Casos Clínicos: Politrauma

Índice

HISTÓRIA CLÍNICA

Paciente de 22 anos trazido pelo serviço móvel de emergência com relato de lesão por projétil de arma de fogo (PAF) em coxas e nádegas há cerca de 2h.

AVALIAÇÃO PRIMÁRIA

Dados Vitais: FC: 151 bpm; ritmo cardíaco regular; FR: 20 ipm; SatO2 100 % (sob máscara não reinalante); PA: 84×46 mmHg (o serviço de transporte realizou reposição volêmica com 500 ml de cristaloide, com resposta à infusão).

A (vias aéreas): Vias aéreas pérvias (contactante), sem colar cervical.

B (respiração e ventilação): Ausência de lesões visíveis em tórax, expansão simétrica, murmúrios presentes e simétricos à ausculta.

C (circulação): Pulsos filiformes, descorado, pele fria, com ferimentos sangrantes (pequena quantidade) em coxas e nádega esquerda.

D (avaliação neurológica): Escala de coma de Glasgow 15, sem déficits motores, pupilas isocóricas e fotorreagentes.

E (exposição completa): lesões múltiplas por arma de fogo (Figura 1).

Figura 1. Lesões por PAF encontradas durante avaliação primária

AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA

• S: Refere dor no local das lesões e nega perda de consciência, vômitos;

• A: Nega alergias; • M: Nega uso de medicações;

• P: Nega comorbidades, cirurgias/internações prévias;

• L: Última refeição há cerca de 7h;

• A: Paciente refere que durante fuga foi baleado (tiros disparados por alguém que estava atrás dele).

Sem outras lesões visíveis em couro cabeludo, face, extremidades, articulações e dorso. Abdome flácido e pouco doloroso à palpação profunda. Sem sinais de fratura pélvica instável ou lesão ureteral. Coxas sem edema ou hematomas significativos.

Evolução: paciente apresentou resposta transitória à reposição volêmica, com subsequente aumento da frequência cardíaca (151bpm), queda da pressão (60x36mmHg) e taquidispneia. Encaminhado para centro cirúrgico para realização de laparotomia, onde foi evidenciado grande hematoma retroperitoneal. Após inventário minucioso da cavidade, a origem do sangramento não foi localizada. Os cirurgiões resolveram aplicar compressas pela cavidade abdominal, fechar o abdome (cirurgia de redução de danos) e transferir o paciente para um leito de unidade de terapia intensiva. Radiografia de pelve em incidência anteroposterior.

EXAMES COMPLEMENTARES

Figura 2. radiografia de pelve em AP. Fratura em ilíaco esquerdo, próximo a imagem sugestiva de PAF

PONTOS DE DISCUSSÃO

1. Quais são as prioridades na avaliação primária deste paciente?

2. Qual o provável sítio de sangramento?

3. Qual o padrão de resposta à expansão volêmica?

4. Como deve ser guiada a expansão volêmica deste paciente?

5. Qual deve ser o fluido usado para a expansão?

6. Algum exame complementar precisa ser solicitado para avaliar o abdômen?

7. Qual o momento de indicar a conduta cirúrgica?

DISCUSSÃO

O paciente apresentado acima é vítima de politrauma, portanto, o primeiro ato a ser feito é a abordagem pelo método ABCDE. Esta abordagem é muito didática e eficiente, porque lista uma ordem de prioridades ao paciente atendido, segundo a capacidade que as lesões têm de levar a vítima ao óbito e a velocidade que atingem isto, além de determinar a ordem das intervenções.

Diante da descrição do caso, fica claro que o paciente se encontra num cenário bastante perigoso, em choque. Choque é uma condição sindrômica, configurada basicamente, por má perfusão tecidual. No trauma, o choque é hipovolêmico hemorrágico até prova contrária,1 porém atenção especial deve ser dada ao pneumotórax e tamponamento cardíaco. O manejo do choque hipovolêmico hemorrágico envolve a identificação do grau de choque do paciente para determinar se haverá ou não necessidade de transfusão de hemoderivados.

Alguns estudos vêm apontando dados clínico/laboratoriais para identificar precocemente o paciente vítima de trauma que demandará transfusões maciças, antes de classificá-los no grupo III ou IV, conforme demonstrado na tabela. Um estudo recente, retrospectivo (JOURNAL INTENSIVE CARE 2014; 2(1) 54), mostrou boa utilidade do índice de choque maior ou igual a 1, base excesso (BE) < -3mmol/L ou FAST positivo como parâmetros preditores de necessidade de transfusão maciça. Além da identificação precoce do paciente que demandará transfusão sanguínea, o médico emergencista deve reconhecer quem demandará 4 ou mais concentrados de hemácias. Nestes pacientes há claro benefício do uso de transfusão de hemoderivados na proporção 1:1:1 (CH, plasma fresco congelado e plaquetas), reduzindo risco de coagulopatia por consumo. A reanimação com concentrados de hemácias (CH) ou sangue total deve ser adotada, visto que a perda sanguínea fora vultuosa, podendo ter chegado a mais de 40% da volemia (choque grau IV). A instituição do volume deve sempre ser acompanhada de mecanismos de avaliação da resposta, sendo o débito urinário, neste cenário, a melhor forma de fazê-lo. O objetivo não deve ser a restauração da tensão arterial normal, mas sim manter um volume capaz de proporcionar uma pressão de perfusão mínima aos órgãos vitais, mediante o conceito de hipotensão permissiva. A restauração agressiva de volume é danosa a estes pacientes (choques grau III e IV), causando aumento do sangramento e maior mortalidade,2 já que a hemodiluição e a pressão elevada contribuem para desfazer os coágulos que estão ajudando a conter o sangramento.3 Logo, deve-se priorizar o encaminhamento do paciente para o centro cirúrgico, em detrimento de insistir na infusão de volume. Localizar o sítio da hemorragia é imprescindível para o manejo deste paciente, já que o tratamento mais efetivo ao choque hemorrágico é o controle de sua fonte de sangramento. A resposta transitória ocorre quando os parâmetros hemodinâmicos melhoram à medida que se faz a reposição volêmica, porém, em seguida, voltam a piorar. Neste caso, deve-se presumir que existe uma fonte de sangramento ativo. São possíveis causas de choque hemorrágico os sangramentos em tórax, abdômen (incluindo retroperitônio), pelve, ossos longos e externo (para fora do corpo). Considerando a cinemática do trauma (incidência dos múltiplos PAFs) e exame físico, devemos considerar como possíveis causa do choque a perda sanguínea para o meio externo (lembrando do sangue que o paciente já perdeu na cena do trauma e durante o transporte) e sangramentos em abdômen e pelve. Uma vez realizados curativos compressivos para estancar os sangramentos externos, a ultrassonografia de abdômen otimizada para o trauma – FAST (Focused Assesment with Sonogaphy for Trauma), seria uma boa opção. Uma vez notada a resposta transitória e restando somente fontes de sangramentos acessíveis por via cirúrgica (abdômen e pelve), é mandatório encaminhar o paciente para o centro cirúrgico o mais rápido possível. No intraoperatório foi localizado hematoma retroperitoneal não-pulsátil, com cavidade peritoneal livre de líquido: logo, o FAST, que tem baixa sensibilidade para hemorragias retroperitoneais, pode ser negativo nestes casos.4 Após inventário da cavidade, a origem do sangramento não foi localizada e não foram detectadas lesões de alças intestinais. A equipe resolveu aplicar compressas pela cavidade abdominal, fechar o abdome e transferir o paciente para um leito de unidade de terapia intensiva a fim de evitar a tríade letal (acidose + hipotermia + coagulopatia), técnica chamada de cirurgia de redução de danos.5 Após estabilização do doente, nova abordagem cirúrgica foi conduzida para retirar as compressas e realizar os reparos necessários.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZADO / COMPETÊNCIAS

• Reconhecimento de choque hemorrágico no trauma e seus principais locais;

• Como realizar reposição volêmica no choque hemorrágico;

• Apresentação ao conceito de cirurgia de redução de danos.

PONTOS IMPORTANTES

• As prioridades do atendimento do paciente vítima de politrauma não mudam em nenhuma situação, portanto, a avaliação inicial deve sempre seguir o protocolo do “ABCDE”;

• O politraumatizado com choque tem, até que se prove o contrário, hemorragia e, o sítio mais provável é o abdome;

• Atenção para identificação precoce do paciente que demandará transfusão maciça e, em especial, para o uso adequado dos hemoderivados na proporção 1:1:1 (CH, PFC e plaquetas);

• O controle da hemorragia é ponto chave na conduta do choque hemorrágico;

• Atenção redobrada ao retroperitônio, visto que o FAST não consegue identificar hemorragias oriundas deste compartimento anatômico;

• A cirurgia de redução de danos deve ser considerada em pacientes que caminham para a tríade letal do trauma: acidose + coagulopatia + hipotermia. São necessários 3 tempos: a primeira cirurgia, a estabilização das condições hemodinâmicas na unidade de terapia intensiva e a segunda abordagem cirúrgica, para um eventual reparo definitivo.

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