomiólise inclui mialgia aguda, fraqueza muscular e pigmentúria devido à mioglobinúria associadas a enzimas musculares séricas elevadas. Esse quadro é apresentado pelo paciente, mas sudorese e prostração são sinais que também podem acompanhar.
A Insuficiência Renal Aguda por rabdomiólise causada pela cocaína em nada difere das demais causas conhecidas de rabdomiólise. Ela é responsável por cerca de 5% a 7% dos casos de IRA. As causas associadas ao uso de drogas ilícitas mais frequentes são heroína e cocaína, com cerca de 20% com superdoses de cocaína complicadas por rabdomiólise. A lesão renal decorre da interação da mioglobinúria com as proteínas de Tamm Horsfall causando obstrução nos túbulos; lesão tubular proximal pelo ferro livre do pigmento “heme” e desidratação quase invariavelmente associada.4 A tríade clínica clássica é: injúria renal aguda, urina escura com cilindros granulosos pigmentados e elevação de CPK (CPK acima de 5.000 aumenta 2,4 vezes o risco de IRA). As peculiaridades da apresentação clínica da IRA por rabdomiólise são: FE Na < 1% (diferentemente das demais necroses tubulares agudas – NTA), aumento muito rápido da creatinina sérica (aproximadamente 2,5mg/dl por dia) e de potássio (acima de 1mEq/L por dia). Também ocorrem hiperfosfatemia, hipocalcemia e hiperuricemia.4
O paciente evoluiu com HAS e proteinúria que não fazem parte do quadro clínico da IRA por rabdomiólise, motivo pelo qual o paciente acabou sendo submetido à biópsia renal. Esta foi compatível com a suspeita de rabdomiolise (mioglobina com reação giganto-celular) e não evidenciou glomerulopatias, que justificassem a proteinúria, vista no sumário de urina. A proteinúria tornou-se ausente com a evolução do quadro, sem qualquer tratamento específico. A ausência de lesões glomerulares e a evolução autolimitada da proteinúria sugerem uma origem tubular e não glomerular para a mesma. A proteinúria tubular poderia ser consequente a algum grau de nefrite intersticial aguda (NIA) associada à rabdomiólise ou contaminante da cocaína. Porém o paciente não apresentou febre, rash cutâneo, eosinofilia ou infiltração do interstício renal por eosinófilos, características clínicas da NIA.
Glomerulopatias como glomeruloesclerose segmentar e focal colapsante associada ao HIV e secundárias a vírus de hepatite B e C ou a doenças autoimunes foram descartadas não só pelas sorologias negativas para os respectivos vírus, como também pela biópsia renal.
A principal medida terapêutica neste caso onde o paciente tem CPK acima de 15.000 U/L é a hidratação intravenosa agressiva com salina 0,9% (1.000ml a 2.000ml/h) para obtenção de 200 a 300ml/h de diurese até os valores de CK na urina caírem. Acredita-se que a alcalinização urinária (pH > 6,5) previne a precipitação dos pigmentos heme com as proteínas de Tamm – Horsfall e formação de cilindros. Além disso, a alcalinização minimizaria a liberação do ferro livre da mioglobina e a conversão da hemoglobina em methemoglobina, que é mais nefrotóxica.5 Dessa maneira, inibe a peroxidação lipídica e diminui o risco de hipercalemia. Outra substância que pode ser utilizada é manitol que é um diurético osmótico, expansor de volume e varredor de radicais livres. Mas ainda não existe nenhum estudo clínico prospectivo que apoie ou refute seus benefícios no manejo da rabdomiólise.6
PRINCIPAIS DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZADO/COMPETÊNCIAS
• Fisiopatologia da rabdomiólise por cocaína;
• Diagnóstico de IRA por rabdomiólise;
• Diagnósticos diferenciais de IRA em usuário de cocaína;
• Tratamento da IRA por rabdomiólise.
PONTOS IMPORTANTES
• Por definição (The Kidney Disease: Improving Global Outcomes – KDIGO) IRA em adultos é definido por um dos seguintes: a. Aumento da creatinina sérico > ou igual 0,3mg/dL dentro de 48h; b. aumento na creatinina sérica maior ou igual a 1,5x o valor de base (conhecido ou presumido) ocorrido nos últimos 7 dias; c. redução do débito urinário < 0,5mL/Kg/h por 6 horas.
• Rabdomiólise merece ser lembrada mesmo na ausência de mialgia ou de um mecanismo traumático conhecido – causas inflamatórias e iatrogênicas sempre devem pairar como alternativas para o clínico (ex.: polimiosite e miopatia estatina-induzida);8
• Episódios recorrentes de rabdomiólise após exercícios, câimbras frequentes e história familiar são pistas para o diagnóstico de miopatia metabólica oculta.