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Famoso nas provas de residência, o triângulo de Hasselbach representa um conjunto de estruturas da região inguinal fundamental para a compreensão da fisiopatologia e tratamento das hérnias inguinais. Apesar dos holofotes repousarem em Hasselbach, em suma, é possível identificar cinco “triângulos” na região inguinal, bem como outros marcos anatômicos, que irão contribuir na condução e reparo desse agravo.
Anatomia da Região Inguinal
A região inguinal compreende-se entre a borda externa (lateral) do músculo reto abdominal, o ligamento inguinal e a linha imaginária que une as espinhas ilíacas ântero superiores, sendo assim, a própria região resulta em um triângulo (Figura 1).
FIGURA 1. Região Inguinal. (Imagem modificada e retirada do Gray’s.)

Se direcionarmos o estudo anatômico de forma ampla para a identificação de zonas susceptíveis à hérnias na parede abdominal inferior, é possível delimitar uma região ainda maior – o orifício miopectíneo. Tendo sido descrito em 1956 por Fruchaud, o orifício miopectíneo abarca a margem superior do púbis (no ligamento pectíneo), a margem lateral do músculo reto, o músculo psoas e o arco transversal. O ligamento inguinal divide o orifício em duas regiões: suprainguinal, na qual emergem as estruturas do canal inguinal, sendo o sítio das hérnias diretas e indiretas; e infrainguinal, por onde passam o canal femoral e suas estruturas vasculonervosas, logo, representando também a região de ocorrência das hérnias femorais (Figura 2).
FIGURA 2. Orifício Miopectíneo. (Imagem traduzida pela autora e retirada do artigo de YANG, X. F. e LIU, J. L., 2016)

A importância de conhecer esta divisão de Fruchaud está na possibilidade de tratamento simultâneo de três tipos de hérnia diferentes, a partir, por exemplo, da instalação de uma tela sintética sobre a fáscia transversal (região mais profunda da parede abdominal) em toda extensão do orifício. Neste artigo, vamos nos aprofundar apenas nas estruturas suprainguinais do orifício miopectíneo ou, grosseiramente falando, na anatomia da região inguinal.
Se seguirmos profundamente a pele da parede abdominal, atravessaremos a tela subcutânea, composta por três folhetos – o superficial areolar, o profundo e o intermediário – mais facilmente diferenciáveis em crianças. Após o último folheto (o profundo), é possível dissecar toda a região até a borda lateral do músculo reto abdominal e o ligamento inguinal. Assim, temos a exposição da aponeurose do músculo oblíquo externo que irá se inserir em três regiões diferentes, dividindo-se, portanto, em fascículos. O fascículo superior passa anteriormente ao músculo reto terminando na linha alba. Já o fascículo médio se insere no púbis em três pilares (superior, inferior e posterior ou ligamento reflexo), os quais delimitam o anel inguinal superficial. Por fim, o fascículo inferior se posiciona paralelo à prega inguinal, formando o ligamento inguinal, e se expande em leque na linha pectínea do púbis, onde dará origem ao ligamento lacunar.
Em seguida, teremos o músculo oblíquo interno. Curiosamente, este músculo possui uma inserção variável na parede abdominal. Em alguns pacientes se insere no tubérculo e na linha pectínea do púbis, todavia, não é incomum uma inserção mais alta, deixando a região inguinal “descoberta” e mais suscetível a herniações. Esta área é denominada triângulo de Hessert, sendo formada pela borda inferior do músculo oblíquo interno, a borda externa do músculo reto e o ligamento inguinal.
A última camada muscular se constitui no músculo transverso, cuja aponeurose predomina na região inguinal e irradia-se para compor a bainha do músculo reto abdominal e a fáscia transversal fibrosa. Esta fáscia fibrosa corresponde a parede posterior do trajeto inguinal e é representada por uma lâmina fina e larga de tecido conjuntivo paralela e sobreposta à fáscia celulosa, que reveste o músculo reto. O trato íleo-púbico é formado por uma condensação da aponeurose do músculo transverso, originando-se na espinha ilíaca anterosuperior para se inserir no tubérculo púbico. Consequentemente, segue em paralelo ao ligamento inguinal e tem importância cirúrgica, pois na sua porção caudal, lateralmente aos vasos femorais, localizam-se o ramo femoral do nervo gênito-femoral e o nervo cutâneo lateral da coxa.
Essas camadas em conjunto formam o assoalho, o teto e as paredes do canal inguinal, como está disposto na Figura 3 a seguir.
FIGURA 3. Estruturas que delimitam o canal inguinal. (Imagem retirada do Sabiston)

Por fim, temos o peritônio parietal que reveste a face posterior da parede abdominal anterolateral. Na região inguinal, esse tecido apresenta algumas pregas e depressões em virtude da existência de algumas estruturas relacionadas: a artéria epigástrica inferior; o ligamento umbilical medial (remanescente da artéria umbilical obliterada); e o ligamento umbilical médio (remanescente do úraco obliterado) (Figura 4), os quais formam, respectivamente, as pregas umbilicais laterais, mediais e a prega umbilical mediana. As depressões são relativas às pregas mencionadas, logo teremos: a fosseta inguinal lateral, lateralmente à artéria epigástrica inferior; a fosseta inguinal média, entre o ligamento umbilical medial e a artéria epigástrica inferior; e a fosseta vesicopública, entre os ligamentos umbilicais médio e medial.
FIGURA 4. Visão posterior da parede abdominal anterolateral. (Imagem retirada do Sobotta)

Visão Laparoscópica da Anatomia Inguinal
Quando pensamos na cirurgia laparoscópica transabdominal para reparo de hérnias inguinais, estamos lidando com uma anatomia posterior (Figura 4), normalmente não vista nas técnicas abertas. Por conta disso, o aprendizado da técnica laparoscópica costuma ser desafiador até mesmo para cirurgiões experientes. Nesse sentido, FURTADO et al (2019) menciona uma nova esquematização para facilitar a compreensão da anatomia inguinal sob a ótica da videolaparoscopia, a qual se baseia na identificação de um “Y” invertido e do trato íleo-púbico (paralelo e posterior ao ligamento inguinal), que irão dividir a região inguinal em cinco triângulos, como será detalhado a seguir.
O “Y” invertido e os cinco triângulos
Os vasos epigástricos inferiores, o ducto deferente e os vasos espermáticos posicionam-se na região inguinal formando um “Y” invertido. Na fotografia abaixo (Figura 5), uma linha azul horizontal demarca o trajeto do ligamento inguinal ou o trato íleo-público. Os vasos epigástricos foram marcados em vermelho, como a “perna” do Y, a linha branca indica o ducto deferente e constitui o “braço” medial do Y, e, por fim, a linha azul clara sinaliza os vasos espermáticos, o “braço” lateral do Y.
FIGURA 5. Estruturas que compreendem o “Y” invertido. (Imagem retirada de Furtado et al, 2019)

A partir do encontro das estruturas que formam o Y invertido com ligamento inguinal podemos demarcar cinco triângulos importantes: das hérnias diretas (D); da Dor (P), do Desastre (Doom); das hérnias femorais (F) e das hérnias indiretas (I) (Figura 6).
FIGURA 6. Os cinco triângulos formados pelo ligamento inguinal ou o trato íleo-púbico e o “Y” invertido. (Imagem retirada de Furtado et al, 2019)

Começando com os dois triângulos suprainguinais (ou seja, dispostos acima do ligamento inguinal), teremos os vasos epigástricos como divisores das duas regiões. Na porção medial aos vasos epigástricos, delimitado também pela porção medial do ligamento inguinal e pela borda lateral do músculo reto, temos o famoso triângulo de Hasselbach. No artigo, os autores optaram pela denominação “Triângulo das hérnias diretas”, uma vez que se trata de uma região de fragilidade típica da fáscia transversal, propensa a formação deste tipo de hérnia inguinal. Já na porção lateral dos vasos epigástricos, formando um ângulo com o segmento lateral do ligamento inguinal, temos o “Triângulo das hérnias indiretas”. Essa região abarca a inserção do anel inguinal profundo, onde ocorre a formação das hérnias inguinais indiretas.
Na região infrainguinal, encontraremos três triângulos, segmentados pelo ducto deferente e pelos vasos espermáticos. A porção medial ao ducto deferente e inferior à porção medial do ligamento inguinal representa o “Triângulo das hérnias femorais”. Assim como para os triângulos anteriores, a região indica o local de maior ocorrência desse tipo de hérnia, isso porque abriga o óstio de saída da veia femoral. Na porção central, entre o ducto deferente e os vasos espermáticos encontramos o “Triângulo do Desastre”, assim nomeado por conta da passagem dos vasos ilíacos externos logo abaixo. Por fim, delimitado apenas pelos vasos espermáticos e pela porção lateral do ligamento inguinal (trato íleo-público) temos o “Triângulo da Dor”. Esse triângulo é assim chamado pois indica o local de passagem do nervo cutâneo lateral da coxa, do ramo femoral do nervo genitofemoral e do nervo femoral. Vale ressaltar que estudos recentes feitos em cadáveres demonstraram que esses ramos podem estar presentes em até 2cm acima do trato ílio-público, exigindo uma nova demarcação do triângulo.
Na imagem abaixo (Figura 7), podemos observar a demarcação dos cinco triângulos em uma videolaparoscopia. Com esse conhecimento, o cirurgião poderá dissecar a região de forma mais segura e assertiva.
Figura 7. Os cinco triângulos visto por uma laparoscopia. (Imagem retirada de Furtado et al, 2019)

A técnica laparoscópica para correção de hérnias inguinais
O reparo laparoscópico das hérnias inguinais demanda a dissecção do peritônio parietal, que deve ser feita a partir do ligamento umbilical medial na altura da linha arqueada do músculo transverso até a espinha ilíaca anterosuperior lateralmente e o músculo psoas posteriormente. (Figura 4). O tecido adiposo do espaço pré-peritoneal (entre a fáscia transversal e o peritônio parietal) deve ser mantido no assoalho inguinal, como uma espécie de proteção à manipulação e ao dano das estruturas nervosas. No sentido medial, a dissecção deve se estender até o espaço pré-vesical (ou de Retzius), com uma margem de 1 a 2cm inferior e lateral ao ligamento pectíneo e à sínfise púbica.
Quando o defeito na parede se localiza no triângulo de Hasselbach, teremos uma hérnia direta, resultante da fraqueza da fáscia transversal. O conteúdo do saco herniário é, em geral, composto por gordura pré-peritoneal e deve ser tracionado e retirado do orifício da hérnia. Essa porção da fáscia que estava herniada pode ser tracionada e fixada no ligamento pectíneo ou no músculo reto abdominal a fim de minimizar a criação de um espaço morto e de seromas.
A dissecção se estende sobre o ducto deferente e os vasos espermáticos, exigindo delicadeza do cirurgião, pois, como já vimos, entre essas estruturas se localiza o Triângulo do Desastre, região que dá passagem às artérias e veias ilíacas externas. No caso de hérnias indiretas, o saco herniário se localiza lateralmente às artérias epigástricas próximo à região de encontro das estruturas do funículo espermático. Por conta disso, é necessária uma dissecção cuidadosa do peritônio sobre essas estruturas seguida de tração do conteúdo herniário para fora do anel inguinal profundo. Nas mulheres, o ligamento redondo do útero está aderido ao peritônio, tornando sua dissecção dispendiosa. Assim, os cirurgiões costumam optar pela seção dessa estrutura na região de entrada no anel inguinal profundo.
A dissecção está completa quando as estruturas do “Y” invertido, o iliopsoas, o púbis e o ligamento pectíneo podem ser visualizados. Assim, uma malha (i.e. tela) pode ser disposta em toda região inguinal, com uma margem de 1 a 2cm abaixo do púbis e 3 a 4cm do anel inguinal profundo. A fixação deve ser cuidadosa, evitando as estruturas ósseas, o trajeto dos vasos epigástricos e os triângulos do desastre e da dor. Por último, o peritônio parietal dissecado é rebatido sobre a tela e suturado para evitar o contato da malha com as estruturas envolvidas pelo peritônio visceral.
A malha funciona como uma camada extra sintética de parede abdominal, fornecendo reforço mecânico à região enfraquecida e, desta forma, contribui para prevenir o surgimento de novas hérnias.
Autora: Marcella Araújo Pires Bastos
Instagram: @apbcell
Referências
- PAULSEN, F.; WASCHKE, J. Sobotta: atlas de anatomia humana. 23. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.
- STANDRING, S. Gray’s anatomia: a base anatômica da prática clínica. 40. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
- GOFFI, F. S. Tecnica cirurgica: bases anatomicas, fisiopatologicas e tecnicas da cirurgia. 4. ed. São Paulo: ATHENEU, 1996, 2004, 2007. 822 p
- SABISTON. Tratado de cirurgia: A base biológica da prática cirúrgica moderna. 19.ed. Saunders. Elsevier.
- FURTADO, et al. Sistematização do reparo da hérnia inguinal laparoscópica (TAPP) baseada em um novo conceito anatômico: Y invertido e cinco triângulos. ABCD Arq Bras Cir Dig, 2019, v. 32, n. 01. DOI: /10.1590/0102-672020180001e1426
- YANG, X. F.; LIU, J. L. Anatomy essentials for laparoscopic inguinal hernia repair. Ann Transl Med, 2016, v. 4, n. 19. DOI: 10.21037/atm.2016.09.32
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
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