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Com certeza não, você não conhece a MBPR, e o motivo é simples: trata-se duma invenção minha. Mas, se você está na medicina como profissional ou estudante, com certeza sabe do que quero falar com essa sigla, que é justamente o fato de como a medicina tem se afastado do paciente, presa cada vez mais presa à necessidade de passar na bendita prova de residência.
Você faz medicina? Qual vai ser sua especialidade?
Se você é estudante, já deve ter passado por isso algumas (quiçá muitas) vezes. É muito comum te perguntarem qual vai ser sua especialidade quando sabem que você faz medicina. Posso estar enganado, mas não percebo isso com outras profissões. Nunca vi perguntarem para alguém de enfermagem, fisioterapia ou nutrição sobre especialização, assim como nunca presenciei nenhum dos meus muitos primos estudantes ou formados em Direito tendo que explicar se serão criminalistas ou trabalhistas. Até a forma de se referir aos profissionais já mostra isso, como é comum a gente lembrar do primo advogado, da prima enfermeira, do irmão dentista, do vizinho anestesista e do tio que é “cárdio” (não apenas médico). A coisa vai tão longe que já vi uma paciente perguntando se psiquiatra era médico, de tanto que a especialidade deixa em segundo plano o contexto geral da profissão. É óbvio que todas as áreas têm especialidades, mas por que em medicina o peso é delas é tão grande?
Tenho algumas hipóteses, a começar pelo crescimento do número de médicos, sobretudo atualmente1. Em mercados de trabalho competitivos, não importa a profissão, ter uma especialidade é ter um diferencial e, no caso da medicina, a especialização dá a chance trabalhar como generalista etambém como especialista. Além disso, especialidade pode representar maior salário e maior contato com sua área de mais afinidade, o que inclusive ajuda a reduzir o peso de se atualizar num mundo científico que vive se desatualizando, publicando novos estudos, mudando condutas, proibindo, liberando e proibindo de novo os pacientes de comer ovo.
Com a pressão de ser especialista em alta, passar na prova de residência se torna um problema que preocupa sobretudo o estudante, já atolado com os afazeres do curso.
Você faz cursinho para residência? Qual?
Calma, não é porque essa é uma coluna da Sanar que vou começar a fazer propaganda do preparatório para residência deles (se bem que eu faço e recomendo, caso queira saber). Mas, você sabe: essa pergunta aí em cima é recorrente entre estudantes de medicina, e a verdade é que os preparatórios já dominam as universidades2,3. Seja por oferecerem uma didática e atualização nem sempre encontradas na graduação, já nos primeiros anos do curso você vê alguns colegas com apostilas antigas de preparatórios, não raro obtidas no comércio informal desse material entre os estudantes, onde os aprovados na residência vendem ou doam suas apostilas. E se não conhecer alguém que te venda ou doe apostilas, basta entrar nesses sites de compra e venda que você acha diversas opções.
Mas é quando as portas do internato se aproximam que os preparatórios aparecem com força total. Os colegas já vão comparando as opções (alguns são inclusive representantes das empresas dos preparatórios) movidos talvez pelo medo de ficar para trás, afinal, nessa área, a concorrência já começa com o povo comparando as notas de anatomia no primeiro período e, depois, só piora. Quanto a isso, o caso mais emblemático que vi foi o de uma universidade (não digo qual nem de onde) oferecendo preparatório para residência aos seus alunos que estivesse no internato.
E tudo isso por quê? Porque na medicina não basta passar no vestibular ou no ENEM, tem também o “vestibular” da residência, porque cada vez mais não basta ser médica “você vai ser médica do quê?” .
Medicina Baseada em Prova de Residência
Havendo mais concorrente do que vagas nas residências, as provas desempenham o papel que se espera delas: selecionam os que escolhem o maior número de alternativas corretas. E, para que não aconteça de ter um monte de gente acertando quase tudo, os conteúdos cobrados são muito, muito, mas muito amplos. Você quer ser psiquiatra? Pois se prepare para memorizar que a fundoplicatura de Nissen é a cirurgia mais usada para tratar a DRGE (se não lembra o que é essa sigla, aproveite para pesquisar, porque vai cair na sua prova). Esse foi o exemplo que me ocorreu agora, mas se você estuda ou já estudou para prova de residência deve lembrar de muitos outros.
Ao meu ver, o problema disso tudo é que, justamente quando começa o internato, quando você vai ficar ao lado do paciente (que é a sua grande fonte de aprendizado) você se sente obrigado a sacrificar muito do seu tempo decorando conteúdos para passar em (mais) uma prova. Claro que não é perdido o que se aprende (ou se decora) nesse momento, mas é claro que se preparar para ser médico e passar na residência são coisas distintas, e corremos o risco de sacrificar o médico em prol da aprovação. Mais que isso: a prova de residência não mede sua capacidade de ter empatia pelo seu paciente, nem mesmo a prova prática consegue avaliar isso, já que até um psicopata pode fingir empatia quando sabe que está sendo observado.
Ah, então os cursos preparatórios fazem parte de um esquema maligno de formação de respondedores de provas? Não, eles apenas atendem a uma demanda de mercado. Eles não criaram a situação, apenas identificaram um problema e oferecem uma solução na forma de um produto. A coisa não é tão simples, não há um alguém ou algo que possamos culpar. E já adianto: não trago uma resposta. O máximo que eu posso é tentar te convencer que a Medicina Baseada no Paciente (MBP – mais uma sigla inventada) é algo indispensável na carreira de qualquer médico, mesmo que as provas não a percebam.
Ser bom pode ser lucrativo!
De todas as coisas que aprendi na minha primeira passagem pela clínica médica, nenhuma delas se compara a um conselho do professor Dr. Eduardo Gomes, que é o coordenador do internato de clínica médica da UFPB (a federal da Paraíba). Numa visita às enfermarias, ele percebeu o bom relacionamento entre um paciente e um interno e disse que aquele interno ia ter futuro na profissão, porque o que fideliza o paciente, talvez até mais do que preparo técnico, é a capacidade de desenvolver um vínculo, de passar confiança, enfim, de seguir aquele velho conselho do Jung de estudar todas as teorias, dominar todas as técnicas, mas sempre tocar uma alma humana como outra alma humana. E meu professor foi além, dizendo que publicar artigo garante reconhecimento entre os pares, mas, para o paciente, o que conta é como você o atende.
Isso ainda não é suficiente para que você se dedique aos seus pacientes e seus problemas no internato? Pois tenho mais dois argumentos: o aprendizado com o paciente fica na sua memória muito mais do que aquilo que você aprende por leitura ou videoaula e, se você vai precisar trabalhar assim que sair da faculdade, lembre-se que é atendendo paciente que você se habilita para… atender paciente. Parece óbvio, mas ele não vai chegar com cinco alternativas para você marcar uma, ele surge como um ser humano que, como você, tem necessidade de ser ouvido, de sentir que o profissional se importa com seus problemas e que vai fazer o melhor para ajudá-lo. Procure nas suas apostilas: não tem matéria que trate disso, no máximo uma questãozinha (e olhe lá) sobre MCCP (não sabe essa sigla também? Pois pesquise, viu?).
Conclusão
Cabe aqui uma paráfrase do Jung: conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, estude todas as apostilas e aulas do seu preparatório para residência, mas, ao atender um ser humano, seja apenas outro ser humano. Vai também mais uma paráfrase, agora do Santo Agostinho: s e o médico soubesse as vantagens de ser bom para seu paciente, ele seria um bom médico por egoísmo.
Eu queria ter uma solução que te possibilitasse conseguir estudar para residência e se dedicar ao curso médico, mas não tenho (alguém aí sabe como ter um dia de 30 horas?). O máximo que eu pude fazer foi te lembrar que é necessário e que vale a pena se dedicar aos pacientes. E, para encerrar, deixo uma frase de mais um grande professor da UFPB (Dr. Agostinho, professor de semiologia e pneumologia): “Medicina é horas de voo.” Você pode treinar no simulador (fazendo provas, lendo livros, elaborando macetes), mas não se esqueça que, ao se formar, lá na UPA, no hospital ou no postinho, vai ser você ali na beira do leito, conduzindo a saúde de um ser humano real.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências:
1. Lopes AC. The numerical explosion in Brazilian medical schools. Educ Medica. 2018;19(xx):19-24. doi:10.1016/j.edumed.2018.03.004
2. Antonio J, Neto C, Sirimarco MT, Vital LV, Guimarães G, Balbi M. Fontes de estudo e pesquisa entre os estudantes de medicina Sources of study and research among medical students. Published online 2016.
3. e Silva SM, Rosa VF, Brandão PR de P, de Oliveira AC, de Oliveira PG, de Sousa JB. Cursos preparatórios para a residência médica: Visão dos estudantes de medicina. Rev Col Bras Cir. 2011;38(5):349-354.
4. https://www.pensador.com/frase/MjM3NjE4/
5. https://www.pensador.com/frase/NTI0Nzc4/