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Displasia arritmogênica do ventrículo direito | Colunistas

Displasia arritmogênica do ventrículo direito | Colunistas

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RESUMO

É uma doença hereditária, predomínio do padrão autossômico dominante, do músculo cardíaco, que afeta predominantemente o ventrículo direito e se caracteriza pela perda progressiva do tecido miocárdico ventricular com sua substituição por tecido fibrogorduroso.

O local mais acometido do ventrículo direito é a região subepicárdica da parede livre do ventrículo direito (VD), com mutações em mais de 12 genes.

EPIDEMIOLOGIA

Manifesta-se tipicamente entre a terceira e a quinta décadas de vida, e sua prevalência estimada varia de 1:2000 a 1:5000, sendo maior na população caucasiana e atletas. Apresenta-se como responsável de aproximadamente 5 a 20% dos casos de morte súbita em jovens e atletas. Cerca de 30% dos pacientes diagnosticados referem história familiar.

A evolução clínica e natural da doença varia de um paciente assintomático com discretas anomalias estruturais do VD, que é chamada de fase oculta, para fase arrítmica, onde apresenta palpitações, síncopes e arritmias sintomáticas do VD, podendo até chegar à morte súbita, passando para fase de falência de VD com progressiva substituição do tecido miocárdico por tecido fibrogorduroso e chegando na fase de falência biventricular.

  • Fase oculta: trata-se da fase subclínica, na qual o paciente se mantém assintomático e com discretas anormalidades estruturais no VD ou com ausência delas. Nessa fase, a MSC pode ser a primeira manifestação da doença.
  • Fase arrítmica: o paciente apresenta palpitações, síncope e, geralmente, arritmias ventriculares sintomáticas de origem no VD, desencadeadas por esforço fisico. As arritmias podem variar desde ectopias ventriculares isoladas, (taquicardia ventricular não sustentada) (TVNS) com morfologia tipo bloqueio do ramo esquerdo (BRE), até chegar a episódios de MSC por fibrilação ventricular.
  • Falência ventricular direita: a progressiva substituição do tecido miocárdico por tecido fibrogorduroso leva a um comprometimento progressivo da função do VD, podendo resultar em insuficiência cardíaca.
  • Falência biventricular: em um estágio avançado da doença, ocorre o envolvimento do septo interventricular ocasionando insuficiência cardíaca congestiva. Nessa fase, pode ocorrer a formação de trombose mural, especialmente em aneurismas que se formam no VD ou na presença de fibrilação atrial. O fenótipo pode mimetizar uma cardiomiopatia dilatada avançada, dificuldando o diagnóstico diferencial nas fases mais avançadas da doença.

FISIOPATOLOGIA

As células do coração funcionam de forma interligada umas com as outras. O que a displasia arritmogênica do ventrículo direito (DAVD) provoca é justamente um defeito nessas conexões, o que pode provocar a morte das células cardíacas. Posteriormente, no lugar das células saudáveis mortas, formam-se cicatrizes fibrosas e camadas de gordura.

A doença acontece com maior frequência no lado direito do coração (ventrículo direito). Nos casos mais graves, pode acometer também o lado esquerdo. Na maioria das vezes, a doença começa da parte de fora do coração – epicárdio – para dentro.

O grande problema daDisplasia Arritmogênica do Ventrículo Direito é que essas novas áreas formadas pela cicatriz das células mortas  e o tecido gorduroso possuem comportamento elétrico diferente das células antigas. A eletricidade que faz o coração bater passa por essas novas estruturas com velocidade e forma diferentes do normal. Esse fato pode provocar arritmias graves e morte súbita.

A arritmia mais grave dos pacientes com Displasia Arritmogênica do Ventrículo Direito é a taquicardia ventricular. Os ventrículos, por sua vez, são os compartimentos de onde o coração efetivamente bombeia o sangue para o nosso organismo, por esse fato a doença é tão perigosa.

Outra característica fundamental é que ela é uma doença evolutiva, ou seja, que se agrava e, mesmo com o tratamento, pode reaparecer com o tempo. No caso dos pacientes assintomáticos, o problema surge pelo fato de não tratam a doeça – já que não possuem manifestações sintomáticas -, sendo assim, podem criar tantas camadas de fibra e gordura no coração que ele enfraquece e dilata, provocando insuficiência cardíaca.

QUADRO CLÍNICO

O sintoma mais comum da Displasia Arritmogênica do Ventrículo Direito é a palpitação, mas com uma característica diferente, ela está geralmente associada à prática de atividades físicas intensas. Muitos atletas que estimulam o coração de forma severa têm morte súbita provocada por essa doença. São comuns também relatos de atletas que, a partir de um momento, sentem o coração bater mais rápido do que deveria.

Em pessoas com DAVD, o coração pode alcançar um ritmo tão acelerado que não consegue mais encher de sangue adequadamente. Essa condição provoca prejuízos graves à circulação sanguínea e ao fornecimento de oxigênio para as células. Falta de ar, fraqueza e até perda da consciência podem ser observados.

A atividade física intensa acelera a evolução da doença e aumenta o risco de ocorrência de uma arritmia fatal. O indivíduo que é atleta e tem DAVD precisa parar suas atividades esportivas. Nas pessoas sedentárias, a velocidade de evolução do problema, em geral, é menor.

Os principais sintomas de apresentação são tonturas, palpitações e síncope; no entanto, a maioria dos pacientes é assintomática e a suspeita diagnóstica surge na sequência de alterações eletrocardiográficas inespecíficas, alterações ecocardiográficas ou na documentação de arritmias ventriculares.

ELETROCARDIOGRAMA

Ritmo sinusal

O ECG de 12 derivações costuma apresentar anormalidades na maioria dos pacientes portadores de C/DAVD, indicando que as alterações eletrocardiográficas podem anteceder o desenvolvimento das arritmias ventriculares malignas. Além disso, pode auxiliar na identificação de familiares afetados.Entretanto, embora a análise do ECG seja fundamental na estratificação inicial, cerca de 12% dos pacientes com C/DAVD podem apresentar um ECG normal, o que reforça a necessidade de que a avaliação clínica tome como base os critérios propostos pelo TFC 2010.

Além das alterações eletrocardiográficas classicamente descritas na C/DAVD, outras alterações podem ser identificadas no ECG basal: bradicardia sinusal, anormalidades na onda P (secundárias ao envolvimento atrial) e distúrbio da condução AV (mais frequentemente BAV de primeiro grau). É rara a ocorrência de distúrbio grave da condução atrioventricular na C/DAVD.

Vários estudos multicêntricos demonstraram que a inversão da onda T em V1-3 é o achado ECG mais comum na C/DAVD. Em decorrência disso, no TFC 2010, essa alteração da onda T passou a ser considerada um critério maior para seu diagnóstico. Já a presença de inversão da onda T apenas em V1 e V2 é um critério menor. A inversão da T é secundária às alterações estruturais do VD. A observação de inversão além de V3 traduz um estágio muito avançado da doença com dilatação grave do VD e possível envolvimento VE, podendo, dessa maneira, ser considerado um indicativo de pior prognóstico.

Um dos achados comuns da C/DAVD é o bloqueio completo ou incompleto do ramo direito (BRD), especialmente nos pacientes com grave comprometimento estrutural, e sua presença pode comprometer a interpretação das anormalidades da despolarização ventricular. Os estudos de mapeamento epicárdico e histopatológicos demonstraram que o BRD na C/DAVD não se deve a um bloqueio proximal no ramo direito, mas, representa o resultado das alterações distais inerentes ao retardo da propagação do estímulo nas regiões de transformação fibrogordurosa.

A onda Epsilon, uma deflecção de baixa frequência que ocorre ao término do QRS e antes da onda T, embora incomum, é um sinal da presença de um estágio avançado da C/DAVD. Ela reflete a presença de potenciais tardios de grande monta no ECG de superfície. Esses retardos de ativação são mais bem diagnosticados com o ECG-AR. Atualmente, um ECG-AR positivo é considerado um critério menor.

Também foi incluída como critério diagnóstico a detecção de um retardo de ativação final, o qual é definido como prolongamento da duração do QRS (> 110 ms) e da onda S (≥ 55 ms) em V1-3.

Arritmias

O aumento da suscetibilidade à taquiarritmia ventricular e à MSC é a característica principal da C/DAVD.Geralmente as arritmias ventriculares, na forma isolada e frequente, ou de taquicardia ventricular não sustentada e sustentada, estão associadas a sintomas de palpitação, tontura, pré-sincope e síncope. Devido à origem mais comum no VD, essa arritmia ventricular apresenta a morfologia tipo BRE com eixo variável na dependência do local acometido.

O registro de ectopia ventricular frequente no Holter de 24 horas (> 500 EVs/24h) é considerado um critério menor.

Embora não relacionada à mortalidade, a presença de arritmia atrial está associada a um incremento na morbidade da doença e ao aumento de terapias inapropriadas pelo CDI. A incidência de arritmia atrial na C/DAVD varia entre 14% e 24%, e a fibrilação atrial é a arritmia supraventricular mais prevalente. A ocorrência de arritmia atrial está particularmente associada à presença de insuficiência tricúspide, ao envolvimento atrial e à dilatação significativa do VD.

EXAMES COMPLEMENTARES

– Ecocardiograma

Uma avaliação estrutural e funcional é fundamental para o diagnóstico da C/DAVD. A ecocardiografia, em decorrência de sua acessibilidade, tem sido o exame de imagem de escolha para o início de investigação da C/DAVD. No entanto, a geometria única e o padrão complexo de contração do VD, juntamente com o aumento do reconhecimento de que anormalidades estruturais podem não ser aparentes nas fases mais precoces da doença, o que limita sua utilidade diagnóstica. Os achados ecocardiográficos sugestivos de C/DAVD incluem: (1) anormalidade global ou segmentar da parede ventricular em associação à dilatação da cavidade (principalmente direita); (2) VD com hipertrofia e disfunção sistólica; (3) dilatação da via de saída do VD (diâmetro > 30 mm).

– Ressonância magnética cardíaca

Na última década, a RMC despontou como a modalidade de imagem de escolha na investigação da C/DAVD, por possibilitar uma avaliação não invasiva morfológica e funcional, bem como por analisar alterações teciduais (transformação fibrogordurosa) que caracterizam essa patologia. No entanto, a interpretação incorreta dos achados da RMC é a razão mais comum para diagnósticos errados de C/DAVC. Os erros mais comuns incluem o diagnóstico inadequado de infiltração de gordura fisiológica ou artefactual, a má interpretação de variantes normais do movimento da parede do VD e o diagnóstico inapropriado em casos de sarcoidose e miocardite.

Essa conotação “patológica” dada à existência de gordura no VD levou a uma alta incidência de falsa positividade, principalmente quando utilizados os critérios do TFC de 1994. O TFC de 2010 trouxe uma melhor definição dos critérios a serem buscados na RMC, deixando-se de lado a utilização de protocolos específicos para pesquisa de gordura na câmara direita.

As anormalidades da RMC na C/DAVD podem ser agrupadas em anormalidades morfológicas e funcionais (Figura 1). Essas anormalidades foram inicialmente observadas no classicamente descrito “triângulo de displasia” que se refere ao trato de entrada do VD, ao trato de saída e ao ápice. No entanto, um estudo recente sugere que essas alterações envolvem, preferencialmente, a região epicárdica subtricuspídea, a parede basal livre de VD e a parede lateral do VE, com o ápice do VD e o endocárdio geralmente poupados.

Anormalidades regionais do movimento da parede do VDAnormalidades morfológicas
Aneurismas focaisInfiltração de gordura intramiocárdica
Dilatação do VDFibrose focal
Disfunção diastólica/sistólica do VDDiminuição focal da espessura da parede do VD
 Hipertrofia de parede
 Desarranjo trabecular
 Hipertrofia da banda moderada
 Alteração do diâmetro da via de saída do VD
Figura 1: anormalidades funcionais e morfológicas encontradas na RMC

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO

Existe uma forma de pontuação para ajudar no diagnóstico, o Task Force Criteria revisado – C/DAVD (Figura 2), onde os pacientes devem apresentar dois critérios maiores, ou um maior e dois menores, ou quatro menores para serem diagnosticados com DAVD.

A avaliação inicial com exames complementares inclui, ECG 12 derivações, ressonância magnética cardíaca, holter de 24h, ecocardiograma transtorácico e análise genética. O diagnóstico definitivo requer o achado histológico de tecido fibrogorduroso.

O tratamento se baseia na redução da mortalidade por arritmia ou por insuficiência cardíaca, prevenção da progressão da doença, melhora dos sintomas e da qualidade de vida.

Recomenda-se não participação de esportes competitivo ou de resistência. O uso de terapia antiarrítmica e betabloqueadores é uma boa opção, a indicação do cardiodesfibrilador implantável para pacientes de alto risco e risco intermediário varia de classe indicação I até a classe IIb, o uso das demais medicações para insuficiência cardíaca varia em função do comprometimento estrutural.

Os tratamentos com drogas antiarrítmicas são muito receitados para pacientes com Displasia Arritmogênica do Ventrículo Direito. Em especial, aqueles à base de Amiodarona e, mais recentemente, o Sotalol. Porém, como a incidência da DAVD em pacientes jovens costuma ser proporcionalmente grande, é preciso ficar atento à exposição destes indivíduos aos efeitos colaterais dos medicamentos por muito tempo. O Sotalol, por exemplo, ao contrário do que se espera, pode acabar provocando ainda mais arritmia em algumas pessoas. A Amiodarona, por sua vez, pode provocar problemas na tireoide e infiltração no pulmão, levando a uma fibrose extensa.

Já o tratamento por Ablação (cauterização) costuma ter bons resultados, mas deve ser utilizado de forma coadjuvante. Nesses casos, o procedimento de Ablação é diferente. Ele precisa ser feito na parte externa do coração, por fora, que é de onde os focos de arritmia começam. Por isso, o procedimento é feito através de uma punção no peito (um acesso transtorácico), em vez das punções na virilha, pelas veias femorais.

Trata-se de uma técnica mais complexa, mas ainda assim segura. O pós-operatório também é um pouco mais demorado que o da ablação convencional. O paciente costuma ficar até três dias em observação e volta à vida normal, em média, de três a quatro semanas após o tratamento.  

Para garantir a segurança, mesmo após a Ablação, os pacientes com Displasia Arritmogênica do Ventrículo Direito precisam implantar um CDI, um Cardioversor Desfibrilador Implantável, para prevenir morte súbita caso a arritmia tenha recorrência.

Autor: Sophia Benatti Proietti

Instagram: @_sophiabenatti


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


REFERÊNCIAS

1. ELIAS, Jorge et al. Displasia arritmogênica do ventrículo direito. Arquivos brasileiros de cardiologia, v. 70, p. 449-456, 1998.

2. ESTRELA, Sara Tavares. Displasia arritmogénica do ventrículo direito. Tese de Doutorado. Universidade da Beira Interior.

3. NETO, Jorge Elias et al. Cardiomiopatia/Displasia Arritmogênica do Ventrículo Direito (C/DAVD) – O Que Aprendemos após 40 Anos do Diagnóstico desta Entidade Clínica. SanarMed, 2019.

4. SILVA, Rogério Ferreira da et al. Displasia arritmogênica do ventrículo direito. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, v. 91, p. e38-e40, 2008.