Farmacologia

Envenenamento: como lidar com intoxicações exógenas? | Colunistas

Envenenamento: como lidar com intoxicações exógenas? | Colunistas

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Imagem de perfil de Isabella Rezende

A definição de tóxico ou veneno engloba qualquer substância danosa que possa promover alterações em um ou mais sistemas fisiológicos. De modo geral, a intoxicação pode ser intencional, como por tentativa de suicídio, ou involuntária, após uso de medicações com metabolização diminuída. A gravidade do quadro clínico depende diretamente de fatores como tipo de tóxico, dose, tempo de exposição, comorbidades associadas, idade, letalidade da substância, interações medicamentosas e via de intoxicação. Todavia, todos os pacientes devem ser considerados potencialmente graves em decorrência da possibilidade de piora dos sintomas.

Desse modo, o profissional de saúde deve agir com cautela e rapidez no manejo do doente, a fim de identificar o tóxico, promover tratamento específico e reduzir complicações (Figura 1). Além disso, deve-se lembrar que a intoxicação exógena é incluída na lista de agravos de notificação compulsória desde 2011, tendo registros de cerca de 2 milhões de pacientes intoxicados anualmente.

Figura 1: Fluxograma do atendimento ao paciente

Atendimento inicial do paciente

Após entrada no serviço médico, o paciente deve ser transferido para a sala de emergência, onde realiza-se monitorização da pressão arterial, oximetria, cardioscopia e punção de acessos venosos periféricos calibrosos. Posteriormente, utiliza-se a ordem ABCDE, iniciando com a avaliação da perviedade das vias aéreas (A), analisando a necessidade de uma via aérea definitiva.

Depois, avalia-se a respiração (B) por frequência respiratória e ausculta pulmonar, em que, na presença de hipoxemia, o quadro pode ser revertido pela oferta de oxigênio suplementar. A avaliação cardiovascular (C) deve conter informações do status hemodinâmico do paciente, como pulso, perfusão, cor, temperatura e presença de sangramentos, podendo realizar reposição volêmica (10-20 mL/Kg de solução cristaloide) em casos de hipotensão – se refratária, acrescentar droga vasopressora com efeito inotrópico ou antídoto específico, se o tóxico tiver sido identificado.  

A avaliação do nível de consciência (D) deve ser feita pela escala de coma de Glasgow (Figura 2), também sendo necessário realizar avaliação pupilar e identificação de sinais como fasciculações, convulsões e síncope. A exposição completa do paciente (E) pode auxiliar na classificação da síndrome tóxica, além de ser capaz de revelar marcas que demonstrem o modo de contaminação. Alguns odores característicos também podem ajudar na identificação do tóxico, como o hálito etílico após uso de álcool ou benzodiazepínicos e o odor de alho em intoxicações por organofosforados.

Figura 2: Escala de Coma de Glasgow.

Além disso, a avaliação clínica engloba análise da cavidade oral na procura de resquícios do tóxico, avaliação das narinas, análise da salivação – cavidade oral seca ou sialorreia, avaliação de bexigoma, indícios de trauma e presença de sinais como desidratação, edema, alteração nos ruídos hidroaéreos, rigidez abdominal, entre outros.

A anamnese é extremamente importante e tem que conter dados como descrição do tóxico (se identificado), tempo entre a exposição e o atendimento médico, via de uso, gravidade dos sintomas, circunstâncias da intoxicação, intervenções terapêuticas realizadas, histórico médico, alergias, história psiquiátrica, entre outras informações que possam auxiliar no diagnóstico. A coleta desses dados pode ser feita com o paciente, com familiares ou com a equipe de atendimento pré-hospitalar.

Alguns exames laboratoriais e complementares podem ser realizados, como hemograma completo, glicemia, ureia, creatinina, eletrólitos (Mg2+, Na+, K+, Ca2+), ALT, AST, osmolaridade, gap osmolar, urina I, eletrocardiograma e exames toxicológicos. A dosagem sérica quantitativa do tóxico será útil apenas em situações onde exista relação entre níveis séricos, toxicidade e tratamento. Como fármacos que podem ser dosados, tem-se antiarrítmicos, barbitúricos, lítio, etilenoglicol, anticonvulsivantes, metanol, digoxina, salicilatos, metotrexato, monóxido de carbono, cianeto, entre outros.

A intoxicação exógena entra como diagnóstico diferencial de qualquer paciente comatoso no pronto-socorro, mas também deve-se pensar em trauma, infecções, lesões do SNC, distúrbios metabólicos, transtornos psiquiátricos, doenças cardiovasculares, entre outros.

Com base nos achados no exame físico e na anamnese, o quadro do paciente deve ser classificado como uma síndrome tóxica definida. A estabilização do paciente deve ocorrer ao mesmo tempo que a avaliação, sendo que o tratamento pode ser específico com uso de antídotos ou antagonistas (Figura 3), além de existirem medidas de descontaminação e eliminação para interromper a exposição à substância exógena causadora da intoxicação.

Figura 3: Antídotos e antagonistas

A eficácia da lavagem gástrica depende do tempo de ingestão do tóxico, em que até o 5º minuto tem-se recuperação total do tóxico, taxa que cai para 8 a 32% na primeira hora. Desse modo, para a indicação desse procedimento, o tempo de ingestão da substância deve ser menor que 2 horas, sendo contraindicado na presença de rebaixamento do nível de consciência, ingestão de corrosivos ou risco de hemorragia do trato gastrointestinal.

O modo de realização envolve o paciente em decúbito lateral esquerdo com a cabeceira a 20 graus. Insere-se uma sonda nasogástrica ou orogástrica no paciente, promovendo infusão de soro fisiológico (250 ml por vez), até no máximo 6l em adultos ou 4l em crianças. Só cessa o procedimento quando o retorno de soro é apenas um líquido límpido.

A utilização de carvão ativado também só é indicada até 2h da ingestão da substância, podendo ser eficaz em intoxicações causadas por fenobarbital, ácido valproico, entre outras substâncias de liberação entérica prolongada. É contraindicado em recém-nascidos, gestantes, agitação psicomotora ou intoxicação por substâncias não adsorvíveis – álcool, metanol, cianeto, ferro, lítio e flúor – ou corrosivas.

A hemodiálise é indicada em caso de substâncias com baixo peso molecular, pequeno volume de distribuição, baixa afinidade com proteínas plasmáticas e baixo clearence endógeno. Como tóxicos dialisáveis tem-se: lítio, fenobarbital, salicilatos, ácido valproico, metanol e teofilina. Podem ocorrer complicações como instabilidade hemodinâmica e complicação de punção de acesso vascular.

A hemoperfusão pode ser empregada para intoxicações por substâncias adsorvíveis pelo carvão ativado, pequeno volume de distribuição e baixa afinidade/ligação com proteínas plasmáticas, como teofilina e carbamazepina. Pode-se ter algumas complicações, como complicação de punção de acesso vascular.

A alcalinização da urina pode ser usada em intoxicações moderadas a graves por salicilato, fenobarbital, antidepressivos tricíclicos ou clorpropamida. Como contraindicações tem-se hipervolemia, insuficiência renal e hipocalemia não corrigida. Para a realização deve-se infundir bicarbonato de sódio 8,4% 1-2 mEq/kg em bolus ou infusão contínua de 150 mEq de bicarbonato em 1 litro de soro glicosado a 5% de 200-250 ml/h. Deve-se monitorizar nível sérico de potássio, bicarbonato e pH, corrigindo distúrbios conforme necessário. A meta de pH urinário é de maior que 7,5 e pH sérico de 7,55 a 7,6.

Como outras maneiras de descontaminação, tem-se cutânea por lavagem abundante com água, ocular com soro fisiológico 0,9% da região medial para lateral ou lavagem intestinal por administração de substância ativamente osmótica (polietilenoglicol) para aumentar a peristalse.

Síndrome anticolinérgica

A síndrome anticolinérgica ocorre por interferência na ação da acetilcolina, promovendo inibição do sistema parassimpático – se assemelha a uma intoxicação com hiperatividade adrenérgica.

Quadro clínico

Pode-se ter midríase, taquicardia, retenção urinária, tremor, convulsões, redução da peristalse, hipertensão, delirium, coma, entre outros. Como tóxicos prováveis tem-se alcaloides beladonados (atropina e escopolamina), miorrelaxantes, antiespasmódicos, ciclopégicos, anti-histamínicos, antipsicóticos, antidepressivos tricíclicos, entre outros.

Tratamento

Se houver intervenção precoce, o tratamento pode ser feito por lavagem gástrica e uso de carvão ativado, devendo conter tratamento sintomático e de suporte, como uso de benzodiazepínicos para agitação e sondagem vesical como prevenção de bexigoma. O antídoto utilizado é a fisiostigmina EV, um fármaco parassimpaticomimético que promove a inibição da acetilcolinesterase, enzima responsável pela hidrólise da acetilcolina.

Síndrome colinérgica

A síndrome colinérgica ocorre por drogas que se ligam à enzima acetilcolinesterase, fato que promove perda de função e impede a hidrólise da acetilcolina, perpetuando sua ação.

Quadro clínico

Tem-se sintomas como bradicardia, broncoespasmo, diaforese, miose, sialorreia, lacrimejamento, vômitos, náuseas, incontinência urinária e fecal, depressão do SNC, entre outros. Como tóxicos prováveis tem-se inibidores da colinesterase, como organofosforados, fisiostigmina, carbamatos, pilocarpina e gás sarin.

Tratamento

O tratamento precoce pode ser feito por lavagem gástrica e carvão ativado, além de fornecer tratamento sintomático e de suporte. Como principal antagonista deve-se utilizar a atropina (2 – 5 mg EV) em bolus, repetindo a dose após 15 minutos até redução das secreções. Em alguns países tem-se a disponibilidade da pralidoxima como antagonista específico.

Síndrome adrenérgica ou simpatomimética

Ocorre por agentes que promovem a estimulação da atividade simpática por aumento da liberação, bloqueio da recaptação ou interferência no metabolismo das catecolaminas, além de poder ocorrer estimulação direta dos receptores adrenérgicos.

Quadro clínico

Tem-se sintomas como ansiedade, agitação, sudorese, hipertensão, taquicardia, tremor de extremidades, midríase, dor precordial, entre outros. Como tóxicos prováveis cita-se anfetamina, cafeína, efedrina, cocaína, teofilina, entre outros.

Tratamento

O tratamento pode ser feito por lavagem gástrica e carvão ativado, a depender do tempo de intoxicação. Além disso, usa-se suporte hemodinâmico e tratamento sintomático para reverter os sintomas. Em casos de hipertensão NÃO SE DEVE USAR betabloqueadores, pois provocam hipertensão paradoxal e aumentam a vasoconstrição coronariana. Em casos de taquicardia usa-se lidocaína e para angina utiliza-se nitrato ou bloqueadores de canal de cálcio.

Síndrome serotoninérgica

A síndrome clínica serotoninérgica é resultante da estimulação excessiva de receptores serotoninérgicos centrais e periféricos, geralmente por iatrogenia ou interação medicamentosa.

Quadro clínico

Como sintomas tem-se confusão, agitação, midríase, taquicardia, trismo, diarreia, hipertonia e uma tríade clássica de sintomas: alterações no status mental, anormalidades neuromusculares e hiperatividade autonômica. Como tóxicos prováveis tem-se inibidores da MAO, ISRS, tricíclicos, ecstasy, entre outros. Algumas interações medicamentosas podem causar síndrome serotoninérgica grave, como fenelzina + meperidina e paroxetina + buspirona.

Tratamento

O tratamento deve ser feito por suspensão do agente causal e descontaminação intestinal. Além disso, deve-se promover suporte hemodinâmico e tratamento sintomático como benzodiazepínicos em caso de convulsão ou rigidez muscular e nitroprussiato em caso de hipertensão e taquicardia.

Síndrome sedativo-hipnótica

A síndrome sedativo-hipnótica pode ser causada por álcool, benzodiazepínicos, barbitúricos e outras drogas que agem nos receptores GABA e aumentam o influxo de cloreto, promovendo depressão do SNC.

Quadro clínico

De modo geral, os sintomas incluem rebaixamento do nível de consciência, miose, bradicardia, depressão respiratória, sonolência, coma, hipotensão, disartria, hipotermia, convulsões, entre outros.

Tratamento

A intoxicação por álcool e derivados aumenta a inibição mediada pelo GABA, gerando efeito ansiolítico e sedativo, além de ter efeitos sinérgicos com depressores do SNC e inibir a gliconeogênese. Deve-se realizar lavagem gástrica, 100 mg de tiamina ou dez ampolas de complexo B para prevenção da síndrome de Wernicke-Korsakoff, além de glicose endovenosa SEMPRE após a administração de tiamina.

Os barbitúricos aumentam a inibição do GABA no SNC, aumentam a liberação de cloreto e bloqueiam os receptores AMPA de glutamato, além de liberarem metabólitos que promovem um coma cíclico – principal sinal de intoxicação aguda. O tratamento é feito por medidas de suporte, carvão ativado em casos mais graves ou hemodiálise.

Os benzodiazepínicos possuem um sítio alostérico nos canais GABA, que potencializam sua ação e o influxo de cloreto, tendo efeito sedativo, ansiolítico, hipnótico e relaxante muscular. O tratamento da intoxicação é feito por suporte clínico e flumazenil como antídoto.

Síndrome narcótica por opioides

Os opioides se ligam aos seus receptores ligados a proteínas G inibitórias, de modo que as ações terapêuticas e tóxicas estão relacionadas ao tipo de receptor (m, k, d).

Quadro clínico

Tem-se depressão respiratória (hipoventilação podendo levar até a apneia), depressão neurológica (sonolência, torpor e coma), convulsões, distúrbios psíquicos e sensoriais (euforia e disforia), miose puntiforme bilateral (dada apenas pelos opioides), calor, rubor facial, prurido (por liberação de histamina), náusea, vômito, retardo no esvaziamento gástrico, constipação, hipotensão arterial, taquicardia ou bradicardia, arritmia, rabdomiólise e injúria renal aguda. Como tóxicos prováveis tem-se morfina, meperidina, dolantina, fentanil, heroína, codeína, tramadol, entre outros.

Tratamento

Deve ser realizado por suporte clínico, monitorização, tratamento de sintomáticos e Naloxone como antídoto – 0,4 a 2mg EV em bolus, podendo repetir e aumentar a dose, a cada 2-3 min fazendo no máximo 15 mg. Pode ocorrer a presença de efeito rebote, já que essa medicação apresenta meia vida curta (1h a 1h30min).

Além dessas, pode-se ter síndromes alucinogênicas por uso de LSD e NMDA, intoxicações com sangramento por alteração da coagulação, síndrome de abstinência, síndrome extrapiramidal, entre outras. Os pacientes devem ficar em observação por no mínimo 6 horas, em decorrência da possibilidade de manifestações tardias. Em casos de intoxicações provocadas, os pacientes devem ser avaliados por um psiquiatra antes da alta.

O texto acima é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Referências

VELASCO, Irineu Tadeu; BRANDÃO NETO, Rodrigo Antônio; SOUZA, Heraldo Possolo de; et al. Medicina de emergência: abordagem prática, 2019.