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O ritmo intestinal normal varia de três vezes por semana a três vezes por dia. O aumento da frequência por mais de três vezes ao dia, com diminuição da consistência das fezes, que provocam urgência ou desconforto abdominal, provavelmente é um quadro de diarreia. A consistência é determinada pela relação entre água fecal e a capacidade de retenção de água dos sólidos insolúveis fecais.
É importante ter em mente que diarreia é diferente de urgência fecal e de pseudodiarreia.
A primeira, é a eliminação involuntária das fezes, geralmente por distúrbios neuromusculares ou problemas estruturais anorretais, sem alteração do peso e consistência.
Já o último, é a eliminação frequente de pequenos volumes de fezes, geralmente com urgência, sem alteração da consistência e do peso.
Epidemiologia da Diarreia
O Global Burden of Disease Study constatou que a diarreia foi a nona principal causa de morte em todo o mundo em 2015. A maioria dos casos de diarreia está associada a alimentos e fontes de água contaminados, e mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso ao saneamento básico.
Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo sofrem um ou mais episódios de diarreia aguda a cada ano. Das 100 milhões de pessoas acometidas anualmente por diarreia aguda nos EUA, quase metade tem de restringir as atividades, 10% consultam um médico, cerca de 250 mil precisam de hospitalização e aproximadamente 5 mil morrem.
A diarreia infecciosa aguda continua sendo uma das causas mais comuns de mortalidade nos países em desenvolvimento, principalmente entre crianças pobres. A diarreia aguda recorrente em crianças de países tropicais resulta em enteropatia ambiental com impactos de longo prazo nos desenvolvimentos físico e intelectual.
A doença diarreica ocorre com frequência inicial em países com recursos limitados, sobrepostos a casos epidêmicos de diarreia, disenteria ou diarreia aquosa.
Diarreia: Revisão de Anatomia
O intestino delgado, formado pelo duodeno, jejuno e íleo, é o principal local de absorção dos nutrientes dos alimentos ingeridos. Estende-se desde o piloro do estômago até a junção ileocecal, onde o íleo se une ao ceco do intestino grosso. O duodeno é a parte mais curta do intestino delgado com cerca de 25cm, sendo também a porção mais larga e fixa.
Possui trajeto em forma de C ao redor da cabeça do pâncreas. Tem início no piloro do estômago e termina na flexura duodenojejunal no lado esquerdo. A maior parte do duodeno está fixada pelo peritônio à estruturas na parede posterior do abdome e é considerada parcialmente retroperitoneal. O duodeno é dividido em quatro partes: superior, descendente, inferior e ascendente.
A segunda parte do intestino delgado, o jejuno, começa na flexura duodenojejunal, onde o sistema digestório volta a ser intraperitoneal. A terceira parte do intestino delgado, o íleo, termina na junção ileocecal, a união da parte terminal do íleo e o ceco. Juntos, o jejuno e o íleo têm 6 a 7 m de comprimento, o jejuno representa cerca de dois quintos e o íleo cerca de três quintos da parte intraperitoneal do intestino delgado.
A maior parte do jejuno está situada no quadrante superior esquerdo (QSE) do compartimento infracólico, ao passo que a maior parte do íleo está no quadrante inferior direito (QID). A parte terminal do íleo geralmente está na pelve, de onde ascende, terminando na face medial do ceco. Embora não haja uma linha de demarcação nítida entre o jejuno e o íleo, eles têm características distintas, que são muito importantes e estão descritas na tabela abaixo:
Tabela 1: Características diferenciais entre jejuno e íleo.
Imagem: Jejuno. Fonte: Netter, Frank H. Atlas De Anatomia Humana. Gen Guanabara Koogan. 7ª Ed. 2019.
Imagem: Íleo. Fonte: Netter, Frank H. Atlas De Anatomia Humana. Gen Guanabara Koogan. 7ª Ed. 2019.
Já o intestino grosso (formado por apêndice vermiforme, colo ascendente, transverso, descendente, sigmoide, reto e canal anal) é o local de absorção de água dos resíduos indigeríveis do quimo líquido, convertendo em fezes semissólidas, que são temporariamente armazenadas e acumuladas até que haja defecação.
O intestino grosso se diferencia do delgado por presença de algumas estruturas, como apêndices omentais; as 3 tênias do colo, mesocólica, omental e livre; presença de saculações e o maior calibre.
O intestino grosso começa na papila ileal, mas sua primeira parte, o ceco, é uma bolsa pendente inferior à papila ileal. O ceco é semelhante a uma bolsa e a parte mais larga do intestino grosso é completamente intraperitoneal e não tem mesentério, de modo que é móvel na fossa ilíaca direita.
A papila ileal é uma associação de válvula e esfíncter fraco, cuja abertura ativa periódica permite a entrada do conteúdo ileal e forma uma válvula unidirecional essencialmente passiva entre o íleo e o ceco, que impede o refluxo.
O apêndice vermiforme é um divertículo intestinal, rico em tecido linfoide, que entra na face medial do ceco, em geral profundamente à junção do terço lateral com os dois terços mediais da linha espinoumbilical.
Na maioria das vezes, o apêndice vermiforme é retrocecal, mas em 32% dos casos desce para a pelve menor. O colo tem quatro partes: ascendente, transverso, descendente e sigmoide.
O colo ascendente é uma continuação superior, secundariamente retroperitoneal do ceco, que se estende entre o nível da papila ileal e a flexura direita do colo.
O colo transverso, suspenso pelo mesocolo transverso entre as flexuras direita e esquerda do colo, é a parte mais longa e mais móvel do intestino grosso. O nível de descida depende principalmente do biotipo.
O colo descendente ocupa posição secundariamente retroperitoneal entre a flexura esquerda do colo e a fossa ilíaca esquerda, onde é contínuo com o colo sigmoide.
O colo sigmoide, com formato de S típico, suspenso pelo mesocolo sigmoide, tem comprimento e disposição muito variáveis, terminando na junção retossigmoidea. As tênias, saculações e apêndices omentais terminam na junção localizada anteriormente ao terceiro segmento sacral.
Imagem: Intestino grosso. Fonte: Netter, Frank H. Atlas De Anatomia Humana. Gen Guanabara Koogan. 7ª Ed. 2019.
Fisiopatologia da Diarreia
A maioria dos casos de diarreia são decorrentes da alteração do transporte de líquidos e eletrólitos e pouco dependente da motilidade da musculatura lisa. Normalmente, cerca de 9L penetra no trato gastrointestinal em um dia, sendo apresentado ao duodeno, cerca de 2 L. Apenas 0,2 L é excretado nas fezes.
Se qualquer perturbação no transporte de eletrólitos ou a presença de solutos não absorvíveis no lúmen intestinal reduzissem a capacidade de absorção do intestino delgado em 50%, o volume de líquido apresentado diariamente ao cólon normal excederia sua capacidade de absorção diária máxima de 4 L. Isso resultaria em uma excreção de fezes de l.000 mL, que, por definição, é diarreia.
Da mesma forma, se o cólon encontra-se danificado de tal forma que não pode absorver nem mesmo o volume de 1,5 L normalmente apresentado pelo intestino delgado, restará um volume fecal superior a 200 ml/24 horas, também sendo definido como diarreia.
Ao nível celular, ocorre excesso de líquido no lúmen intestinal quando há deficiência na capacidade de transporte de eletrólitos do intestino delgado ou grosso ou quando cria-se um gradiente osmótico desfavorável (inibição da absorção de Na+ ou secreção ativa de Cl–) que não pode ser suplantado pelos mecanismos normais de absorção de eletrólitos.
Na membrana basolateral dos enterócitos, a atividade da bomba de Na+/K+ ATPase mantém baixas concentrações intracelulares de Na+. Isto força um fluxo absortivo contínuo deste eletrólito junto com água.
SE LIGA! Se solutos pouco absorvíveis ou não absorvíveis estão presentes no lúmen, como lactose em indivíduos com deficiência de lactase, ou mesmo presença de substâncias, como a enterotoxina da E. coli e a toxina da cólera, os mecanismos de absorção de sódio serão incapazes de criar este gradiente favorável, levando a permanência de líquido no lúmen, formando a base para diarreia osmótica e secretória.
A diarreia inflamatória se caracteriza por lesão e morte de enterócitos, atrofia de vilosidades e hiperplasia de criptas. As criptas hiperplásicas preservam sua capacidade secretória de Cl–. Na inflamação grave ocorre extravasamento linfático, além da ativação de vários mediadores inflamatórios, que promovem aumento da secreção de Cl–, contribuindo para a diarreia. A interleucina 1 (IL-1) e o fator de necrose tumoral (TNF) também são liberados no sangue, causando febre e mal-estar.
Classificação da Diarreia
A classificação das diarreias pode ser feita com base no tempo de duração do sintoma, nas características clínicas e topográficas e na fisiopatologia. Assim, diarreias agudas são aquelas com duração menor que 2 semanas, sendo normalmente causadas por infecções.
A crônica acima de 4 semanas. Por fim, a diarreia persistente, aquela de duração entre 2 e 4 semanas. Quanto ao mecanismo fisiopatológico, são categorizadas em osmótica, secretória, inflamatória, disabsortiva e funcional, sendo as 4 primeiras diarreias orgânicas e a última não orgânica.
Quanto à classificação padrão
Quanto às características clínicas e topográficas, é dividida em alta (do delgado) e baixa (cólon), e diferenciada por meio do volume por evacuação, frequência, presença de tenesmo e restos alimentares, sangue e/ou muco.
Quanto a classificação fisiopatológica
Diarreia osmótica
Ocorre por acúmulo de solutos osmoticamente ativos não absorvíveis no lúmen intestinal. Assim, ocorre retenção de líquidos intraluminais e consequentemente diarreia. É a partir deste mesmo mecanismo que funcionam os laxativos. Uso de antibióticos também pode causá-la. As características deste tipo de diarreia é o fato de ter gap osmolar alto, melhora em jejum e com suspensão de substâncias osmóticas. Ex.: deficiência de dissacarídeos, alta ingestão de carboidratos pouco absorvíveis (sorbitol, manitol, lactulose), abuso de laxativos.
SE LIGA NO CONCEITO: O que é gap osmolar fecal? Trata-se de uma estimativa da contribuição de eletrólitos para a retenção de água no lúmen intestinal. Fórmula: 290- 2x (Na+ + K+) fecal.
Diarreia secretória
Distúrbio no processo hidroeletrolítico pela mucosa intestinal, por meio do aumento de secreção de íons e água para o lúmen ou inibição da absorção por meio de drogas ou toxinas. Diferentemente da osmótica, tem gap osmolar baixo, não melhora com jejum e é responsável por um grande volume de fezes aquosas. Este é o tipo de diarreia provocada por E. coli enterotoxigênica, Vibrio cholerae, Salmonella sp.
SE LIGA! A análise de eletrólitos fecais e gap osmolar é de grande importância no diagnóstico diferencial da diarreia crônica. Em pacientes com diarreia osmótica o gap osmolar é maior do que 125 mosm/Kg. Nesse caso, a osmolaridade é dependente de outras substâncias nas fezes que não eletrólitos, já quando o gap osmolar é menor do que 50 mosm/Kg o diagnóstico provável é de diarreia secretória. Em processos mistos o gap varia entre 50 a 124 mosm/Kg.