Índice
HISTÓRIA CLÍNICA
Paciente de 7 anos, sexo feminino, parda, natural e procedente de cidade do interior, previamente hígida, iniciou quadro de febre e astenia; fez uso de analgésico – dipirona sódica. Dez dias após o quadro descrito, a paciente evoluiu, com pápulas, que se tornaram vesículas e, por último, lesões bolhosas difusas em lábios e mucosa oral. Deu entrada em emergência de unidade hospitalar de média complexidade, onde recebeu hidratação e analgesia, feita também com dipirona sódica. Apresentou piora do quadro inicial com presença de febre (38,8 o C) e aumento das lesões que acometeram cerca de 90% da superfície corporal. Foi transferida para unidade hospitalar de alta complexidade onde foi iniciado antibioticoterapia com oxacilina, hidratação e analgesia com paracetamol. Transferida para o centro de terapia intensiva (CTI) para monitorização.
Três dias após entrada em CTI, paciente evolui com febre persistente (41 o C), Leucocitose com predomínio de formas jovens, radiografia de tórax (RX) com imagem de condensação à direita, queda da saturação periférica de oxigênio (SatO2 ), com necessidade de ventilação mecânica. Pressão Arterial Média (PAM) invasiva evidenciou quadro de hipotensão. Houve pouca resposta à ressuscitação volêmica realizada com soro fisiológico (esquema de 60 mL/kg em 30 minutos). Gasometria evidenciou piora global dos parâmetros, apresentando piora da oxigenação, aumento da pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2 ), queda do bicarbonato, piora da relação da pressão parcial de oxigênio e fração inspirada de oxigênio (PaO2 /FiO2 ) e queda de hemoglobina. Foi realizada intubação orotraqueal e mantida em ventilação mecânica (VM). Cinco dias após entrada em CTI, novo RX evidenciou infiltrado bilateral em bases pulmonares e aspiração de cânula de traqueostomia apresentou sangue vivo em quantidade moderada. Houve piora dos padrões hemodinâmicos com taquicardia, hipotensão e hipoperfusão tecidual, sem resposta à fluidoterapia inicial. Diante do quadro, foi iniciada noradrenalina em 0,05 mcg/kg/min. Feito transfusão de uma bolsa de concentrado de hemácias. Permaneceu em Ventilação Mecânica Invasiva (VMI) de modo controlado, com parâmetros ventilatórios elevados. Manteve diurese adequada, sem estímulo. Apresentou hemocultura positiva para Klebisiella pneuminae. O esquema de antibiótico foi alterado de oxacilina para piperacilina + tazobactam, vancomicina e amicacina. Foi realizada sedação com midazolan e recebeu morfina. Doze horas após o quadro descrito e as medidas terapêuticas instituídas, paciente evoluiu com melhora, sem uso de droga vasoativa, com bons níveis tensionais.
EXAME FÍSICO
Pálida (1+/4+), lúcida, pouco agitada, chorosa, taquipnéica.
FC: 112 bpm; FR: 22 irpm; TA: 110X70 mmHg; Tax: 38,8 o C.
Tireoide de aspecto habitual.
Ausência de linfonodomegalias. Presença também de lesões bolhosas em mucosa oral e de pálpebras, com ulceração e sangramento ativo. Ausência de déficits focais.
Tórax em conformação habitual, murmúrio vesicular presente em ambos hemitóraces, sem ruídos adventícios.
Taquicárdica, bulhas rítmicas, normofonéticas, em 2 tempos, sem sopros.
Plano, depressível e indolor à palpação. Genitália: feminina e infantil.
Perfundidas e aquecidas. Tempo de enchimento capilar (TEC): 2-3 segundos. Pele: lesões vesicobolhosas, em toda extensão, acometendo cerca de 90% da superfície corporal, com envolvimento aparentemente superficial, com descolamento da epiderme à pressão digital peri-lesional (Figura 1).
Sem achados relevantes.

Figura 1. Colocar 1º dia de internação em CTI.
EXAMES COMPLEMENTARES


PONTOS DE DISCUSSÃO
1. Qual o diagnóstico provável?
2. Qual quadro sindrômico a paciente apresentou durante internamento?
3. Como proceder diante de um quadro de sepse pediátrica?
4. O que caracteriza o quadro de choque?
DISCUSSÃO
1. NET
A necrólise epidérmica tóxica (NET) tem como patogênese uma resposta de hipersensibilidade tardia à fármacos, infecções virais e neoplasias1 (Tabela 1). O diagnóstico é realizado a partir de história clínica e no aspecto encontrado no exame físico2 e confirmado a partir de biópsia de pele que evidencia derme com mínimo infiltrado de células inflamatórias, predomínio de linfócitos TCD4+, e necrose da epiderme e a junção derme-epiderme mostra alteração vacuolar a bolhas subepidérmicas. O quadro clínico é caracterizado inicialmente com lesões máculo-papulosas que se transformam em vesículas e, posteriormente, em bolhas. O centro das lesões pode ser vesicular, purpúrico ou necrótico. O desprendimento da pele a partir da leve fricção caracteriza o sinal de Nikolsky e pode estar presente na NET. Nessa patologia, mais de 30% da pele é comprometida e o paciente pode se comportar como um grande queimado. A criança do caso apresentado possui quadro compatível com o de NET, tendo presença de lesões cutâneas que evoluíram de máculas à bolhas, comprometimento de mucosas, sinal de Nikolsky e surgimento do quadro a partir do uso de um fármaco(dipirona) com piora à sua reintrodução e melhora à suspenção do mesmo. O tratamento da NET é feito a partir da retirada do fármaco causador da reação e devem-se efetuar medidas de suporte e sintomáticos com hidratação e reposição de eletrólitos, cuidado especial de temperatura ambiental, manipulação cuidadosa e asséptica e manutenção de acesso periférico. Devido à gravidade do quadro, o paciente com NET deve ser precocemente reconhecido e encaminhado para unidades que possam oferecer cuidados intensivos e, se possível, unidades de queimados.1


2. SIRS/SEPSE
Os pacientes normalmente desenvolvem a sepse a partir de um foco infeccioso principal, a exemplo do pulmão, trato urinário ou pele.3 Como as bactérias estão implicadas em cerca de 90% dos casos, lança-se mão de terapias direcionadas para diferentes tipos destes agentes patogênicos.4
Por definição, sepse é um acometimento sistêmico, deletério, na presença de infecção que leva à sepse severa (disfunção orgânica secundária a infecção).5 No caso apresentado, a paciente tinha dois focos possíveis de infecção: pele e pulmão. O primeiro relacionado ao quadro de NET, no qual o paciente se assemelha ao grande queimado, com perda da barreira de proteção da pele e, portanto, com maior risco de infecção à infecção. O segundo foco, que é o pulmonar, foi confirmado por cultura de lavado brônquico, positivo para K. pneumoniae e pode estar relacionada à ventilação mecânica ou broncoaspiração antes da intubação orotraqueal.
A sepse pediátrica leva em consideração os valores de leucocitose e leucopenia corrigidos pela idade (nos pacientes em idade escolar – 6 a 12 anos – leucocitose ocorre > 13.500 e leucopenia < 4.500).6 Além deste, a paciente apresentou outros critérios diagnósticos de sepse, como febre (temperatura central > 38 o C), hiperglicemia na ausência de diabetes (glicemia > 120 mg/dL), hipoxemia arterial (PaO2 /FiO2 < 300), creatinina >0,5 mg/dL, RNI >1,5 e trombocitopenia (plaquetas < 100.000/mm).5,7
O tratamento da sepse pediátrica tem como princípio fundamental a iniciação rápida de antibióticos de amplo espectro. O esquema de antibiótico deve ser administrado por via intravenosa e, preferencialmente, na primeira hora de suspeita da sepse.5 A paciente iniciou uso de betalactâmico (oxacilina) ainda no hospital de origem e no CTI, o espectro de ação foi ampliado com introdução de um esquema composto por betalactâmico (piperacilina + tazobactam), glicopeptídeo (vancomicina) e aminoglicosídeo (amicacina) com o objetivo de cobrir os patógenos mais prováveis.
3. Choque
Choque é uma síndrome clínica caracterizada por alterações circulatórias e metabólicas, que refletem incapacidade do organismo em suprir os tecidos com sangue oxigenado.8 O choque é diagnosticado a partir de um conjunto de sinais e sintomas, tais como taquicardia, má perfusão capilar, diminuição do débito urinário e alterações do estado mental. A função circulatória relaciona-se com volume sanguíneo, função cardíaca e tônus vascular e o choque pode resultar de alterações em quaisquer desses parâmetros, podendo ser classificado, dentre outros, como hipovolêmico, cardiogênico ou distributivo respecitiamente.8 A hipovolemia é a causa mais comum de falência circulatória na criança.9
A paciente do caso clínico exposto apresentou sinais e sintomas de choque como taquicardia, má perfusão tecidual, confirmada por hipóxia a partir de PAM e hipotensão. Tal quadro de choque pode ser caracterizado como hipovolêmico, já que pacientes com NET podem se comportar como grandes queimados e perderem grandes quantidades de volume; entretanto, também pode ser caracterizado como choque séptico já que a criança possui foco infeccioso pulmonar confirmado e suspeita de infecção de pele, pela perda da barreira protetora com o quadro de NET.
A monitorização é de extrema importância nos quadros de choque. Os parâmetros que devem ser monitorados incluem frequência cardíaca, pressão arterial sistólica, pressão arterial média, débito urinário, pressão venosa central, saturações de oxigenação venosa mista e lactato.3 Quando o tratamento do choque é iniciado, deve-se monitorizar o perfil hemodinâmico do paciente. A ressuscitação a partir da administração de fluidos pode ocasionar diminuição da frequência cardíaca e aumento da pressão de perfusão.
O reconhecimento precoce bem como o manejo e reversão do quadro e choque estão diretamente relacionados a diminuição da mortalidade pelo choque em crianças. O tratamento do choque tem como objetivos tratar a doença de base, aumentar a oferta e o consumo de oxigênio pela célula, repor o volume circulante, corrigir fatores inotrópicos negativos, aumentar contratilidade cardíaca e diminuir a resistência vascular periférica.10 Pacientes em choque necessitam de um ou dois acessos vasculares que permitam infusões de grandes quantidades de coloides ou cristaloides e a administração de fármacos. Devido à má perfusão periférica que ocorre no choque, um acesso central geralmente é realizado, que pode ser da subclávia, da jugular interna ou da femoral. A punção da veia femoral passou a ser mais utilizada pelos pediatras intensivistas e tem alto grau de sucesso e poucas complicações em crianças.11
A reposição volêmica deve ser iniciada precocemente no quadro de choque; segundo a recomendações pediátricas do Surviving Sepse Campaign, a reposição pode ser feita tanto com cristaloide quanto com colóide. A ressuscitação deve ser feita com 20 mL/kg/5-10 minutos em bolus de solução cristaloide isotônica ou o equivalente de coloide. Após cada bolo, o estado hemodinâmico do paciente deve ser reavaliado para sinais de reversão ou manutenção do choque. Caso não ocorra a reversão do choque na primeira hora, deve-se prosseguir com infusão de 20 mL/kg de SF a cada 15 minutos e considerar suporte farmacológico à circulação. No caso apresentado, a paciente não apresentou melhora com reversão do choque a partir da ressuscitação volêmica, necessitando de terapia farmacológica. Tal tratamento utiliza drogas vasoativas que podem ser vasodilatadores e vasopressores (efeitos na resistência vascular sistêmica), inotrópicos (efeitos na contratilidade cardíaca) e cronotrópicos (efeitos na frequência cardíaca). Na paciente do caso apresentado, iniciou-se o uso de noradrenalina (um potente vasopressor), com o objetivo de restaurar e manter a perfusão de órgãos vitais. A reposição volêmica continua sendo o principal e primeiro tratamento do choque séptico e deve ser adequada para evitar efeitos deletérios de vasoconstricção da noradrenalina. Além disso, como a noradrenalina possui pouca ação na falha miocárdica, um paciente inadequadamente expandido e com baixo débito em uso de noradrenalina pode parecer hemodinamicamente estável, quando na verdade, possui déficit de perfusão em órgaõs-alvo.12
DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZADO / COMPETÊNCIAS
• Quadro clínico da NET;
• Sinais e sintomas de sepse / choque séptico em crianças;
• Manejo do choque séptico pediátrico.
PONTOS IMPORTANTES
• A NET nem sempre decorre de reação medicamentosa; pode decorrer de hipersensibilidade na vigência de diversos agentes infecciosos;
• Pacientes com NET apresentam-se como grande queimado;
• O tratamento de NET é realizado com suspenção do fármaco causador e medidas de suporte em unidades de cuidados intensivos;
• Antibioticoterapia de largo espectro deve ser precocemente iniciada na sepse;
• Ressuscitação volêmica é o tratamento inicial do choque séptico;
• O suporte farmacológico deve ser realizado sempre que o paciente não apresentar melhora à fluidoterapia.