Cirurgia geral

Isquemia mesentérica aguda: diagnóstico e manejo inicial | Colunistas

Isquemia mesentérica aguda: diagnóstico e manejo inicial | Colunistas

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“Deve ser abdome agudo…”

            Se você já se deparou com um caso de isquemia mesentérica antes, sabe o quão difícil pode ser o diagnóstico e quão dramática pode ser a situação dos pacientes que sofrem desse mal. Se ainda não, esta pode ser sua oportunidade para não deixar “passar batida” a doença naquele paciente com dor abdominal ainda sem etiologia definida que você vai reavaliar no seu próximo plantão.

            A isquemia mesentérica aguda faz parte do diagnóstico sindrômico de abdome agudo de causa vascular, uma vez que ocorre uma interrupção abrupta do suprimento sanguíneo intestinal, levando a dor abdominal pela isquemia local e potenciais complicações fatais. Você pode entender melhor o conceito de abdome agudo e suas outras causas aqui.

Compreendendo a isquemia

            Vamos relembrar a anatomia do suprimento arterial intestinal, que é feita por três ramos diretos da aorta: tronco celíaco, artéria mesentérica superior (AMS) e artéria mesentérica inferior (AMI).

  • O tronco celíaco supre, além do estômago, baço, fígado e vias biliares, a porção duodenal do intestino e pâncreas através da artéria gastroduodenal e seu ramo pancreatoduodenal superior.
    • A AMS, nosso maior objeto de interesse, irriga a maior parte do trato intestinal: duodeno (anastomose com o tronco celíaco pela pancreatoduodenal inferior), jejuno, íleo, ceco, apêndice, cólon direito e transverso.
    • A AMI perfunde o cólon esquerdo, sigmoide e reto em sua porção superior.

            Vale lembrar que há uma rica circulação colateral entre os diversos ramos arteriais, entre os quais podemos destacar as pancreatoduodenais superior e inferior (anastomoses entre tronco celíaco e AMS), arcada de Riolan e artéria marginal de Drummond (anastomoses entre AMS e AMI). No caso do reto, há anastomoses entre as artérias retais superiores (AMI) e retais médias e inferiores (ramos da artéria ilíaca interna).

FIGURA 1. Suprimento arterial intestinal e anastomoses entre AMS e AMI.

FONTE: https://www.uptodate.com

            Os processos oclusivos agudos da circulação mesentérica, mesmo na presença de circulação colateral, podem levar a isquemia e necrose intestinal. Quanto mais proximal for a oclusão, maior a quantidade de ramos comprometidos, bem como a gravidade das manifestações.

            Na presença de sofrimento intestinal prolongado, quase invariavelmente haverá necessidade de ressecção cirúrgica. No entanto, necroses de grandes territórios arteriais podem demandar enterectomias que vão evoluir para síndrome do intestino curto, com grave comprometimento nutricional, ou quadros incompatíveis com a vida, com prognóstico sombrio.

Sem suspeição não há diagnóstico!

            O quadro clínico inicial é, na maioria das vezes, inespecífico e representa o maior desafio da isquemia intestinal. A dor abdominal é mal localizada, de forte intensidade, desproporcional aos achados do exame físico – ou seja, não espere sinais de irritação peritonial se há poucas horas do início da dor. Podem haver outros sintomas, como náuseas, vômitos, distensão abdominal, diarreia e enterorragia.

            É neste momento que devemos procurar pela doença! Nas fases tardias, ocorre necrose intestinal com perfuração, peritonite, translação bacteriana e sepse. Não devemos esperar o paciente tornar-se desidratado, taquicárdico e hipotenso para identificarmos a isquemia. O diagnóstico precoce pode salvar grandes segmentos intestinais do paciente e poupá-lo dos desfechos potencialmente fatais. Mas como podemos elevar o nível de suspeição?

            Primeiramente, vamos pela clínica: o paciente com abdome agudo vascular será tipicamente uma pessoa idosa (2/3 são mulheres > 60 anos). Também são frequentes os fatores de risco cardiovasculares clássicos (hipertensão, diabetes, hipercolesterolemia, tabagismo, cardiopatias, doença arterial conhecida em outro território).

            O laboratório, embora não seja específico, pode contribuir para a nossa hipótese diagnóstica. A maioria dos pacientes apresenta leucocitose e acidemia metabólica com elevação de lactato. Atualmente, o dímero D é considerado um fator de risco independente de isquemia, podendo ser útil sua dosagem. Outros biomarcadores estão sendo estudados, como ácidos graxos de proteína (I-FABP), alfa-glutationa S-transferase sérica (alfa-GST) e ensaio de ligação cobalto-albumina (CABA), mas ainda sem valor definitivo estabelecido.

Trombose ou embolia?

            Sabemos que aproximadamente metade dos casos decorre de uma embolia, frequentemente ocluindo a AMS. Isso acontece devido a seu diâmetro calibroso e seu ângulo agudo de emergência da aorta abdominal. Cerca de 80% dos êmbolos têm origem cardíaca, sendo a fibrilação atrial (FA) a causa mais frequente. Portanto, sempre procure pulso irregular, história de arritmia, palpitações ou FA sem anticoagulação adequada. Outras fontes emboligênicas são provenientes da aorta, proximalmente: aneurismas, placas de ateroma ulceradas ou êmbolos secundários à manipulação endovascular (pós-operatórios de angiografias).

            A outra metade dos casos, em sua maioria, são decorrentes de oclusão trombótica de uma placa previamente estenosante na origem da AMS. A maioria já tem doença ateromatosa reconhecida em outro território (cerebrovasular, coronariana, periférica). Metade dos pacientes terá história sugestiva de angina mesentérica (dor pós-prandial crônica e perda ponderal decorrentes da estenose prévia). A gravidade da doença pode ser atenuada a depender da circulação colateral desenvolvida previamente, uma vez que decorre de uma isquemia crônica.

            Há ainda outras causas menos comuns, como a isquemia por trombose venosa mesentérica. Nesse caso, a congestão venosa, quando extensa e aguda, pode impedir a perfusão arterial adequada. Mas, na maioria dos casos, o processo será mais arrastado e menos florido. Existe também a chamada isquemia mesentérica não oclusiva, típica de pacientes críticos, com comprometimento hemodinâmico grave. Como o nome sugere, não há oclusão verdadeira – há uma vasoconstrição difusa decorrente de uma resposta fisiológica à hipoperfusão sistêmica (priorizando perfusão coronariana e cerebral), agravada pelo uso de vasoconstritores como a noradrenalina. Há também a isquemia gerada por uma dissecção aguda da aorta com extensão para seus ramos viscerais, podendo ser precedida da dor tóraco-dorsal típica do caso ou mesmo trauma. Essas entidades correspondem a uma menor parte dos casos, com tratamentos específicos que diferem das oclusões arteriais, que não serão discutidos nesse momento.

Como confirmar o diagnóstico?

            Nessa fase, será necessário abrir mão de exames de imagem que possam detectar a oclusão vascular e suas potenciais complicações. A princípio, o doppler vascular tem bons resultados relatados na literatura, chegando a um valor preditivo positivo de 92%. Contudo, pode ser prejudicado tecnicamente pela distensão gasosa do abdome e dor do paciente, tornando-se um exame tecnicamente difícil e de pouca ajuda na isquemia aguda.

            A nossa primeira escolha será a angiotomografia (angioTC), cada vez mais disponível e pouco invasiva, com sensibilidade de 93% e especificidade de 96% (comparada à angiografia por cateter, padrão-ouro). É considerada superior à angioressonância, por ter melhor resolução espacial, menor tempo de aquisição de imagem e dificuldade desta em avaliar oclusões mais distais. Além de elevada acurácia, também possibilita diferenciar etiologia embólica e trombótica e dá informações adicionais que podem ser cruciais. A presença de líquido livre na cavidade peritonial, pneumatose intestinal (gás na espessura de sua parede) são sinais de isquemia intestinal prolongada. O aeroportograma (presença de ar na circulação porta) é um forte indicador de atividade bacteriana avançada e traduz gravidade do quadro; bem como o pneumoperitônio, que representa ar livre na cavidade peritonial proveniente de uma perfuração.

FIGURA 2. Oclusão trombótica da AMS. Geralmente há envolvimento aterosclerótico significativo da aorta e óstio do vaso (placas calcificadas hiperdensas), com falha de enchimento em sua origem.

FONTE: MARTINS et al, 2013. http://www.scielo.mec.pt/img/revistas/ang/v9n1/9n1a02f3.jpg

FIGURA 3. Oclusão embólica da AMS. Tipicamente mais distal (entre 3-10cm da origem do vaso), em 85% dos casos poupa o jejuno proximal e cólon, devido à emergência desses ramos antes da obstrução. Podem estar associados a embolia de outras vísceras, como rins e baço, em até 20% dos casos.

FONTE: ALONSO et al, 2017. http://mgyf.org/wp-content/uploads/2018/03/MGYF2018_003_f1.jpg

FIGURA 4. Pneumatose intestinal (cabeças de seta) e aeroportograma (note a presença de ar intra-hepático).

FONTE: SERPA et al, 2010. https://www.scielo.br/pdf/jvb/v9n3/a11v9n3.pdf

O trabalho em equipe será fundamental!

            Uma vez firmada a isquemia mesentérica, deverá ser acionada a equipe cirúrgica vascular. Para que haja maior chance de sucesso, o manejo inicial deve ser agressivo: dieta suspensa, descompressão por sonda nasogástrica e oxigenoterapia se necessário, reposição volêmica, antibioticoterapia e anticoagulação (preferencialmente com heparina não fracionada, facilmente reversível). O tratamento cirúrgico não pode ser postergado – quando o diagnóstico é precoce, há a oportunidade de revascularização e reversão da isquemia intestinal. Em isquemias irreversíveis e necrose intestinal, poderá ser necessária avaliação conjunta com a cirurgia geral ou do aparelho digestivo, para eventual ressecção de segmentos de intestino delgado ou grosso. No caso de embolias de ramos mais distais, necroses delimitadas de pequenos segmentos intestinais à laparotomia, sem acometimento isquêmico de outras alças, pode não ser necessária revascularização.

            A cirurgia convencional se dá por laparotomia, com inspeção da viabilidade de alças intestinais e revascularização aberta. Se confirmada etiologia embólica, procedemos à embolectomia, em que se remove o êmbolo através de uma arteriotomia e passagem de cateter balão de Fogarty. Nos casos de trombose, o tratamento de escolha é o bypass mesentérico, podendo ser utilizada a própria aorta ou artéria ilíaca como doadora. São preferidos enxertos autólogos, como a veia safena magna, porém é possível o uso de próteses sintéticas.

FIGURA 5. Embolectomia. A. Dissecção e exposição da AMS. B. Arteriotomia transversal. C. Remoção do êmbolo com cateter de Fogarty. D. Arteriorrafia.

Adaptado de Kazmers, 1998.

FIGURA 6. Bypass iíaco-mesentérico. A. Uso de prótese sintética. B. Uso de veia safena. C. Detalhe de anastomose distal.

Adaptado de Kazmers, 1998.

            O tratamento endovascular vem sendo cada vez mais empregado em casos precoces  (em geral < 8 horas), sem sinais ou sintomas de sofrimento intestinal. Trata-se de uma modalidade minimamente invasiva, com menor resposta endocrinometabólica ao trauma e tempo de recuperação reduzido. Contudo, é importante salientar que é impossível determinar viabilidade de alças pela angiografia, portanto deve haver um baixo limiar de sinais de alarme para laparotomia. Dentre as modalidades descritas na literatura, destacamos a revascularização por trombólise farmacológica ou farmacomecânica (com dispositivos de aspiração de trombos, por exemplo), bem como uso de balões de angioplastia e stents para lesões ateroscleróticas e estenoses residuais.

FIGURA 7. Trombólise de AMS guiada por cateter. A. Angiografia inicial seletiva da AMS por cateter em sua porção proximal, com interrupção abrupta do contraste em seu trajeto. B. Aspecto após trombólise, ainda com trombos residuais, mas restauração da continuidade do vaso.

FONTE: https://www.uptodate.com/contents/acute-mesenteric-arterial-occlusion.

            Muitas vezes, há necrose de segmentos intestinais, apesar de revascularização mesentérica bem sucedida. Alguns autores advogam a laparostomia (bolsa de Bogotá) como alternativa ao fechamento da cavidade para o chamado second look em até 48h, em que áreas da “zona cinzenta” da isquemia são reavaliadas quanto à sua viabilidade, e ressecadas, se necessário. É importante ressaltar que, a partir de intestinos residuais menores que 180cm, há maior risco de síndrome do intestino curto, demandando atenção redobrada ao status nutricional do paciente.

FIGURA 8. Isquemia e necrose extensa de delgado durante laparotomia exploradora.

FONTE: https://www.uptodate.com/contents/acute-mesenteric-arterial-occlusion.

            Ao término dessa leitura, você terá compreendido os detalhes anatômicos, mecanismos fisiopatológicos e manifestações clínicas da isquemia mesentérica, bem como utilizar recursos diagnósticos e realizar o manejo inicial da doença da forma mais rápida e racional possível. De fato, trata-se de um grande desafio da prática médica. Mas o que seria de nós sem desafios?

Autor: Dr Rafael Alves Carvalho

Instagram: @carvalho.vascular

Website: www.carvalhovascular.com.br

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