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A deficiência da enzima glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD) é a enzimopatia mais prevalente e estima-se que esteja presente em 400 milhões de pessoas ao redor do mundo.
A deficiência de G6PD é um modelo de interação genótipo-fenótipo, visto que os pacientes são, em sua maioria, assintomáticos, a não ser quando submetidos a estresse oxidativo.
Nesses momentos os pacientes apresentam anemia hemolítica aguda (AHA), uma manifestação hematológica importante. Através desse texto, você vai compreender a base histórica, genético-epidemiológica, as manifestações clínicas e o manejo dessa doença.
História
No século 19, pediatras gregos, italianos e portugueses observaram a ocorrência de anemia severa e hemoglobinúria em crianças após o consumo de feijões de fava, daí a alcunha de favismo. A observação mostrou que o favismo era recorrente nas mesmas pessoas e estava presente em famílias. Nos anos 1920, observou-se que alguns pacientes, quando eram tratados para malária com primaquina e plasmoquina, apresentavam AHA. Não havia suspeita alguma de que ambas as manifestações estavam conectadas.
Em 1956, um grupo de Chicago relatou que as hemácias das pessoas sensíveis à primaquina eram deficientes em G6PD. Pouco depois, em 1958, outro grupo em Genova na Itália achou a mesma deficiência em crianças com história prévia de favismo. Os achados combinados mostraram que as duas manifestações eram causadas pela deficiência de G6PD e que essa era genética e a herança estavam ligadas ao X.
Bases bioquímicas e genéticas
A G6PD é uma enzima que “arruma a casa”, está presente em todas as células do organismo e age como a primeira enzima do ciclo das pentoses. Apesar de o produto final de sua reação ser a formação de uma pentose, é importante ressaltar que a sua atividade gera duas moléculas de NADPH, sendo esse seu principal trunfo. O NADPH é um doador de elétrons importante em muitos processos celulares. Na maioria das células, outras enzimas também produzem NAPDH e, mesmo que haja deficiência de G6PD, isso não ocasionará problemas.
O mesmo não pode ser dito para as hemácias, que sacrificam muitas de suas organelas e enzimas na sua maturação para exercer sua principal função de carregamento de oxigênio. Radicais livres podem ser produzidos no processo de transporte de oxigênio nas hemácias, nesse ponto o NADPH é fundamental para combater o estresse oxidativo. Vale lembrar que a deficiência de G6PD nunca é completa e, caso fosse completa, seria fatal. A atividade residual da G6PD presente é capaz de manter as hemácias funcionando, mas no limite de sua atividade. Quando ocorre um estresse oxidativo exógeno, as células não são capazes de aumentar sua produção de NADPH; consequentemente, a hemoglobina e outras proteínas são danificadas e as células são eventualmente abocanhadas por macrófagos ou sofrem hemólise devido ao dano. Você pode conferir na Figura 1 uma representação de como a G6PD é fundamental para o combate do estresse oxidativo nas hemácias.

Fonte: LUZZATO et al. 2016
O gene que codifica a enzima G6PD se encontra no braço longo do cromossomo X (Xq28), o que demonstra a já mencionada herança ligada ao X. Isso acarreta algumas possibilidades fenotípicas como demonstrado na Figura 2. Ao contrário do que se imagina, a deficiência de G6PD não é mais comum em homens; apesar de mulheres homozigotas serem muito mais raras que homens hemizigotos, mulheres heterozigotas são muito mais numerosas. Por que isso é importante? Porque na prática clínica você vai encontrar mulheres heterozigotas onde o fenótipo de atividade da G6PD se apresenta como normal e em outras o fenótipo se mostra como a deficiência de G6PD, assim como visto nas homozigotas.

Fonte: National Institute of Health (NIH)
Manifestações clínicas
A deficiência de G6PD, a despeito de na maior parte da vida das pessoas se manter sem repercussão, pode se manifestar clinicamente de três formas. Na sua prática clínica, você pode encontrar a deficiência de G6PD como icterícia neonatal, anemia hemolítica aguda e anemia hemolítica crônica não-esferocítica. Você pode compreender um pouco mais sobre cada manifestação abaixo.
Icterícia neonatal
Os recém-nascidos sempre apresentam um certo nível de hiperbilirrubnemia devido à necessidade de assumir a remoção de bilirrubina que previamente era excretada pela placenta. Icterícia neonatal é definida como altos níveis de bilirrubinas para o peso e idade do recém-nascido. Se não tratada, pode evoluir para o kernicterus, uma encefalopatia crônica que ocasiona atraso no desenvolvimento neuropsicomotor.
Uma das causas de icterícia neonatal é a deficiência de G6PD, mas não se sabe ao certo o seu mecanismo nessa ocorrência, e a deficiência de G6PD aumenta a incidência de icterícia em neonatos tanto do sexo feminino quanto masculino. Postula-se que neonatos deficientes de G6PD apresentam um turnover de heme maior, mas sem anemia ou com graus leves de anemia.
Anemia hemolítica aguda
A AHA é a apresentação mais clássica de deficiência de G6PD. Manifesta-se como episódios agudos de hemólise intravascular em um paciente previamente assintomático, geralmente após a ingestão de certas drogas ou alimentos e diante de infecção. Os sintomas da AHA são mal-estar, dor abdominal e lombar, hematúria, icterícia e palidez. Níveis elevados de LDH e esfregaço de sangue com anisocitose, policromasia e poiquilócitos são achados precoces nos episódios de AHA. Reticulócitos também estão presentes como forma de resposta da medula óssea a hemólise. Favismo é o nome utilizado para AHA causada por feijão de fava, que contém divicina, um potente agente oxidante.
O curso da hemólise é usualmente autolimitado, possivelmente porque as células mais velhas (que apresentam níveis mais baixos de G6PD) são mais propensas à lise e são substituídas por células jovens que conseguem combater a agressão oxidativa.
Anemia hemolítica crônica não-esferocítica
A anemia hemolítica crônica não-esferocítica é uma manifestação rara da deficiência de G6PD que ocorre em homens com variantes esporádicas da enzima. Ela se manifesta quando a hemácia não consegue manter níveis suficientes de NADPH para evitar o estresse oxidativo de seu próprio metabolismo. Por isso mantém um processo de hemólise crônica e o paciente apresenta icterícia, anemia, aumento de cálculos biliares, esplenomegalia e pode necessitar de suporte transfusional crônico. Os pacientes com a forma crônica podem apresentar quadros agudos quando expostos às mesmas substâncias que os outros pacientes, porém a dose necessária é geralmente menor para causar a crise hemolítica.
Diagnóstico
O diagnóstico é feito sumariamente pela avaliação do teste de pontos de fluorescência ou análise quantitativa da atividade de G6PD por espectrofotometria. O teste de fluorescência é rápido e barato, porém ele pode apresentar falso negativo em mulheres heterozigotas, visto que as hemácias analisadas são as que não sofreram hemólise e, por sua característica de mosaico, essas pacientes apresentam um teste normal. Alguns pacientes e famílias se beneficiam da avaliação genética da mutação para descrição, mas esses testes são sumariamente utilizados em pesquisa.
Manejo
O manejo da deficiência de G6DP é sobretudo preventivo; após o diagnóstico, é muito importante que você oriente seu paciente sobre a lista de medicamentos e alimentos que não podem ser consumidos por esses pacientes. Condutas de educação são fundamentais. Confira um pouco mais abaixo uma lista de medicamentos e alimentos não recomendados para pacientes com deficiência de G6PD.
Cada uma das apresentações clínicas da doença tem seu manejo específico. A icterícia neonatal é tratada da mesma forma que outros tipos de icterícia, através de fototerapia ou exsanguinotransfusão nos casos mais graves. A AHA é inicialmente tratada através do tratamento do fator causador do estresse oxidativo, seja a suspensão de medicações ou ingesta de alimentos ou o tratamento infeccioso apropriado. Em casos em que a anemia se torna grave, pode-se utilizar de transfusão de concentrado de hemácias. Para a forma crônica da doença, o tratamento preventivo é ainda mais importante, visto que esses pacientes podem apresentar complicações graves em quadros de agudização.
Pontos Práticos
Em pacientes previamente hígidos com episódio de AHA, a deficiência de G6PD deve ser considerada. Os diagnósticos diferenciais de anemia hemolítica autoimune (AHAI) e hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) são muito menos comuns.
A icterícia neonatal associada a deficiência de G6PD pode ocorrer após o 3º dia de vida (depois da alta hospitalar de um recém-nascido sadio) e não apresenta diferenças em incidência entre homens e mulheres. É importante orientar os pais para o retorno ao atendimento se icterícia súbita e sobre a importância da primeira consulta aos 7 dias de vida.
Analgésicos | Antimaláricos | Citotóxico/Antibacterianos |
Aspirina, acetofenitidina, probenecid | Cloroquina, hidroxicloroquina, primaquina, quinino | Cloranfenicol, sulfametoxazol+trimetropim, ácido nalidíxico, nitrofurantoína |
Drogas Cardiovasculares | Outras | Alimentos |
Dapsona, sulfametoxipirimidina, sulfapiridina, sulfanilamida, sulfasalazina | Alfa-metildopa, ácido ascórbico, hidralazina, azul de metileno, naftaleno (naftalina), urato oxidase, Vitamina K | Feijão de fava, água tônica, vinto tinto, blueberries (mirtilo) |
Conclusão
A deficiência de G6PD é a doença que muito bem demonstra a interação genótipo-fenótipo e o conceito de farmacogenética, pela sua manifestação clínica a partir da exposição ao estresse oxidativo. Agora, você consegue avaliar e fazer o correto diagnóstico dessa doença e lembrar dessa prevalente, mas por vezes esquecidas, enzimopatia genética, quando confrontado com pacientes com icterícia neonatal e anemia hemolítica aguda.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências:
- Cappellini MD, Fiorelli G. Seminar Glucose-6-phosphate dehydrogenase deficiency [Internet]. Vol. 371, www.thelancet.com. 2008. Available from: www.thelancet.com
- Luzzatto L, Nannelli C, Notaro R. Glucose-6-Phosphate Dehydrogenase Deficiency. Vol. 30, Hematology/Oncology Clinics of North America. W.B. Saunders; 2016. p. 373–93.
- Mason PJ, Bautista JM, Gilsanz F. G6PD deficiency: the genotype-phenotype association. Blood Reviews. 2007;21(5):267–83.
- Luzzatto L, Seneca E. G6PD deficiency: A classic example of pharmacogenetics with on-going clinical implications. Vol. 164, British Journal of Haematology. 2014. p. 469–80.
- Associazione Italiana Favismo – www.g6pd.org