Carreira em Medicina

Casos Clínicos: Síndrome de Weil

Casos Clínicos: Síndrome de Weil

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HISTÓRIA CLÍNICA

Homem, 44 anos, natural e procedente de cidade de grande porte, dá entrada no serviço de emergência com queixas de febre e dores em membros inferiores há 6 dias, com piora destes sintomas e do estado geral nas últimas 24 horas. Febre de início súbito e irregular. A mialgia era localizada em panturrilhas bilateralmente, com piora à palpação, sem edemas. Informa que sua residência fica próxima a esgotos a céu aberto e que há muitos ratos em volta do seu domicílio. Não há relato de contato com pessoas ictéricas ou de vizinhos com quadro clínico semelhante. Previamente era saudável e negava queixas do aparelho respiratório, gastrintestinal, urinário e neurológico, além disto, não fazia uso prévio de medicações ou de drogas ilícitas. Nos últimos dias, queda do estado geral, anorexia, diminuição da ingestão de líquidos com redução do débito urinário. Além de episódios de tosse com rajas de sangue.

EXAME FÍSICO

Regular estado geral, lúcido, orientado, taquipneico, desidratado ++/4+, ictérico ++/4+.

FC: 129 bpm; FR:29 irpm; PA: 80×50 mmHg; SpO2 : 94%; Temperatura axilar: 37,8 o C.

Sem linfonodomegalias palpáveis, sem turgência jugular.

Glasgow= 15. Nuca Livre.

Murmúrio vesicular bem distribuído bilateralmente, presença de crepitações nas bases.

Bulhas cardíacas rítmicas, normofonéticas em 2 tempos, sem sopros.

Plano, flácido, ruídos hidroaéreos presentes, timpânico, fígado palpável a aproximadamente 8 cm do rebordo costal em linha hemiclavicular direita, indolor, espaço de Traube livre.

Ausência de edema. Dores localizadas em panturrilhas com piora à palpação, bilateralmente.

Sem sinais de flogose articular.

Figura 1. Icterícia rubínica ++++/4 em esclera.

Figura 2. Tubo coletor de urina evidenciando colúria.

EXAMES COMPLEMENTARES

Figura 3. Radiografia de Tórax: Opacidades heterogêneas extensas, bilaterais, difusas, algumas coalescentes com formação nodular.

PONTOS DE DISCUSSÃO

1. Causas de febre e mialgia aguda?

2. Quando suspeitar dessa doença? Existe um perfil de pacientes mais susceptíveis?

3. É necessário notificar a doença para fins epidemiológicos?

4. Qual o tratamento mais apropriado?

DISCUSSÃO

O paciente apresentou uma síndrome febril aguda, mais especificamente a síndrome de Weil (icterícia + insuficiência renal + manifestações hemorrágicas) secundária a infecção por leptospirose. A leptospirose é uma doença febril aguda causada por bactérias do gênero Leptospira, de caráter sistêmico, que acomete o homem e os animais. Sua ocorrência é favorecida pelas condições ambientais vigentes nas regiões de clima tropical e subtropical, onde a elevada temperatura e os períodos do ano com altos índices pluviométricos favorecem o aparecimento de surtos de caráter sazonal.2 É reconhecida como uma doença emergente em países desenvolvidos e considerada um importante problema de saúde pública em países tropicais em desenvolvimento, devido à má infraestrutura sanitária em áreas de aglomeração urbana.3,4 O período de incubação da doença varia de 1 a 30 dias, com início abrupto, podendo variar de formas assintomáticas e subclínicas a quadros graves associados a manifestações fulminantes. Didaticamente, a leptospirose é divida em fases evolutivas: fase precoce (fase leptospirêmica) e fase tardia (fase imune).5 A icterícia é um indicador de mau prognóstico, e possui uma coloração alaranjada intensa (icterícia rubínica), aparecendo cerca de 3 a 7 dias após o início da doença.5 A apresentação clínica súbita tendo como principais dados semiológicos a febre, mialgia e icterícia poderiam levar o médico a pensar em diversas patologias; todavia, as condições de moradia do paciente – em contato com ratos -, características da icterícia e exames laboratoriais demonstrando insuficiência renal com nível de potássio normal levaram a um grau de suspeição elevado para leptospirose (Tabela 1). Um dado importante no raciocínio diagnóstico é reconhecer que poucas condições clínicas febris se caracterizam por mialgia pronunciada em panturrilhas. A presença deste sintoma fortalece a hipótese diagnóstica, mas sua ausência não afasta. No serviço de emergência, diante da suspeita clínica de leptospirose e da gravidade, foi introduzida penicilina cristalina, hidratação rigorosa, droga vasoativa, suporte nutricional, controle glicêmico, analgesia e antitérmico, oxigenoterapia, acesso central, sonda vesical de demora, e, em seguida, feita a transferência para unidade de terapia intensiva. Evoluiu com anúria e piora da função renal associada a níveis séricos elevados de Creatinofosfoquinase (CPK): 16.625 UI/L (valor normal: < 190 UI/L)1 , e estabelecido diagnóstico de rabdomiólise, sendo instituída hemodiálise. Em seguida, fez insuficiência respiratória grave necessitando de ventilação mecânica invasiva com relação PaO2 /FiO2 = 127 (PaO2 /FiO2 normal > 301) com radiografia do tórax apresentando infiltrado bilateral (Figura 3), sendo diagnosticada Síndrome de Angústia Respiratória Aguda (SARA). Desenvolveu discrasia sanguínea com epistaxe, equimoses e hemoptise, persistindo grave comprometimento renal e respiratório, e choque séptico, vindo a óbito no décimo segundo dia de internamento. As complicações inerentes à leptospirose são consequências do acometimento de diversos sistemas como renal, pulmonar, cardíaco, hematológico, nervoso, dentre outros.5 O paciente pode desenvolver insuficiência respiratória aguda (síndrome da hemorragia pulmonar aguda e síndrome da angústia respiratória aguda – SARA).5 A insuficiência renal aguda é geralmente caracterizada por ser não-oligúrica e hipocalêmica.5 O índice coletado na gasometria, associado à radiografia de tórax e ao quadro clínico do paciente fecham o diagnóstico de SARA, desenvolvida primariamente pela leptospirose. A lesão pulmonar decorrente de uma capilarite difusa leva ao extravasamento de líquido e sangue para os alvéolos.6 Surgem infiltrados hemorrágicos no pulmão que podem se expressar clinicamente com hemoptise, insuficiência respiratória, tosse, dispneia, podendo levar a morte6 . Os principais fatores envolvidos na patogênese da insuficiência renal aguda na leptospirose são ação nefrotóxica direta da leptospira e ação das toxinas com indução da resposta imune. Alterações hemodinâmicas, icterícia e rabdomiólise também estão associadas à gênese da insuficiência renal aguda (IRA) na leptospirose. Pode ser observada hipotensão, devido à redução da resistência vascular sistêmica e à desidratação. Níveis elevados de bilirrubinas levam a alterações da função renal com diminuição da filtração glomerular e da capacidade de concentração urinária. Os principais mecanismos de insuficiência renal secundária à rabdomiólise são vasoconstrição renal, obstrução tubular e toxicidade direta da mioglobina.7 A leptospirose é uma doença de notificação compulsória no Brasil e, para isso, há critérios para definição dos casos (suspeito, confirmado e descartado) da doença (Tabela 1).3,5 Essas definições objetivam uniformizar o registro epidemiológico da doença, reduzindo a incerteza do profissional ao classificá-la. Não há registro de confirmação sorológica do patógeno no caso clínico apresentado. No entanto, o diagnóstico foi estabelecido por critérios clínico-epidemiológicos, conforme definição do Ministério da Saúde 2010.5

O tratamento se baseia em dois pilares principais: tratamento suporte, com condutas gerais de suporte de vida do paciente quando este apresenta sinais de alerta ou mesmo quando já tem a doença confirmada (Figura 1); e tratamento baseado no uso de antibióticos. A Amoxicilina na dose de 500 mg de 8/8h, VO, por 5 a 7 dias, é a primeira escolha para a fase precoce da doença, podendo ser substituída pela Doxicilina 100 mg de 12/12h, VO, por 5 a 7 dias. Na fase tardia da doença, a primeira escolha é a penicilina cristalina 1,5 milhões UI, de 6/6h IV ou ceftriaxona 1 g por dia IV, em caso de dúvida no diagnóstico, 2 g por dia IV, e se houver contraindicação, administrar azitromicina 500mg por dia IV.4,5 Em casos graves, altas doses de penicilina são recomendadas (2 milhões de unidades, 4 x dia).6 O fluxograma abaixo resume a conduta adequada nos casos suspeitos de leptospirose:

A prevenção da doença deve ser feita pela orientação da população em geral, principalmente dos trabalhadores de risco. Além disso, podemos destacar também o saneamento adequado garantido pelas prefeituras, de fundamental importância na prevenção.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS

Fonte: Guia Leptospirose: Diagnóstico e Manejo Clínico / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, 2009.

OBJETIVOS DE APRENDIZADO/COMPETÊNCIA

• Fatores de risco associados à doença;

• Animais envolvidos como reservatórios da doença;

• Medidas iniciais quando a doença é suspeita;

• Exames diagnósticos da doença;

• Medidas terapêuticas específicas quando diagnóstico confirmado;

• Notificação da doença;

• Medidas preventivas da doença.

PONTOS IMPORTANTES

• A suspeita clínica, mesmo a partir de sinais e sintomas inespecíficos, associada a uma epidemiologia sugestiva são a chave para o diagnóstico correto e a instituição do tratamento precoce;

• O quadro clínico inicial é inespecífico, somente 15% dos pacientes na fase precoce, 3 a 7 dias depois da infecção, começam a apresentar sintomas sugestivos da doença;

• Didaticamente, a leptospirose apresenta curso bifásico (fase bacterêmica e fase imunológica), porém, clinicamente, nem sempre se consegue tal distinção, principalmente nos casos graves;

• Suporte clínico constitui o pilar do tratamento da leptospirose. O uso de antibioticoterapia PRECOCE é fundamental, pois pode reduzir a progressão para quadro mais grave em alguns casos;

• Apesar de possível, desconfie do diagnóstico de leptospirose nas hemorragias alveolares SEM icterícia;

• Não se deve esperar a positividade de marcadores sorológicos para instituir a terapêutica, principalmente nos casos graves;

• Não há um método diagnóstico padrão ouro para a leptospirose, no entanto, rotineiramente os métodos sorológicos são eleitos. Os mais utilizados no país são o teste ELISA- -IgM e a microaglutinação (MAT);

• Manter elevado grau de suspeição em pacientes que trabalham com animais que podem servir de reservatório para a Leptospira, bem como pacientes que vivem em regiões com saneamento precário ou ausente;

• A doença é de notificação obrigatória no Brasil. A educação e saneamento adequados são fundamentais para prevenção;

• Hemodiálise precoce é fundamental para um bom prognóstico nos casos de IRA.