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Intoxicação por Cianeto |Colunistas

Intoxicação por Cianeto |Colunistas

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Confira tudo que você precisa saber sobre Intoxicação por Cianeto. Da definição ao tratamento!

Em 2021 o Brasil volta a atenção para uma das maiores tragédias vividas no país: O incêndio da boate Kiss. O teto do local era isolado com uma espuma composta por Poliuretano.

As faíscas, ao atingirem o teto, provocaram sua queima e com isso liberaram gases tóxicos como monóxido de carbono (CO) e o gás cianídrico (HCN). Houve 242 mortes, grande parte delas é justificada pela intoxicação por cianeto.

Definição do cianeto

O cianeto é uma toxina mitocondrial formada por átomos de carbono e nitrogênio e é uma das intoxicações mais letais conhecidas pelo homem. Usado nos tempos antigos e modernos como um método de execução, o cianeto causa a morte dentro de minutos a horas de exposição. Embora seja incomum, o envenenamento significativo por cianeto deve ser reconhecido rapidamente para garantir a administração imediata do tratamento potencialmente salvadora de vidas.

Causas de Intoxicação por Cianeto

A principal maneira de entrar em contato com o cianeto é por meio da inalação de fumaça de incêndios em ambiente fechados. O contato da pele com sais de cianeto pode resultar em queimaduras, que permitem maior absorção de cianeto através da pele, o que pode piorar a intoxicação.

Além disso, medicamentos como o nitroprussiato de sódio, usado no tratamento de emergências hipertensivas, contém cinco grupos de cianeto por molécula e quando usado em doses altas pode causar intoxicação.

Bem como, a amigdalina que é uma substância derivada dos grãos de damasco e pêssego, introduzida como agente antineoplásico na década de 50, pode causar toxicidade severa do cianeto.

A família Rosaceae, que inclui amêndoa, damasco, ameixa, pêssego, pera e maçã, é responsável por muitos envenenamentos por cianeto. Outros alimentos contendo possíveis elementos cianogênios incluem raiz de mandioca, broto de bambu e soja. Devido à presença de cianeto natural encontrado no tabaco, os fumantes de cigarros têm nível médio de cianeto cerca de 2 vezes maior que os não tabagistas.

Intoxicação por Cianeto: fisiopatologia

O cianeto tem boa absorção respiratória e gastrointestinal, com rápida distribuição pelo sangue. No metabolismo celular, a maior parte do ATP é gerada a partir da fosforilação oxidativa.

Uma parte importante desse processo é o transporte de elétrons por meio do complexo mitocondrial do citocromo.

O cianeto liga-se avidamente ao íon férrico (Fe 3 +) bloqueando a fosforilação oxidativa. A célula deve, então, mudar para o metabolismo anaeróbico da glicose para gerar ATP. Isso leva à formação de ácido láctico e ao desenvolvimento de acidose metabólica.

Apesar de um amplo suprimento de oxigênio, as células não podem utilizar por causa de sua cadeia de transporte de elétrons envenenada, causando uma hipóxia funcional ou histotóxica. A inibição de antioxidantes pelo cianeto resulta no acúmulo de radicais livres de oxigênio tóxicos. Uma pequena quantidade de cianeto pode-se ligar ao ferro (Fe2 +) ferroso da hemoglobina, formando ciano-hemoglobina, que é incapaz de transportar oxigênio, exacerbando ainda mais a hipóxia tecidual.

O cianeto também tem ações em outros locais, particularmente no sistema nervoso central (SNC), estimulando os receptores (NMDA), e induzindo a morte celular por apoptose. Além de inibir a descarboxilase do ácido glutâmico (GAD), enzima responsável pela formação do neurotransmissor inibitório GABA, aumentando o risco de convulsões.

Quadro clínico da Intoxicação por Cianeto

Os sintomas da intoxicação começam com concentrações de cianeto no sangue de, aproximadamente, 40µmol/L. As características clínicas do envenenamento por cianeto dependem da rota, da duração e da quantidade de exposição.

Nas intoxicações leves, os pacientes podem apresentar náuseas, vômitos, cefaleia, confusão mental e tonturas.

Em intoxicações moderadas a graves, ocorrem alterações proeminentes de SNC e disfunção do sistema cardiovascular.

  • Sistema Nervoso Central: cefaleia, ansiedade, confusão, vertigem, coma, convulsões.
  • Cardiovascular: taquicardia e hipertensão inicial, bradicardia e hipotensão, bloqueio atrioventricular, arritmias ventriculares.
  • Respiratório: taquipneia/bradipneia e edema pulmonar.
  • Gastrointestinal: naúsea, vômito e dor abdominal.
  • Pele: rubor da pele (cor vermelho-cereja); cianose (achado tardio); dermatite irritativa.
  • Insuficiência renal e insuficiência hepática

Apesar da hipotensão, apneia e/ou bradicardia, o paciente, geralmente, não aparece cianótico no quadro de envenenamento por cianeto, sendo esse um sinal tardio. Sobreviventes de intoxicação grave por cianeto podem desenvolver parkinsonismo tardio ou outras sequelas neurológicas.

Diagnóstico de Intoxicação por Cianeto

As concentrações de cianeto de sangue podem ser obtidas para confirmação diagnóstica, mas os resultados não estão comumente disponíveis a tempo de serem clinicamente úteis.

Por isso, a avaliação laboratorial de rotina do paciente potencialmente envenenado deve incluir: Glicemia, Eletrocardiograma (para descartar o acometimento do sistema de condução por medicações que efetuam os intervalos QRS ou QTc), Teste de gravidez em mulheres em idade fértil, Gasometria arterial para avaliar a acidose metabólica, Lactato sérico e níveis de carboxihemoglobina e metemoglobina (medidos por co-oximetria)

As concentrações plasmáticas de lactato se correlacionam intimamente com a gravidade da toxicidade do cianeto. As mensurações seriadas do lactato servem para monitorar a resposta clínica. Uma diminuição do gradiente venoso-arterial PO2 pode ser visto no paciente envenenado por cianeto.

O cianeto inibe a fosforilação oxidativa celular resultando em uma diminuição acentuada na extração de oxigênio nos tecidos periféricos do sangue. Isso resulta em elevada oxigenação venosa central. No exame, a pele pode parecer corada e as vênulas na retina vermelho brilhante.  

Para fazer o diagnóstico, é necessário que o clínico mantenha um alto índice de suspeição com base na história e na apresentação clínica. Pacientes vítimas de incêndios ou ingestões relatadas, expostos no trabalho, ou que tenham sido tratados recentemente com nitroprussiato de sódio devem ser considerados potencialmente intoxicados por cianeto.

Manejo clínico

Se a história clínica e o exame sugerirem intoxicação, o uso de antídoto deve ser administrado imediatamente. Também deve ser incluídas as medidas ressuscitação e descontaminação.

A toxicidade por cianeto deve ser considerada em todos os pacientes com inalação de fumaça com dois ou mais dos seguintes achados:

  • Material carbonáceo na orofaringe
    • Disfunção neurológica
    • Acidose metabólica com lactato sérico > 8mmol/L

As medidas iniciais são de suporte, incluindo estabilizar as vias aéreas, a respiração e a circulação do paciente. As vias aéreas do paciente devem ser protegidas + oxigênio de alto fluxo, independentemente da oximetria de pulso. As convulsões associadas ao envenenamento são tratadas com benzodiazepínicos.

Os pacientes intoxicados por cianeto por inalação ou exposição tópica devem ser rapidamente removidos da fonte e suas roupas devem ser retiradas. Em exposições dérmicas, as feridas devem ser limpas com sabão e água para evitar mais absorção.

A descontaminação gastrointestinal deve ser realizada rapidamente em casos de ingestão oral. Embora o cianeto se ligue pouco ao carvão ativado, estudos em animais relatam diminuição da mortalidade entre ratos que receberam carvão ativado após ingestões letais de cianeto de potássio. A lavagem gástrica não é recomendada nesses casos.

Tratamento

O tratamento é orientado por meio de contato com os Centros de Informação e Assistência Toxicológica –CIATox, um serviço gratuito, público, mantido com escalas de plantonistas dispostos a orientar o atendimento às vítimas dos variados acidentes com agentes tóxicos.

A via para a desintoxicação do cianeto envolve a hidroxocobalamina, precursor da vitamina B12. A hidroxocobalamina circulante combina-se com cianeto para formar cianocobalamina, que é excretada na urina. Como a hidroxocobalamina age de forma rápida, não afeta negativamente a oxigenação do tecido e é relativamente segura. Ela é apontada como um antídoto de primeira escolha.

O uso de antídotos deve ser iniciado se possível no ambiente pré-hospitalar com a administração de hidroxocobalamina. A meia-vida dela é de 24 a 48 horas. Quando administrada na dose recomendada, pode causar uma descoloração avermelhada temporária da pele, plasma, urina e membranas mucosas. Essas alterações duram, aproximadamente, 2 a 3 dias.

Na indisponibilidade da hidroxocobalamina, outra opção é o uso dos chamados CyanoKits. O kit inclui nitrito de amila e nitrito de sódio para induzir metemoglobinemia e tiossulfato de sódio para atuar como um doador de enxofre. Esse kit é projetado para tratar dois pacientes adultos ou um paciente adulto duas vezes. O tratamento com nitrito de amila ou nitrito de sódio é contraindicado em casos de toxicidade concomitante por monóxido de carbono e os nitritos devem ser evitados em mulheres grávidas.

Outro antídoto eficaz é o edetato de dicobalto, que é um quelante intravenoso de cianeto, com rápido início de ação, usado no Reino Unido. No entanto, seu uso é associado a múltiplos efeitos colaterais graves, incluindo convulsões, anafilaxia, hipotensão e arritmias cardíacas.

Considerações finais

O incêndio ocorrido na Boate Kiss em janeiro de 2013 influenciou mudanças significativas no atendimento pré e intra-hospitalar desses tipos de desastres e na prevenção.

Nessa época, o Brasil precisou importar a hidroxicobalamina dos EUA, chamando atenção para falta de várias outras substâncias usadas para tratar casos específicos de intoxicação.

Atualmente, nós temos a hidroxicobalamina disponíveis em alguns locais do país, mas ainda há um longo caminho para vencer essa corrida contra o tempo.

Referências

NETO, R. A. B. Intoxicação por Cianeto. Disponivel em: https://www.medicinanet.com.br/conteudos/revisoes/7702/intoxicacao_por_cianeto.htm.

Hidroxicobalamina no tratamento de intoxicações por cianeto. Disponível em: https://abracit.org.br/hidroxocobalamina-no-tratamento-de-intoxicacoes-por-cianeto/



O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

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