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COVID e suicídio no Japão | Colunistas

COVID e suicídio no Japão | Colunistas

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Imagem de perfil de Comunidade Sanar

O suicídio matou mais que a COVID no Japão, em 2020. O aumento da taxa de suicídio foi de 14% entre as mulheres. Mais de 300 crianças e jovens perderam a vida por meio do autocídio. Aspectos como desemprego, estresse e os estigmas quanto à saúde mental são apontados por pesquisadores como fatores de risco. Nos tópicos abaixo, você vai entender como o cenário cultural interfere nos índices de suicídio do país asiático. Você saberá também qual o impacto das ondas da pandemia no número de suicídios do país e por que grupos específicos da população são mais afetados pelas circunstâncias da COVID-19.

Contextualizado: o suicídio no Japão

Há duas décadas o suicídio é uma das 10 principais causas de morte no Japão. Previamente à pandemia, a cada mês, entre um milhão de homens, aproximadamente 18 cometiam suicídio. Porém, até a segunda onda da COVID-19, a taxa de suicídio vinha caindo desde 2009.

Na cultura japonesa, manter a ordem e a harmonia social é extremamente importante. Meios primários de assegurar a coesão são a vergonha e o isolamento. Em casos de falta extrema, o suicídio pode ser concebido como um ato racional, autodeterminado e até mesmo virtuoso. É visto, por grande parcela da sociedade, como um autossacrifício de reconciliação social, um meio de se eximir da culpa.

Essa idealização do suicídio – apesar de combatida pela medicina contemporânea – tem raízes históricas ainda muito influentes no país. Os samurais, exemplos de alto grau de honra e integridade, são famosos por cometer o autocídio explicado acima: o suicídio de determinação; em japonês kakugo no jisatsu. Outra categoria de suicídio é denominada shinju, o suicídio dos apaixonados. O casal cuja relação não é aceita pela família encontra no suicídio o qual era (e é) amplamente romantizado pela literatura e mídia – a forma de “fazer as pazes” com a família e demonstrar a veracidade dos sentimentos. Esse contexto histórico-cultural corrobora para que a idealização se converta em maior aceitação do suicídio pelo povo japonês.

Ademais, alguns traços culturais são apontados como possíveis fomentadores e mantenedores da alta taxa de suicídio no país. Em geral, os japoneses se importam muito e têm consciência da opinião dos outros sobre eles. É característica a dificuldade de expressar emoções negativas, até mesmo para amigos e parentes próximos. Além disso, os estigmas relacionados aos fracassos e fraquezas podem ser maximizados pelo universo de perfeição das redes sociais. Quanto à saúde mental, ainda é um grande tabu falar sobre a busca por auxílio profissional no Japão. Esse estigma está presente inclusive no universo das celebridades, apesar dos esforços estatais nos últimos anos para mudar esse panorama.

Outro aspecto relevante é a forte associação entre fatores econômicos negativos e a elevação das taxas de suicídio na ilha oriental. O ano de 1998 foi marcado pela falência de grandes bancos e, também, pelo aumento mais significativo da história no índice de suicídio. 

Como a pandemia da COVID afetou a taxa de suicídio

Primeira onda: no olho do furacão

Durante os primeiros cinco meses de pandemia (fevereiro a junho de 2020) a taxa de suicídio regrediu 14% no Japão. A população adulta foi a mais positivamente impactada. Há possíveis explicações para a diminuição dos casos:

The pulling-together effect:

Estudos prévios demonstram que logo após grandes desastres – como o ataque terrorista em 11 de setembro ou o furacão Katrina em 2005 – há um declínio na taxa de suicídio.

As medidas de resposta à pandemia, coordenadas pelo governo:

– Os altos subsídios e benefícios, promovidos pelo governo, para empresas e cidadãos, adjunto à diminuição da carga horária de trabalho também foram fatores importantes.

– O fechamento das escolas pode ter sido protetivo para os estudantes, uma vez que pesquisas demonstram associação entre bullying e autocídio. Contudo, um estudo analisando a situação da primeira onda da COVID, não encontrou relação significativa entre o fechamento das escolas e a taxa de suicídio dos estudantes japoneses.   

Com a declaração do Estado de Emergência pelas autoridades japonesas, foi requerido à população o isolamento social e obediência aos protocolos estabelecidos. Nesse contexto, a mentalidade de conformidade com as regras e a preocupação de que as próprias atitudes sejam um fardo para os outros auxiliou na contenção da pandemia.

Segunda onda: o caos

Entre julho e outubro, as taxas de óbito aumentaram assustadoramente. Segundo dados preliminares do Ministro da Saúde do Japão, em 2020 a taxa de suicídio foi 3.7% maior que em 2019.  Ano passado, houve 20.919 óbitos por suicídio e 3.460 em virtude da infecção pelo coronavírus. O número de homens que se suicidaram foi muito próximo ao ano anterior, permanecendo mais elevado que entre as mulheres. No entanto, entre elas o aumento foi de 14% na taxa anual. As principais afetadas foram as donas de casa (mulheres casadas sem emprego formal).

Toda a população esteve sujeita à ansiedade, agitação e medo de infectar-se com a COVID-19. Devido ao distanciamento social, aumentou a solidão, tédio e inatividade dos japoneses. Ademais, o acesso restrito aos serviços de saúde potencialmente prejudicou a saúde mental. Outro aspecto é a forte relação entre insegurança financeira e suicídio no país. Mas, uma vez que toda a nação foi exposta a esses “gatilhos”, o que explica a elevação nos índices de suicídio especialmente de mulheres e jovens?

A violência familiar e o acúmulo de atividades domésticas durante a pandemia podem ter perturbado gravemente a saúde mental das mulheres, principalmente das donas de casa. O desemprego é apontado como outro estressor agravante e, consequentemente, se relaciona ao aumento da taxa de suicídio das japonesas. Durante meses, a taxa de desemprego foi crescente no país, o que prejudicou principalmente ramos dominados por funcionárias, como a hotelaria, turismo e empregos temporários.

  Fonte: banco de imagens do Canva.

Mais de 300 crianças e jovens se suicidaram, em 2020, no Japão. Durante a segunda onda, a taxa de suicídio mensal elevou-se em 49%. O contexto da pandemia em virtude da COVID restringiu o contato social e os momentos de lazer, o que pode ter maximizado a dificuldade de lidar com o estresse. A volta às aulas presenciais, no mês de setembro, pode ter sido um impulsor de ansiedade, assim como o desemprego, o qual afetou especialmente os trabalhadores mais jovens. Ademais, o suicídio das famosas estrelas de televisão, filmes e séries: Yuko Takeuchi, Sei Ashina,  Haruma Miura e Hana Kimura pode ter sido mais um gatilho.

É válido pontuar ainda que apenas tiveram aumentos significativos de morte nas cidades cujos índices de suicídio eram mais baixos antes da pandemia. Nas cidades consideradas de alto risco de suicídio (devido às taxas prévias), isso não foi observado.

Conclusão: como proteger a saúde mental da população

O cenário da pandemia da COVID impactou vertiginosamente os índices de suicídio no Japão. Desse modo, urgem medidas de prevenção ao autocídio. De acordo com o artigo de Takanao Tanaka e Shohei Okamoto, é fundamental que medidas preventivas adaptadas às populações mais vulneráveis sejam estabelecidas, principalmente nas localidades mais afetadas. Os pesquisadores indicam que a redução nas horas de trabalho pode ser um fator protetivo. Salientam ainda que é preciso identificar os fatores estressores nos ambientes de trabalho e escolar, para mitigar os efeitos psicológicos negativos entre os estudantes e trabalhadores.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências:

TANAKA, T., OKAMOTO, S. Increase in suicide following an initial decline during the COVID-19 pandemic in Japan. Nat Hum Behav (2021). https://doi.org/10.1038/s41562-020-01042-z

Pandemic raises Japan suicide rate after decade of decline: https://www.japantimes.co.jp/news/2021/01/22/national/japan-suicide-rate/ Acesso em: 20 fev. 2021.

The Pressure to Be Perfect Turns Deadly for Celebrities in Japan:

https://www.nytimes.com/2020/10/05/world/asia/japan-suicide-celebrities.html Acesso em: 20 fev. 2021.

RUSSELL, R., METRAUX, D., TOHEN, M., Cultural influences on suicide in Japan. Psychiatry Clin. Neurosci., 71: 2-5. (2017). https://doi.org/10.1111/pcn.12428

ISUMI, A, et al. Do suicide rates im children and adolescentes change during school closure in Japan? The acute effect of the first wave of COVID-19 pandemic on children and adolescente mental health. Child & Abuse Neglect, 110 (2020) 104680. https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2020.104680