Índice
Mávila Andrade[1], Fernanda Alves[2], Vanessa Miranda[3] e Viviane Resende[4]
Abraços, beijos e apertos de mão são comportamentos corriqueiros na vida dos brasileiros ao se encontrar e/ou se despedir de alguém. A afetuosidade, representada no contato físico, fez com que o Brasil fosse reconhecido como um país caloroso, gentil e de afagos.
Entretanto, a disseminação de um vírus gripal instala restrições ao contato e eclode a vulnerabilidade da demonstração do afeto, que, por aqui, esteve maioritariamente relacionada ao toque.
O mundo passou a viver uma nova guerra, mas com um inimigo invisível. Este nos obrigou a ficar de quarentena ou isolamento social e a nos distanciarmos das nossas pessoas, avós, pais, amigos, sobrinhos, vizinhos, protegendo aqueles com saúde mais frágil.
Estando diante da necessidade do afastamento físico, a internet, muitas vezes considerada como vilã por roubar das relações diárias o compartilhamento, tornou-se a maior parceira para a atenção, o cuidado e o carinho. Ela também é a opção encontrada pelos psicólogos como um instrumento terapêutico que poderá vir a diluir os sentimentos de solidão, medo e angústia vivenciados pelos sujeitos neste momento de crise.
A internet como principal alternativa para o atendimento psicológico no isolamento
No ano 2000, o Conselho Federal de Psicologia – CFP – publicou a primeira Resolução CFP nº 003/2000 que regulamentava a atuação do psicólogo usando o computador como instrumento de trabalho.
Nesses 20 anos, mais duas resoluções foram publicadas até alcançarmos a Resolução CFP nº 11/2018, vigente até o início da pandemia no Brasil e tendo como uma das mudanças a autorização dos atendimentos psicológicos, sem limite de sessões, por meio de tecnologias da informação e da comunicação.
Para tal, é necessária a realização de um cadastro (e-Psi) frente ao conselho regional de referência e sua autorização para que esses atendimentos possam vir a acontecer. No entanto, ainda se ressalta, nesse documento, que é vetada a possibilidade desse tipo de atendimento diante de situações de urgência e emergência e de desastres, sendo necessário o encaminhamento para o profissional que possa atender de forma presencial.
Diante do cenário atual, com recomendações de isolamento social pelas competências estaduais e municipais, o CFP publicou a Resolução CPF nº 4, de 26 de março de 2020, com nova regulamentação referente aos serviços prestados por meio de tecnologia de informação e da comunicação, suspendendo temporariamente a Resolução CFP nº 11/2018 durante o período da pandemia COVID-19.
Nessa nova regulamentação, a instituição reafirma a necessidade da inscrição e atualização do psicólogo na plataforma e-Psi, junto ao respectivo Conselho Regional de Psicologia – CRP, contudo, os psicólogos podem iniciar os trabalhos mesmo sem a autorização do CRP. Além disso, a nova resolução suspende os artigos que impossibilitam o atendimento por meio virtual nos casos de urgência e emergência e em casos de desastre.

Dificuldades do atendimento psicológico virtual
Muitos psicólogos foram impelidos a iniciar essa prática de atendimento, exigindo uma rápida adaptação deles e de seus clientes à nova modalidade de atuação. Contudo, alguns desafios encontrados ainda não puderam ser transplantados. Algumas das dificuldades identificadas foram:
Adaptação à nova configuração
Talvez esse tenha sido um dos obstáculos mais fáceis de serem manejados. Contudo, no início, psicólogos e clientes enfrentaram dificuldades e estão sendo convidados a rever seus posicionamentos e conceitos referentes ao atendimento online.
A forma como o psicoterapeuta oferta essa possibilidade de trabalho contribui ou não para a adesão e segurança do cliente. Garantir o sigilo, instruir sobre a organização do ambiente e pensar sobre o melhor espaço e horário a partir da nova rotina são argumentos necessários nessa negociação;
Atendimentos de casal e família
Aqui se insere um novo desafio relacionado ao desconforto de não estarem na “proteção” do setting terapêutico e na organização do modus operandi da conversa. Receosos também da não mediação presencial do terapeuta, muitos desses atendimentos foram inicialmente suspensos.
Porém, os terapeutas têm construído conjuntamente com seus clientes formas de lidar com essa adversidade a partir de discussões sobre a escolha de um espaço comum que permita o uso compartilhado da tecnologia ou, em casos de distanciamento geográfico, a possibilidade de que os membros utilizem o recurso tecnológico individual, o que exige uma maior sensibilidade e domínio de setting do terapeuta para assegurar o lugar de fala e a escuta de cada membro;
Falta de privacidade
Em muitas circunstâncias, os clientes afirmaram não contar com um espaço que pudesse preservar a privacidade e o sigilo do atendimento. Pode-se tentar como alternativa horários de menor circulação, ou utilizar atendimentos telefônicos ao invés da videochamada que tem sido o recurso mais frequente.
Porém, em não sendo possível a manutenção dos atendimentos, o psicólogo deve buscar informações sobre o bem-estar de seu cliente com certa periodicidade e se colocar disponível para encontrar soluções possíveis que não ultrapassem o limite da ética profissional;
Atendimento infantil
O atendimento com crianças exige a utilização de recursos lúdicos que o distanciamento limita. Mesmo a Resolução CFP nº 11/2018 ao prever esse tipo de atendimento mediante a autorização expressa de pelo menos um dos responsáveis legais, e a Resolução CFP nº 4/2020 não trazendo novas recomendações, a indisponibilidade de recursos tem feito com que alguns psicoterapeutas infantis elejam trabalhar com intervenções psicoeducativas com os pais ou a inclusão do cuidador na sessão do que o trabalho com a criança, a depender da demanda terapêutica a ser abordada.
Entretanto algumas crianças podem responder bem a esse tipo de atendimento, então, com a autorização dos responsáveis, é válida a tentativa, com possível redução do tempo da sessão;
Dificuldade financeira
A diminuição da produtividade e do consumo com a medida de isolamento social, como principal estratégia de combate a pandemia, promoverá uma crise econômica e aumento do desemprego.
Com isso, alguns clientes já estão sofrendo reformulações em seus ambientes de trabalho e os autônomos estão vendo a sua renda diminuir. Essas mudanças impactaram diretamente na manutenção da psicoterapia, com o pedido de espaçamento das sessões e, em alguns casos, a suspensão por tempo indeterminado. Entendemos, no entanto, que este é um cenário com reverberações econômicas e de saúde física e mental.
Então, nesse momento, é fundamental reforçarmos a importância da manutenção da psicoterapia, mesmo que, para isso, seja necessário renegociar valores, periodicidade e formas de pagamentos para não deixarmos nossos clientes desassistidos.

Reflexões sobre o atendimento psicológico online
Enquanto para alguns o atendimento online era uma modalidade ainda não experimentada, outros já usavam esse recurso no exercício da sua profissão e como forma de convidar múltiplas vozes ao atendimento psicoterápico.
Lion, Zilio e Terruggi (2018), falando sobre a experiência dos Processos Reflexivos a partir de atendimentos online, afirmam que estas se tornaram ferramentas “afetivas e efetivas” para lidarmos com a falta de tempo e espaço.
Barros e López (2018) afirmam que a narrativa de histórias a partir dos meios tecnológicos proporciona o potencial criativo e modifica as noções de “estar sozinho” ou “estar em presença”. Pensarmos as tecnologias de comunicação como uma forma de aproximação das pessoas, preservando a presença radical, abre-nos caminhos para vivenciarmos essa crise de saúde, econômica e de distanciamento.
Estar conectado possibilita a manutenção do diálogo com nossos clientes e a continuidade da construção de novas realidades. Oliveira e Labs (2019), que experimentaram atendimentos virtuais antes desse momento, já sinalizavam que a necessidade de ajuda das pessoas é tão extensa que é fácil elas aceitarem formas de suporte que ampliem as suas perspectivas, o que podemos perceber pela grande adesão dos nossos clientes a essa forma de atendimento.
Além disso, frente ao sentimento de incerteza que nos acompanhará nos próximos meses, a manutenção do vínculo com a figura de apego representada pelo psicoterapeuta torna-se indispensável para a preservação da saúde daqueles que encontram amparo e estabilidade emocional no diálogo costurado através de encontros virtuais.
Como teorizado por Bowlby (2002), constância e qualidade da conversa são condições essenciais para o desenvolvimento de apego seguro. Assim é possível pensarmos que a constância dos encontros terapêuticos e a qualidade dessas conversas favorecerão a manutenção de um lugar de segurança, extremamente necessário neste momento.
Desenvolvemos, então, a habilidade de abraçarmos e de nos sentirmos abraçados com um olhar visto pela tela do smartphone ou do computador e as palavras, mais do que nunca, precisam ter a potência de alcançar o outro e ofertar o aconchego de um abraço . Em tempo de crise, podemos nos reinventar como pessoa, como família, como profissional e como membro de uma sociedade que precisa se revisar.
Propomos que o exercício de diálogo por meio da tecnologia de comunicação possa ser realizado de uma forma mais ampla. Que os nossos interlocutores possam usar dessa experiência para convidar seus amigos e familiares a experimentarem essa nova forma de conversação. Agora, não apenas com conversas corriqueiras , mas em diálogos mais íntimos, com mais mergulhos internos, o que contribuirá para uma redução da sensação de isolamento e ofertará ganhos relacionais ao podermos nos conhecer e aos outros de formas mais profundas.
Nesse sentido, Bauman (2001) nos convidou a pensar sobre a liquidez da pós-modernidade, questionando-nos sobre o quanto investimos em nossas relações, quão resilientes somos ao lidarmos com as dificuldades que surgem ao longo dela.
Para o sociólogo, em uma época de tantos estímulos, é mais fácil o descarte, a troca, o novo de novo, e essa liquidez possui consequências que, por vezes, não olhamos. Os milhares de amigos nas redes sociais tamponam o olhar para a solidão, a fragilidade das relações e a insegurança que temos quanto ao afeto do outro.
A tão atual contribuição crítica ao mundo realizada por Bauman esteve válida até o início de 2020, mas ainda valerá ao final desse ano que tem colocado em questionamento todas as nossas certezas?
Ainda conseguiremos falar sobre a pós-modernidade e a liquidez das relações quando a nossa vulnerabilidade foi escancarada pelo COVID-19? Na contramão da cultura vigente até o momento, estamos buscando o outro para sermos acolhidos, falarmos sobre as nossas vulnerabilidades e medos, as capas de proteção usadas até hoje estão podendo ser baixas para que olhemos para as nossas humanidades.
Ainda estamos tentando compreender quais serão os impactos nos indivíduos e nas relações desse medo e desse distanciamento físico, mas pontuamos que essa pandemia também veio como aprendizado.
Enquanto psicólogas, estamos revisando os nossos valores, aprendendo a lidar com novos silêncios e a construir novos tipos de conexão, desenvolvendo habilidades para que possamos manter uma presença radical nesse novo contexto de atuação.
Salvaguardando todos os cuidados necessários à nossa saúde e ao do outro, usemos esse tempo também para nos voltarmos para dentro, para nos lapidarmos como humanos e profissionais e para ofertamos aos outros seres mais compassivos.
[1] Psicóloga. Formação Clínica em Psicoterapia Sistêmica de Casal e Família, Psicoterapeuta e Supervisora do Núcleo de Atendimento Social do Instituto Humanitas, Salvador/ Brasil.
[2] Psicóloga. Formação Clínica em Psicoterapia Sistêmica de Casal e Família, Psicoterapeuta do Instituto Humanitas, Salvador/ Brasil.
[3] Doutora em Psicologia da Educação, Universidade de Barcelona/ Espanha. Supervisora clínica e docente do Instituto Humanitas, Salvador/ Brasil.
[4] Psicóloga com formação clínica complementar na abordagem Sistêmica. Pós-graduada em Saúde Mental, Centro Universitário UniRuy | Wyden. Psicoterapeuta Sistêmica do Instituto Humanitas, Salvador/ Brasil.

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