Carreira em Medicina

Inteligência Artificial: uma nova forma de exercer a medicina | Colunistas

Inteligência Artificial: uma nova forma de exercer a medicina | Colunistas

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Eu, Robô e o futuro da sociedade produtiva

O ano é 2035, robôs inteligentes e seres-humanos dividem espaço na sociedade e interagem de forma harmônica. Algumas tarefas mais tediosas, como varrer a casa ou fazer compras, agora são responsabilidade integral da máquina.

Numa simbiose de dar inveja, essa é a proposta do “Eu, robô”, filme inspirado na obra literária de Isaac Asimov, que brinca com o imaginário ao criar uma interação quase mágica entre humanos e máquinas.

Isaac Asimov – autor de Eu, Robô

Nos contos publicados em 1950, Asimov traça o desenvolvimento dos robôs artificialmente inteligentes e seus papéis sociais, elaborando um sistema de deveres e obrigações aos dispositivos inteligentes.¹

Desde pequenas engenhocas até máquinas extremamente complexas, os robôs tornaram-se, na obra de Asimov, reais facilitadores da vida cotidiana e permitiram que seres humanos pudessem desfrutar de mais tempo livre para trabalhar suas relações interpessoais.

Hoje, o fantástico mundo de “Eu, Robô”, com suas inteligências artificiais, mescla-se à nossa realidade e assume os mais diversos setores da sociedade produtiva quando o assunto é automatização dos serviços.

Eu, Inteligência Artificial

Do programa de streaming que recomenda os melhores filmes até laudar uma radiografia, a inteligência artificial (IA) tem gradualmente se inserido no nosso cotidiano e mudado a forma como interagimos com a tecnologia.

A transformação, muitas vezes sutil e silenciosa, esconde algumas nuances desafiadoras deste novo mundo tecnológico. Profissões, relações interpessoais e a até a forma como consumimos e votamos – veja os relatos da Cambridge Analytica – estão sendo alteradas graças à IA e, ao contrário do que se imaginava, ninguém está livre dessa interferência tecnológica.

Segundo Kai-Fu Lee, autor do best-seller Inteligência Artificial, a tecnologia atingirá a todos, sem distinção por diplomas, abarcando tanto os profissionais altamente qualificados quanto aqueles com baixa escolaridade.²

Algumas especializações da medicina já vêm experimentando essa interferência da inovação, como a dermatologia e os softwares capazes de reconhecer imagens de lesões cancerígenas com maior especificidade e sensibilidade que os próprios peritos na área.³

Assim, uma nova carreira médica, mais tecnológica e inovadora, está sendo moldada pela inteligência artificial e é fundamental que saibamos nos adaptar e entender o que ela pode nos proporcionar.

2. Mas o que é inteligência artificial?

Herbert Simon, considerado pai da inteligência artificial, conceitua a tecnologia pela habilidade de a máquina performar em tarefas que usualmente, quando realizadas por seres humanos, requerem pensar com inteligência.⁴

Em outros termos, inteligência artificial nada mais é do que o processo de recriar, através da máquina, o que é naturalmente típico para inteligência humana, como reconhecer uma imagem até dirigir um carro.

Para tal, a fim de recriar a inteligência humana, pesquisadores da IA estabeleceram a abordagem intitulada de Deep Learning (DL). Atática, semelhante às redes de neurônios biológicos, consiste em construir neurônios artificiais, interconectados, que transmitem e recebem informação.¹

O Deep Learning, conforme Geoffrey Hinton explica, é inspirado na habilidade do cérebro humano em assimilar padrões complexos de dados através do reforço das conexões sinápticas.⁵ Desse modo, para que os neurônios artificiais leiam um raio-x, por exemplo, é necessário um largo espectro de imagens previamente rotuladas, com o diagnóstico feito por radiologistas, que treinam a máquina e fornecem alicerce para o aprendizado.

Uma vez treinada, a máquina está pronta para ler imagens não-rotuladas e aprofundar o conhecimento, indo cada vez mais fundo em camadas e desmembrando a informação contida no raio-x, com o reconhecimento de padrões como formas, limites e opacidades na imagem.

Ao final, na última camada, a rede neural já identificou cada micro pedaço da imagem radiográfica e está pronta para predizer, com base no treino ao qual foi submetida, o que o exame está mostrando.

Discernir sobre qual imagem representa o quê no Deep Learning é um exercício de aprendizagem complexo, com várias camadas da rede neural artificial. Quanto mais camadas, maior é a capacidade da máquina em desvendar padrões nas imagens.

Fonte: Eric Topol. “Deep Medicine”. Apple Books.

O Deep Learning, portanto, é definido como um método para promover o famoso Machine Learning (ML), que permite ao algoritmo adaptar e promover o aprendizado à máquina.¹

Essas máquinas, embebidas de dados e algoritmos inteligentes, estão redefinindo nossa forma de pensar como os dados são utilizados e se relacionam. Mais do que isso, criou-se um mercado bilionário de compra e venda de dados a fim de alimentar a IA, e grandes corporações aderiram ao jogo em busca de uma quota tecnológica dessa revolução.

3. Os sete gigantes da Inteligência Artificial

De meados de 1950, início das pesquisas sobre IA, até 2020, muita coisa no campo da inteligência artificial mudou.

Acostumados com computadores do tamanho de frigobares, uma escassez de dados notória e pouco capacidade de computação, a inteligência artificial demorou a sair do seu status de ficção científica e assumir espaço no mundo real.

Na verdade, após o início eletrizante da tecnologia, cientistas da computação entraram num pessimismo generalizado ao observar que as máquinas não funcionavam como eles haviam imaginado e que faltavam, ainda, muitos recursos.

Esse período, marcado por uma redução das pesquisas e ausência de suporte, foi denominada como o inverno da IA.

Foi somente com a popularização da internet e sua oferta massiva de dados, atrelada ao avanço no poder de computação, que técnicas como Deep Learning puderam ser refinadas e a IA sair da hibernação. Afinal, nas palavras de Kai-Fu Lee, não há nada melhor para os dados do que mais dados.¹

Hoje, a título de curiosidade, seu smartphone conta com um poder de processamento milhões de vezes maior que os principais computadores que levaram o homem à lua em 1969.

Assim, com um ecossistema favorável – Big Data, alto poder de computação e engenheiros de IA aptos – as grandes empresas começaram a se interessar pela tecnologia e formar o corporativismo de inteligência artificial, com grandes laboratórios de pesquisa e inovação voltados para desenvolver algoritmos cada vez mais impressionantes.

Google, Amazon, Facebook, Microsoft, Baidu, Alibaba e Tencent, essas três últimas chinesas, são os sete gigantes que concentram recursos em inovação e talentos a fim de desenvolver tecnologia de ponta em IA e dominar o mercado.¹

4. A oftalmologia do futuro, um exemplo de aplicação da IA

Muitos dos projetos dessas gigantes da IA não se limitam ao reconhecimento facial ou a possibilidade de carro autônomos; na verdade, o Google propõe uma mudança nos paradigmas e tem investido na aplicação de técnicas de IA no exercício da medicina.

Uma das áreas mais propícias ao desenvolvimento e execução dessas técnicas é a oftalmologia, uma vez que conta com um grande volume de dados de alta qualidade e métodos avançados de imagem.

O resultado dos investimentos pode ser observado, por exemplo, no recente trabalho publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) entitulado Development and Validation of a Deep Learning Algorithm for Detection of Diabetic Retinopathy in Retinal Fundus Photographs.⁶ 

O estudo, liderado pela Google Research, consistiu na utilização das redes neurais artificiais para, através da utilização de mais de 120.000 imagens de retina retiradas do banco de dados (EyePACS), fazer um diagnóstico preciso da retinopatia diabética (RD).

A utilização de um banco vasto de imagens associado ao Deep Learning foi capaz de gerar um impressionante algoritmo com 97,5% de sensibilidade e 93,4% de especificidade. Isso é comparável, de acordo com o próprio estudo, à classificação de imagens de RD de oito oftalmologistas previamente selecionados por possuírem um alto grau de acerto e consistência na análise de imagens de retina.

O algoritmo, impressionante e revolucionário, insere a inteligência artificial com uma aplicabilidade no universo médico jamais vista, pois retira o protagonismo do médico na análise de imagens e o transfere à máquina.

A inovação, entretanto, ainda demonstrava algumas limitações quanto ao avanço na democratização do acesso à saúde por ser restrita a imagens de alta resolução retiradas de centros oftalmológicos. 

Mas, em 2019, um estudo promissor publicado no JAMA parece ter solucionado essa problemática. O trabalho utilizou-se da inteligência artificial, sem conectividade a internet, para detectar, através da lente da câmera de um smartphone convencional, a retinopatia diabética referida. ⁷

Apesar de ser um estudo piloto em que o próprio autor cita a necessidade de maiores pesquisas de largo espectro sobre a tecnologia IA off-line, os resultados foram igualmente bons, com uma sensibilidade de 100% e uma especificidade de 88.4% no diagnóstico da RD referida.

O custo-benefício dessa tecnologia de screening off-line e totalmente portável é ainda imensurável nas comunidades que podem se beneficiar do avanço.

Imagine você que lugares remotos, sem o serviço de oftalmologia, podem, numa simples atualização, contar com um algoritmo para diagnosticar a RD referida na câmera do celular e mudar, de forma abrupta, a qualidade do acesso à saúde dessa população, antes isolada.

É neste ponto que a revolução na maneira de exercer medicina começa a acontecer; pacientes antes negligenciados pelo sistema de saúde, muitos sem possibilidade de uma consulta médica especializada, têm na palma da sua mão um recurso estrondoso para a melhora da qualidade de vida.

Um possível “prejuízo” para forma de exercer a medicina convencional pelo especialista é revertido em um enorme benefício para os que mais necessitam. A democratização do acesso à saúde pode ser o maior ganho da medicina quando falamos de IA.

5. Os próximos passos

A era pós-médicos, teoria formulada por Maxmen em 1976, em que a inteligência artificial inauguraria no século 21 uma nova forma de exercer a medicina através apenas de computadores e paramédicos está, ao que tudo indica, longe de acontecer.⁸ Entretanto, muito se especula sobre os limites da IA na medicina; alguns arriscam dizer que a medicina ocidental tradicional será remodelada para sempre e por definitivo e que muitas tarefas serão preenchidas por máquinas num futuro próximo.

Maximização do cuidado médico em áreas descobertas pelo sistema de saúde, habilidade da máquina em dizer o que o paciente com problemas na comunicação está sentindo, análise de imagens cancerígenas sem necessidade de biópsia para dar o diagnóstico, entre outros avanços são as infinitas possibilidades que a IA pode nos proporcionar.

A revolução tecnológica promovida pela IA pode alterar a forma de trabalho do profissional médico no futuro, invertendo a balança dos cuidados e voltando os holofotes para uma medicina mais preventiva, focada em evitar o aparecimento de doenças muito antes de qualquer sintoma.

As máquinas terão um papel indispensável no diagnóstico médico, ampliando a cobertura de um serviço de alta qualidade a todos, mas não serão capazes de dar conforto e alento aos pacientes que não tiveram uma notícia otimista. Por essa razão, médicos mais humanos e responsáveis, com empatia e habilidade de comunicação, vão ser cada vez mais requisitados e terão grande valor numa nova sociedade tecnologicamente inteligente.

Essa é aposta de Eric Topol, médico cardiologista e autor de Deep Medicine, onde afirma que o maior benefício promovido pela IA será a disponibilização de mais tempo para fortalecer a empatia na relação médico-paciente.⁹

Também, Topol acredita que não só a relação médico-paciente será afetada, mas a forma como selecionamos e treinamos os médicos do futuro, com a valorização de profissionais com alta habilidade em inteligência emocional.

Nesse contexto, há dois mil anos, Hipócrates declarou, “é mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que doença que tem a pessoa”.

Em última análise, os avanços tecnológicos, como a inteligência artificial, irão permitir o resgate dos valores e virtudes da profissão médica. As humanidades, há muito tempo esquecidas, ganharão um novo papel no exercício da profissão e o maior beneficiário de tudo isso é, e sempre será, o paciente.

Autor: Rafael Lobo de Souza

Instagram: @rafaelloboz