Artigo carinhosamente dedicado às minhas professoras de Pediatria e Imunologia, Dra. Fátima Marciano e Dra. Mônica Leitão, que me ensinaram tudo que sei sobre APLV.
A alergia à proteína do leite de vaca (APLV) é um tema muito atual, de suma importância na medicina, sobretudo na pediatria e na imunologia, justamente porque é o tipo mais comum de alergia alimentar em bebês de até dois anos de idade e o número de casos tem aumentado consideravelmente por causas ainda em estudo.
Entretanto, é um tema que desperta muitas dúvidas nos familiares, em termos de diagnóstico, abordagem, manejo dos casos e principalmente: como descomplicar e orientar a vida da família que tem um bebê com APLV.
A primeira dúvida a ser esclarecida (talvez a mais comum de todas) é: qual a diferença de APLV e intolerância à lactose? A intolerância à lactose é a dificuldade de digestão de um CARBOIDRATO, presente no leite, chamado lactose.
Ela acontece porque há falta da enzima responsável pela digestão desse carboidrato, a lactase. Porém, a intolerância à lactose é um fenômeno mais frequente em adultos, pois a produção de lactase diminui com a idade e, claro, a quantidade de lactase produzida varia muito de uma pessoa para outra.
Outro aspecto importante quanto à intolerância é que ela é dose-dependente, ou seja: quanto mais lactose o indivíduo consumir, mais sintomas ele terá. Isso não exclui a possibilidade de um bebê ter intolerância à lactose, mas é um quadro menos frequente.
A APLV, no entanto, é uma doença imunológica, causada pela hipersensibilidade à PROTEÍNA do leite de vaca (caseína, lactoalbumina e outras) e pode ser mediada ou não por IgE.
Essas proteínas têm peso molecular alto e, justamente por isso, têm potencial alergênico, assim como ocorre com o amendoim, soja e frutos do mar.
É predominante na faixa etária pediátrica e não depende de dose, ou seja, TRAÇOS de leite (quantidades ínfimas) podem desencadear quadros graves, evoluindo até mesmo para anafilaxia. Sim, a APLV pode levar à anafilaxia e merece devida atenção.
O diagnóstico da APLV é essencialmente clínico. Portanto, uma boa anamnese e um exame físico detalhado são fundamentais.
As APLV mediadas por IgE se manifestam imediatamente até 2h após a ingestão do alérgeno, enquanto as não mediadas por IgE podem demorar até 7 dias para manifestar.
São muitos os sinais e sintomas da APLV, porém, alguns são muito frequentes quando se trata da descoberta da doença porque são sintomas que preocupam e assustam os pais, como o sangue nas fezes e o edema de glote, por exemplo.
SISTEMA | SINAIS/SINTOMAS |
Gastrointestinal | Sangue nas fezes, vômitos, diarreia, síndrome de má absorção, dor abdominal, desconforto. |
Respiratório | Congestão nasal, prurido, edema de glote, sibilos generalizados, tosse, dispneia. |
Cutâneo | Urticárias, exantemas, angioedema, prurido. |
Neurológico | Sonolência, rebaixamento do nível de consciência, convulsões. |
Oral | Edema de língua, lábios e até palato. |
Cardiovascular | Hipotensão, arritmia, choque. |
Exceto raros casos em que a APLV se manifesta mesmo durante a amamentação materna exclusiva, os bebês APLV costumam se apresentar hígidos durante a AME, ganhando peso normalmente, hábito intestinal dentro do esperado, sem qualquer queixa.
As manifestações se iniciam quando esse bebê começa a ingerir leite de vaca e derivados, ou a mãe inclui fórmulas para complementação.
Portanto, diante de uma história favorável à APLV com sinais e sintomas ao exame físico, a primeira medida a ser tomada é RETIRAR 100% o leite de vaca e derivados da dieta, tanto da criança como da mãe.
É sempre importante lembrar os pais de que o leite sem lactose também é proibido, para evitar equívocos.
Essa fase se chama “fase de exclusão” e as manifestações clínicas tenderão a desaparecer em até 30 dias, sendo os sintomas gastrointestinais os mais demorados na recuperação. Os cutâneos tendem a melhorar logo nos primeiros dias.
Além da clínica, já existem alguns testes imunológicos disponíveis para APLV, como o TPO (teste de provocação oral), a dosagem de IgE e o APT (teste de contato atópico com alimentos).
Contudo, esses testes não são obrigatórios nem definidores de diagnóstico e são utilizados somente na necessidade de se investigar diagnósticos diferenciais ou caso o paciente não apresente melhora clínica.
Apesar dos testes não serem amplamente utilizados, é imprescindível que seja feito Hemograma completo para monitoramento de possível anemia por síndrome de má absorção, sobretudo nos bebês que apresentarem sangue nas fezes.
Por fim, a grande resposta que os pais esperam do pediatra é: como tratar essa doença? O que mudará na vida da família?
Como já dito anteriormente, a primeira medida é a exclusão do alérgeno da dieta, que consiste na fase 1 do manejo/condução da APLV.
A boa notícia é que, na maioria dos casos, ocorre a tolerância oral ao alérgeno com a passagem do tempo, mostrando excelente melhora do quadro e não havendo quaisquer manifestações na vida adulta.
Portanto, a fase 2 consiste justamente em INCLUSÃO por etapas e muito bem monitorada de doses cada vez maiores de leite. Nos casos de APLV IgE mediada, essa fase deve ocorrer sob supervisão médica e em local adequado para atender qualquer manifestação grave anafilática.
Entretanto, caso ocorra emergência devido à consumo acidental do alérgeno, o tratamento é puramente sintomático em PS ou UPA.
MANIFESTAÇÃO | ABORDAGEM/TRATAMENTO |
Anafilaxia com edema de glote, labial, exantema, hipotensão, rebaixamento do nível de consciência, etc. | Tratamento sintomático imediato em PS ou UPA, monitorando sinais vitais, adrenalina IM, expansão de volume e corticoides.* |
Queixas em consultório (criança não grave) incluindo sangramento nas fezes, manifestações cutâneas, obstrução nasal, etc. | Abordagem ambulatorial com exclusão do leite da dieta, pedido de exames e acompanhamento periódico. Uso de anti-histamínicos e corticoides para controle dos sintomas cutâneos e de via aérea. |
*Posologia determinada pelo médico.
Além de tratar sintomas, o bebê precisará de mudanças alimentares, sobretudo na oferta de leite.
Com a mãe zerada no consumo de produtos que contenham leite, o ideal será sempre a AME até os 2 anos. Porém, sabemos que isso nem sempre é possível, e por isso existem as fórmulas infantis, fabricadas na tentativa de se aproximar cada vez mais da composição nutricional do leite materno.
Existem as fórmulas de proteína íntegra, parcialmente hidrolisadas, extensamente hidrolisadas e de aminoácido livre. A diferença entre eles é que a molécula de proteína é cada vez mais “quebrada”, até chegar ao aminoácido livre, que não gera hipersensibilidade.
No leite materno, a proteína dos produtos que a mãe consome sai como extensamente hidrolisada. Portanto, se o bebê manifestou APLV mesmo estando em AME, significa que será necessário fornecer fórmula de aminoácido livre.
Caso esse bebê (maioria) só tenha manifestado APLV durante o consumo de leite de vaca in natura ou fórmula de proteína íntegra, a escolha será a fórmula extensamente hidrolisada.
O manejo dos casos graves, sobretudo as APLV mediadas por IgE, necessitam de maior cuidado em relação a higiene ambiental, relações interpessoais e alimentação.
Um exemplo: Na creche, a criança com APLV deve ter suas refeições preparadas em recipientes separados das dos demais alunos, pelo risco de haver traços de leite no recipiente.
Esses utensílios também devem ser lavados com esponja exclusiva para eles e deve-se manter distanciamento entre a criança com APLV das outras crianças enquanto elas consomem refeições com leite, até ser feita a higiene bucal delas.
Atenção aos cosméticos (sobretudo sabonetes) à base de leite. Eles também são proibidos nos pacientes com APLV.
Em resumo, a APLV é uma doença completamente diferente da intolerância à lactose, tem origem imunológica e pode se manifestar com uma grande variedade de sinais e sintomas, em diversos sistemas.
Hoje, a oferta de tratamento e manejo da doença é maior, com a possibilidade de uso de fórmulas infantis de boa qualidade e suporte farmacológico.
É importante que a família seja bem orientada pelo pediatra e, se possível, que haja acompanhamento com nutricionista para evitar possíveis carências nutricionais.