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Transtorno do Espectro Autista, o que é?
Não é abril azul, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas como forma de conscientizar e dar visibilidade ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas precisamos falar sobre como está essa população após quase dois anos de pandemia.
Ainda no DSM-IV, o Transtorno do Espectro Autista era visto como transtornos globais do desenvolvimento, com hereditariedade poligênica, dividido em cinco transtornos distintos: o transtorno do autismo; de Asperger; Síndrome de Rett; Transtorno Desintegrativo da Infância; e Transtorno Global do Desenvolvimento sem outra especificação. No geral, o TEA era caracterizado pela frequência de transtornos no âmbito da comunicação social, comportamentos repetitivos, restritivos e uso de uma linguagem atípica¹.
Diante desse complexo tema, relativamente pouco estudado, mas que vem ganhando cena nos estudos, o transtorno do espectro autista tem ganhado força nas pesquisas. Comumente, o TEA torna-se perceptível a partir do segundo ano de vida, assim os pais e médicos compartilham preocupações referentes aos marcos de neurodesenvolvimento. A linguagem, os comportamentos sociais e interpessoais, padrões de comportamentos, interesses e atividades, tornaram-se foco e fomentam a pergunta: quem é autista? Todo mundo tem uma vizinha que ao ver uma criança impertinente ou até mesmo com uma limitação intelectual já a diagnostica como autista.
A clínica moderna mostrou que o uso da linguagem anômala não é um atributo que define o TEA, no entanto, é uma particularidade adjunta em alguns indivíduos com o transtorno. Este, como outros fatos, apontados nos estudos mais recentes, modificou o conceito de TEA para um modelo de transição gradual, onde os sintomas ditos heterogêneos são reconhecidos como intrínseco ao transtorno¹.
Critérios diagnósticos do Transtorno do Espectro Autista
De acordo com a American Psychiatric Association, o transtorno do espectro autista é um distúrbio da evolução neurológica que pode ser caracterizado através de cinco critérios².
- Critério A: déficits persistentes na comunicabilidade e interação social em variados contextos, com a gravidade fundamentada nos prejuízos de comunicação social e padrões de comportamento restritivo e repetitivo;
- Critério B: padrões repetitivos e restritivos caracterizados por, ao menos dois desses: mobilidade motora, uso de objetos ou fala repetitivos ou estereotipados, veemência nas mesmas coisas, adesão não flexível de padrões com rituais de comportamento ou rotinas, interesses anormais em foco ou intensidade, restritos e que não mudam, hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse atípico por aspectos sensoriais do ambiente;
- Critério C: esses sintomas devem estar presentes precocemente no desenvolvimento;
- Critério D: esses sintomas geram prejuízo significante no desempenho social, profissional ou em outras áreas relevantes da vida;
- Critério E: essas perturbações não são melhor explicadas por deficiência intelectual ou atraso global do desenvolvimento.
Características das crianças com TEA
Os sintomas emocionais, problemas de conduta e hiperatividade exacerbada são mais prováveis em crianças com TEA, tenham essas ou não dificuldades intelectuais³. Ainda, podem apresentar características atípicas, como, por exemplo, um estudo identificou em indivíduos com TEA a dificuldade de consciência corporal. Esses indivíduos quando submetidos a um exame de imagem corporal tiveram parecer errôneo do tamanho do próprio corpo4.
A alteração visual é outra constatação. Esse déficit pode resultar em excitação autonômica exacerbada que desencadeia estratégias de autorregulação, tal como a aversão ao olhar, isso ocorre por caracterizar uma hipoativação no sistema cortical (incluindo a amígdala, área fusiforme, sulco temporal superior e área da face occipital) do processamento da face5. Na prática: diante de informações audiovisuais, as crianças com TEA dão menos atenção e passam menos tempo olhando para o rosto, elas desviam o foco para o corpo e outros objetos.
Desta forma, o transtorno do espectro autista é um distúrbio geral do desenvolvimento neurológico agregado à conectividade cerebral remodelada. Logo, novas técnicas, como, por exemplo, a medida de espessura cortical e morfometria da superfície, poderiam ser acessórias no esclarecimento detalhado dos padrões de anormalidades no processo de neurodesenvolvimento no espectro autista6. Mas isso é tema para outro artigo.
COVID – 19 e TEA
Com absoluta certeza, os problemas comportamentais e emocionais em crianças com TEA também estão associados a fatores familiares, estresse, saúde mental, sem falar nos fatores socioeconômicos7. Além disso, o apego criança-pai gera uma forte estrutura para sustentar os problemas, sejam eles comportamentais ou emocionais. Um estudo atual, ao analisar a relação entre apego e problemas emocionais em um grupo com TEA identificou que as crianças tinham relações de apego de baixa qualidade, altas taxas de apego inibido e também taxas substanciais de comportamentos e problemas emocionais7.
Em 11 de março de 2020, o COVID-19 foi caracterizado pela Organização Mundial de Saúde como uma pandemia. Devido ao risco de doença, isolamento social, proteção parental e o aumento do nível de estresse dos pais e familiares, é fato que epidemias ou pandemias geram riscos para o desenvolvimento infantil. O isolamento social torna-se difícil e pode gerar menos disponibilidade emocional dos pais para apoiar os filhos, aumento de práticas familiares inadequadas, e aumento dos conflitos familiares8.
Um fato importante, relatado em diversos estudos, sejam com adultos ou crianças, foi o aumento do tempo de tela durante a pandemia. O tempo na frente de computadores, televisores e outras tecnologias está relacionado a problemas de saúde física e mental, e as crianças com TEA estão em maior risco desses problemas9.
A escola e o compromisso social são estressores para as crianças com TEA, logo, estar em casa durante quarentena, poderia confortar essas crianças, no entanto, ao contrário do que poderíamos imaginar, durante este período, enfrentaram um grande estressor: a mudança na rotina10. Antes da pandemia crianças com transtorno do espectro autista já passavam mais tempo em frente às telas, certamente influenciado pela evitação da interação social, esforço cognitivo e a falta de barreiras para o engajamento¹¹. Tal fato, quando associado à perda de serviços e apoio a essa população durante a pandemia, coloca essas crianças em um risco maior quanto aos resultados negativos do aumento do tempo de tela durante a quarentena9.
Outro risco significante para as crianças com TEA é o da ansiedade. A ansiedade associada aos sintomas do transtorno do espectro autista pode aumentar os problemas comportamentais. Tal fato foi exemplificado em um estudo durante o período em que as escolas ficaram fechadas. De forma dominante, as crianças com TEA mudaram o comportamento, enquanto a maioria das crianças no grupo controle não o fizeram10.
Ainda relacionado aos riscos, outro ponto a ser discutido é a forma como as crianças com transtornos do espectro do autismo são comumente afetadas por distúrbios alimentares. A seletividade alimentar, principalmente a preferência por alimentos com baixa nutrição e alto valor calórico, pode alterar o metabolismo e gerar um acúmulo de radicais livres que desencadeia uma deterioração mental e física12.
De forma exacerbada, desastres e pragas, como o coronavírus, afetam indivíduos com condições mentais graves e crônicas, como exemplifica o estudo de Mutluer. Ele mostra que a maioria de sua amostra com TEA teve dificuldade em entender o que é Covid-19, as medidas necessárias e as regulamentações relacionadas ao distanciamento social e higiene, isso se deu ao fato da maioria ter deixado de receber educação especial nesse período de isolamento social13.
Outro desafio para as crianças com TEA é a hipersensibilidade em tempos de SARS-CoV-2. Essa característica dos autistas pode tornar-se um problema maior quando gera um impacto significativo no uso da máscara. Essa hipersensibilidade impede a população discutida de tomar tal precaução, torna-se ainda mais difícil para os indivíduos com TEA suportar o bloqueio da máscara principalmente devido à rigidez de seu pensamento. O mesmo estudo que valida essa afirmação, exemplifica o desafio das crianças com TEA quando solicitadas a colocar máscaras, especialmente devido a problemas sensoriais, indutores de ansiedade e relacionados ao olfato que essa população, em específico, apresenta14. Outro estudo recente aponta que 40% da população infantil com Transtorno do Espectro Autista estudada teve dificuldade em usar máscaras durante a pandemia15.
Conclusão
É fundamental a conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista, suas limitações e particularidades. O TEA antes caracterizado pela frequência de transtornos no âmbito da comunicação social, comportamentos repetitivos, restritivos e uso de uma linguagem atípica, atualmente discute as divergências das manifestações clínicas que dependem da gravidade da condição autista, nível de desenvolvimento e idade cronológica. Como um distúrbio geral do desenvolvimento neurológico agregado à conectividade cerebral remodelada, é de crucial importância, literária e social, falar sobre como encontra-se essa população após quase dois anos de pandemia.
Problemas comportamentais e emocionais das crianças com TEA estão associados a inúmeros fatores, como familiares e socioeconômicos. Uma situação de pandemia gera riscos para o desenvolvimento infantil. Na população com o transtorno do espectro autista não seria diferente, mas é ainda mais grave, pois durante este período de quarentena, enfrentaram um potente estressor: a mudança na rotina. Em um leque de diversificações, limitações e barreiras associadas a um vírus mortal, assim está essa população após quase dois anos de pandemia.
Autora: Geovanna R. B. Castro
Instagram: @georbcastro
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
REFERÊNCIAS
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