Ginecologia

Casos Clínicos: Sangramento Pós Menopausa

Casos Clínicos: Sangramento Pós Menopausa

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HISTÓRIA CLÍNICA

M.L.S, 62 anos, sexo feminino, casada, procurou o posto de saúde com queixa de sangramento vaginal. Relato de amenorreia há 10 anos e sangramento vaginal contínuo em pequena quantidade há aproximadamente 2 anos. Nega dor pélvica e outras queixas. Fez uso de terapia de reposição hormonal com estrogênio isolado há 5 anos, para alívio dos sintomas menopausais. Foi solicitado ultrassom transvaginal que evidenciou espessamento endometrial de 18,2 mm, sendo então encaminhada para o serviço ginecológico de referência. Paciente obesa (IMC= 34,8 kg/m²), diabética há 15 anos em uso de Glibenclamida 5mg/dia e Glifage 1g/dia e hipertensa em uso de Losartana 25mg/dia e Hidroclorotiazida 25mg/dia. História familiar negativa para câncer. Nega etilismo. Ex-tabagista há 17 anos. Nega alergoses. Passado cirúrgico de cesariana. G3PN2PC1A0, menarca aos 15 anos, menacme com ciclos menstruais regulares (duração média do ciclo de 28 dias, perda sanguínea média de 50 ml e duração do fluxo de 5 dias), nega uso de pílula anticoncepcional, menopausa há 10 anos. Nega infecções sexualmente transmissíveis.

EXAME FÍSICO

• Geral: paciente em regular estado geral, vígil, lúcida e orientada no tempo e espaço. Anictérica, hidratada, hipocorada (+1/+4), acianótica e perfusão capilar periférica satisfatória.

• Sinais vitais: FC: 78 bpm; FR: 16 irpm; PA: 135/80 mmHg; T: 36,5 °C.

• Exame de cabeça e pescoço: sem alterações em olhos, orelhas, orofaringe e faringe. Ausência de linfonodomegalias palpáveis. Tireóide sem alterações.

• Neurológico: ativa, alerta, sem déficits neurológicos.

• Pulmonar: tórax com expansibilidade preservada, murmúrio vesicular presentes bilateralmente sem ruídos adventícios.

• Cardíaco: bulhas normofonéticas e normorrítmicas em 2 tempos, pulsos radiais simétricos, amplos e rítmicos.

• Abdome: globoso, simétrico, cicatriz de Pfannenstiel, presença de ruído hidroaéreo, indolor à palpação, ausência de massas palpáveis ou visceromegalias, timpânico.

• Exame de extremidades e pulsos periféricos: ausência de edema em membros inferiores e empastamento das panturrilhas. Extremidades bem perfundidas.

• Exame de articulações e sistema osteomuscular: sem alterações.

Exame ginecológico

• Exame das mamas: volumosas, simétricas, sem retrações, ulcerações ou eritema, consistência macia e homogênea.

• Exame da vulva: ausência de lesões granulomatosas ou suspeitas de malignidade em grandes lábios, pequenos lábios simétricos e hipocorados. Ausência de distopias genitais e incontinência urinária a manobra de valsalva.

• Exame especular: paredes vaginais hipocoradas, atrofiadas, ressecadas, de elasticidade reduzida, colo uterino centrado, entreaberto com pequena quantidade de sangramento em fundo de saco posterior.

• Exame de toque: colo posterior, de consistência endurecida, atrófico, superfície lisa e regular, sem dor a mobilização e pequena quantidade de sangue.

EXAMES COMPLEMENTARES

ECG: dentro dos limites da normalidade.

Raio X de tórax: pulmões normotransparentes, seios costofrênicos livres, área cardíaca sem alterações.

Ultrassom Transvaginal: útero centrado de forma e contorno normais, medindo 7,7 x 4,1 x 6,1cm, com volume de 102,2cm3 (valor de referência: até 120 cm3). Miométrio heterogêneo sem massas ou nódulos. Eco endometrial heterogêneo predominantemente ecogênico com área cística central com espessura de 18,2mm. Ovários de forma e textura normais. Ovário direito: medindo 1,9 x 1,1 x 1,6 cm. Volume: 1,8 cm3 . Ovário esquerdo: imagem anecoica regular contendo septos internos e alguns debris medindo 3,0 x 2,2 x 2,6 cm. Volume: 9,4 cm3 . Ausência de líquido livre ou coleções na cavidade. (Figura 1: A-B)

Figura 1 – A e B: imagem de ultrassom transvaginal evidenciando espessamento endometrial de 18,2 mm.

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1.Pela história e exame clínico complementar, quais os possíveis diagnósticos?

2.Quais condições clínicas apresentadas pela paciente são consideradas fatores de risco para a condição apresentada?

3.Quais as principais causas de sangramento pós-menopausa?

4.A alteração vista no ultrassom já configura uma patologia maligna?

5.Qual a propedêutica a ser adotada para investigação da condição apresentada?

DISCUSSÃO

A paciente do caso clínico descrito apresenta um quadro de sangramento pós-menopausa associado a um espessamento endometrial de 18,2 mm evidenciado pelo ultrassom transvaginal. O sangramento pós-menopausa é um sintoma recorrente na prática ginecológica sendo sua causa mais comum o endométrio atrófico, com medidas inferiores a 5 mm na ecografia. Outras causas são: pólipos endometriais, terapia de reposição hormonal, lesões de colo e vagina.

O sangramento pós-menopausa também ocorre como manifestação clínica da hiperplasia endometrial e do câncer de endométrio em mulheres na pós-menopausa 1,2,3.

A hiperplasia endometrial é definida pela proliferação irregular das glândulas endometriais com um aumento da relação glândula/estroma quando comparado a um endométrio proliferativo normal. Isso acontece principalmente quando o estrogênio, sem oposição da progesterona, estimula o crescimento de células endometriais através de ligação a receptores de estrogênio nos núcleos de células endometriais. Sua incidência é pelo menos três vezes maior que o câncer endometrial e se não tratada pode progredir para câncer4 . Os fatores de risco para a hiperplasia e para o câncer de endométrio são semelhantes e incluem: obesidade (com excessiva conversão periférica de andrógenos em estrógenos com acúmulo de estrogênio no tecido adiposo – aromatização), anovulação crônica (deficiência de progesterona, criando um hiperestrogenismo relativo), menarca precoce, menopausa tardia, nuliparidade, tumores ovarianos secretantes de estrogênio, estímulo endometrial induzido por fármacos (ex.: tamoxifeno), idade acima de 50 anos e doenças sistêmicas como diabetes mellitus tipo 2 1,4,5. Observa-se que a paciente apresentava diversos fatores de risco para o espessamento endometrial e para o câncer de endométrio, como idade, obesidade, diabetes mellitus tipo 2 e reposição hormonal somente com estrogênio.

O método utilizado para avaliar o endométrio e fazer o diagnóstico preliminar é a ultrassonografia transvaginal (USTV) e o ponto de corte do espessamento endometrial é de 4 a 5 mm². Essa medida é usada para distinguir mulheres com baixo ou alto risco para câncer endometrial, sendo consideradas em maior risco de câncer as mulheres com endométrio espessado 3 . Uma meta-análise de 35 estudos revelou alta sensibilidade e especificidade em detectar doença endometrial através da USTV em endométrios com espessura maior que 5 mm 5 . A paciente apresentava um espessamento de 18,2mm, quase quatro vezes o ponto de corte, sendo então considerada de alto risco para câncer endometrial. Entretanto, é importante ressaltar que há presença dessa alteração na ecografia, não significa necessariamente que se tem uma patologia do endométrio confirmada, mas sim a necessidade de complementação diagnóstica, por exemplo, através da histeroscopia que é considerada padrão-ouro para investigação da cavidade uterina 2, 5. Outras opções seriam curetagem uterina e aspirado endometrial.

A confirmação do diagnóstico requer análise histológica de amostras de tecido endometrial, visando determinar a presença ou ausência de lesões carcinomatosas ou pré-malignas 6 . Mulheres com fatores de risco para carcinoma endometrial e endométrio espessado devem realizar a amostragem endometrial 5. As técnicas para obtenção de amostras incluem biópsia endometrial às cegas, dilatação e curetagem e biópsia dirigida por histeroscopia. As principais técnicas de biópsia endometrial às cegas são realizadas usando dispositivo de Pipelle, aspirador Vabra ou através de aspirado endometrial, as quais possuem baixo custo e podem ser realizadas ambulatorialmente. As três técnicas apresentam valores alto de especificidade (98%), no entanto, em um resultado de biópsia negativo não se pode excluir o câncer de endométrio devido ao risco de ocorrência de falsos negativos. Outras técnicas incluem aspiração manual intrauterina (AMIU) e aspiração por sondas uretrais acopladas a seringa de 10ml 4,5.

A histeroscopia permite que toda a superfície do endométrio seja visualizada possibilitando uma melhor coleta da amostra. Se realizada de forma isolada pode apresentar resultados falso-positivos para detectar hiperplasia endometrial. A histeroscopia cirúrgica é considerada uma ferramenta de diagnóstico superior em comparação com as técnicas realizadas isoladamente, possuindo excelente sensibilidade e especificidade para detectar doenças endometriais 5 .

A histeroscopia com avaliação adicional do endométrio pode ser necessária se persistir o sangramento, se houver suspeita de anormalidades estruturais intrauterinas visualizadas no USTV ou na biópsia endometrial e nos casos em que a amostragem ambulatorial não é possível ou não é diagnóstica. Não há evidências suficientes para avaliar a tomografia computadorizada, a ressonância nuclear magnética ou biomarcadores como auxiliares na propedêutica da hiperplasia endometrial e seu uso não é recomendado rotineiramente 4 .

O método para amostragem endometrial utilizado na paciente do caso clínico, foi a utilização de sonda uretral acoplada a seringa de 10 ml. A escolha desse método deveu-se a simplicidade técnica, baixo custo e por não requerer internação, utilização de bloco cirúrgico e anestesia. A sensibilidade deste procedimento excede 90% para o diagnóstico de carcinoma do endométrio (Figura 2 e 3).

A classificação mais recente da hiperplasia endometrial de acordo com a Organização Mundial de Saúde, revisada em 2014, é baseada na presença ou ausência de células atípicas e classificada em dois grupos: hiperplasia sem atipia e hiperplasia atípica 4,6.

Quando a biópsia endometrial mostra um resultado benigno, isto é, sem atipia, e a paciente apresenta sangramento pós-menopausa recorrente ou persistente, é recomendado uma avaliação adicional para detectar lesões intrauterinas focais, que possam ter passado despercebidas pela amostragem endometrial às cegas. Por outro lado, se o sangramento não persistir, pode-se considerar uma conduta expectante com biópsias endometriais de acompanhamento para garantir a regressão da doença, especialmente quando fatores de risco como obesidade e terapia de reposição hormonal podem ser revertidos 3,6. O risco de uma hiperplasia endometrial sem atipia progredir para câncer do endométrio é inferior a 5% ao longo de 20 anos e a maioria dos casos regride espontaneamente durante o seguimento. O tratamento com progestágenos é indicado em mulheres que não regrediram após observação isolada e mulheres com sangramento uterino anormal, possuindo uma taxa mais alta de regressão da doença em comparação com a conduta expectante isolada 6 .

Por outro lado, a hiperplasia com atipia em mulheres com prole definida requer tratamento definitivo com histerectomia devido ao alto risco de malignidade subjacente ou progressão para o câncer 1,4,6. Em pacientes com desejo reprodutivo a combinação de ressecção endometrial superficial, preservando a camada basal do endométrio associada à implantação de DIU (Dispositivo Intra Uterino Liberador de Levonorgestrel) tem se mostrado como uma abordagem alternativa de preservação da fertilidade 7 .

O resultado anatomopatológico da amostragem endometrial da paciente apresentou amostra satisfatória com vários fragmentos de tecido endometrial e histologia compatível com adenocarcinoma moderadamente diferenciado endometrióide. Esse tipo de neoplasia de endométrio tem a sua carcinogênese relacionada ao aumento dos níveis de estrogênio sem oposição e considerada de baixo grau de malignidade 1 . O diagnóstico é frequentemente seguido por cirurgia para tratar e estadiar o câncer, realizando-se a histerectomia total e salpingo-ooforectomia bilateral. Os linfonodos da pelve e para-aórticos podem ser removidos e examinados quanto à disseminação do câncer. Lavagens pélvicas também podem ser feitas. O estadiamento é, portanto, cirúrgico, realizado ao examinar os tecidos visualizados na cirurgia 8 . No caso da paciente, foi realizada pela equipe de Ginecologia do serviço, a laparotomia exploradora seguida de histerectomia total e salpingo-ooforectomia bilateral. Na análise macroscópica da peça cirúrgica observou-se invasão do miométrio pelo tumor, sendo então realizada a linfadectomia pélvica e para-aórtica também. A necessidade de tratamento adicional é baseada em achados intra operatórios e histológicos. Dependendo do estágio do câncer endometrial, outros tratamentos como radiação e/ou quimioterapia podem ser recomendados 8 .

Figura 2: cânula uretral acoplada à seringa de 10ml.
Figura 3: múltiplos fragmentos de tecido endometrial.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZADO/COMPETÊNCIAS

• Abordagem inicial da paciente com sangramento pós-menopausa;

• Diagnósticos diferenciais de sangramento na pós-menopausa;

• Identificar fatores de risco relacionados ao câncer de endométrio;

• Utilização do ultrassom transvaginal na propedêutica inicial;

• Discutir as condutas utilizadas para investigação de alterações endometriais.

PONTOS IMPORTANTES

• O sangramento pós-menopausa é o sintoma mais comum da hiperplasia e do câncer endometrial; mas a causa mais frequente sangramento pós-menopausa é a atrofia endometrial;

• Mulheres com sangramento pós-menopausa devem ser sempre investigadas. A hiperplasia endometrial representa uma lesão precursora para o câncer de endométrio;

• O manejo de fatores de risco como obesidade, diabetes e ciclos anovulatórios é fundamental na prevenção do câncer endometrial. Para as mulheres em terapia hormonal, a adição de progesterona pode diminuir o risco de câncer endometrial;

• O ultrassom transvaginal é o método de escolha na avaliação inicial do sangramento uterino na pós-menopausa;

• Mulheres com fatores de risco para carcinoma de endométrio e endométrio espessado acima de 5 mm devem ser submetidas a amostragem de tecido endometrial;

• A histeroscopia associada à biópsia demonstrou ser a melhor ferramenta diagnóstica. No entanto, mulheres de alto risco para carcinoma do endométrio podem se beneficiar de procedimentos simples, efetivos e de baixo custo, que podem ser realizados em qualquer unidade básica de saúde, visto que a histeroscopia é um procedimento de alta complexidade e pode não ocorrer no tempo adequado, postergando o diagnóstico e o tratamento precoce.