Índice
A pandemia do coronavírus, pelo SARS-CoV-2, iniciada no ano de 2019 e prolongando até os dias atuais, já tirou mais de 2 milhões de vidas ao redor do mundo. O vírus se mostra ser mais que um simples agente infectante das vias aéreas superiores, causando repercussões inflamatórias sistêmicas e atingindo diversos órgãos, e, dentre eles, o cérebro, segundo pesquisas recentes.
Dessa maneira, é importante a compreensão da fisiopatologia de infecção desse agente no Sistema Nervoso Central e quais as possíveis repercussões desse acometimento cerebral para os pacientes em longo prazo, para uma melhor abordagem e seguimento dos mesmos.
Já é sabido o potencial infeccioso do SNC pelo coronavírus. Desde o surto do SARS em 2002, pelo SARS-CoV, já havia sido encontrado o vírus em cérebro de pacientes infectados. Assim sendo, imaginou-se que o SARS-CoV 2, da mesma forma que o SARS-CoV, poderia ter o mesmo potencial infeccioso e ser responsável por sintomas gustativos e olfativos persistentes.
O estudo “Magnetic Resonance Imaging Alteration of the Brain in a Patient With Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) and Anosmia” (Letterio S. Politi et al) já mostrava a presença de hiperintensidade cortical no giro reto direito e no bulbo olfatório, demonstrando o acometimento do SNC em pacientes com a doença aguda. Então, 28 dias após essa primeira ressonância, os pacientes apresentaram normalização da hiperintensidade cortical, porém apresentavam uma menor densidade no bulbo olfatório e um afinamento do mesmo, podendo ser responsável pela anosmia pós-infecção – e além disso, inferiu-se que o vírus atinge o SNC a partir das vias olfatórias.
Infecção do SNC e funcionalidade neural
Como dito e comprovado, vírus acomete o SNC, e isso abre um grande espectro de possíveis consequências para sua funcionalidade. Os danos ficam restritos às alterações sensitivas como a anosmia? Esses danos podem causar uma piora cognitiva ou sintomas neurovegetativos? Novos estudos, ainda em desenvolvimento, apontam que sim, podem.
Muitos pacientes que tiveram a doença e se recuperaram relatam uma variedade de sintomas neuropsiquiátricos, como redução da capacidade de memorização, dificuldade de concentração, sonolência diurna e também ansiedade (relatado por 41,9% de 642 pacientes com sintomas persistentes de pós-infecção, sendo a média de portadores de ansiedade no país igual a 10%), como mostra o estudo “SARS-CoV-2 infects brain astrocytes of COVID-19 patients and impairs neuronal viability”.
O estudo citado acima mostrou que o vírus infecta os astrócitos do cérebro, células responsáveis pela sustentação dos neurônios, pela regulação de substâncias potencialmente danosas aos neurônios, e fazendo uma depuração de neurotransmissores da fenda sináptica, dentre outras funcionalidades vitais para os neurônios. Essa análise foi feita por estudo com imuno-histoquímica, pelos professores Thiago Cunha e Alexandre Fabro, da FMRP-USP, com o cérebro de pacientes que vieram a óbito pela doença. Esse método utiliza anticorpos para marcar antígenos virais no tecido a ser estudado, causando mudança de coloração do anticorpo. Assim, se pergunta: lesões dos astrócitos infectados podem cursar com alterações importantes na funcionalidade do SNC?
Na tentativa de responder à questão levantada acima, foram realizadas ressonância magnética dos voluntários do estudo (81 pacientes com RT-PCR positivo para COVID e sem necessidade de hospitalização) e comparadas a dados de 145 pessoas não infectadas e hígidas. Os resultados, a priori, mostram que sim: lesões astrocitárias podem cursar com alterações importantes na funcionalidade neuronal.
Visando as possíveis alterações do funcionamento cerebral, o estudo mostrou uma diminuição da sincronização cerebral durante algumas atividades: um cérebro saudável é seletivo, e enquanto utiliza uma determinada área para uma dada função, ele “desliga” outras áreas, deixa elas em repouso. Dessa forma, ele é capaz de realizar suas tarefas com o menor gasto energético possível. Porém, nos pacientes com sintomas neuropsicológicos pós-infecção, mostrou-se que há um prejuízo dessa capacidade sincronizadora do cérebro, ou seja, várias áreas ficam ativadas em um mesmo momento, fazendo com que se aumente o aporte energético para realizar as tarefas pelo paciente, da mesma forma que reduz a capacidade de realizar e manter a atenção.
Fisiopatogenia
Agora, entendendo as alterações funcionais do cérebro, vem uma pergunta crucial: por quê? Como a lesão dos astrócitos podem causar tais alterações na funcionalidade neuronal? A reposta para essas perguntas ainda está sendo analisada, mas o mesmo estudo traz algumas pistas que podem auxiliar no entendimento.
Um outro braço do estudo “SARS-CoV-2 infects brain astrocytes of COVID-19 patients and impairs neuronal viability” mostrou que existe uma alteração na expressão de proteínas que são expressas nos astrócitos. O professor Paulo Saudiva (FMUSP) analisou as proteínas expressas nos astrócitos infectados e mostrou uma redução das mesmas em relação a astrócitos saudáveis. Ainda pôde inferir uma alteração no metabolismo energético dessas células – ocorre maior consumo de glicose nos astrócitos infectados, tentando manter um aporte energético para os neurônios em detrimento de sua própria sobrevivência, o que não ocorre de maneira totalmente eficaz: o cultivo de neurônios com astrócitos infectados levaram a uma maior mortalidade neuronal.
Então, conclui-se que a infecção dos astrócitos leva, ainda que indiretamente, à mortalidade neuronal aumentada. Com a redução das vias neuronais disponíveis, há a possiblidade do cérebro ativar outras vias simultaneamente, gerando uma hiperconectividade, a fim de restabelecer a comunicação nas áreas afetadas, levando à perda de sincronização das áreas cerebrais, como dito no tópico acima. Essa é uma hipótese levantada pela pesquisadora Clarissa Yassuda, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Conclusão
Como já era sabido, o SARS-CoV 2, assim como o SARS-CoV, infecta o sistema nervoso central, mais especificamente os astrócitos. Dessa forma, tal infecção leva a alterações pós-infecciosas de cunho neuropsicológico, como redução da concentração e memorização, ansiedade e sonolência, mesmo nos casos leves e oligossintomáticos da doença. Porém, ainda não se sabe ao certo se essas alterações são reversíveis e autolimitadas, com recuperação total dos pacientes acometidos ou se têm um caráter permanente, sendo necessária a continuidade dos estudos longitudinais para uma análise mais apurada desses casos.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Bibliografia:
Letterio S. Politi, MD,; Ettore Salsano, MD; Marco Grimaldi, MD – “Magnetic Resonance Imaging Alteration of the Brain in a Patient With Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) and Anosmia”, JAMAnetwork, 2020. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamaneurology/article-abstract/2766765
Lourenço, Ingrid; Nardelli, Mateus Jorge; Shiomatsu Gabriella; Ninomiya Vitor; Carvalho, Ricardo Tadeu de. Morte por COVID 19: como ela ocorre?
Crunfli, Fernanda et al. SARS-CoV-2 infects brain astrocytes of COVID-19 patients and impairs neuronal viability, 2021; Agência FAPESP. Disponível em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.10.09.20207464v1.full.pdf+html
Manniezo, Anny et al. PANORAMA DA COVID-19 NO MUNDO, 2020, disponível em: http://www2.ebserh.gov.br/documents/17018/1378123/Boletim+T%C3%A9cnico+009+Incid%C3%AAncia+comparativa+da+COVID-19+entre+os+paises+05052020+%281%29.pdf/0ac29aaa-2443-47bd-a318-f252ff265589
- Toledo, Carina; COVID-19 pode alterar o padrão de conectividade funcional do cérebro, aponta estudo; Agência FAPESP, 2021. Disponível em: https://agencia.fapesp.br/covid-19-pode-alterar-o-padrao-de-conectividade-funcional-do-cerebro-aponta-estudo/35081/
- Toledo, Carina; Estudo comprova que novo coronavírus afeta o cérebro e detalha seus efeitos nas células nervosas; Agência FAPESP, 2020. Disponível em: https://agencia.fapesp.br/estudo-comprova-que-novo-coronavirus-afeta-o-cerebro-e-detalha-seus-efeitos-nas-celulas-nervosas/34364/