Doenças falciformes são doenças hereditárias comuns, causadas pela presença de uma mutação pontual no sexto códon do gene da cadeia β da hemoglobina. A presença dessa mutação leva à substituição de ácido glutâmico por valina na superfície externa da cadeia β. Quando ocorre em homozigose, há ausência de cadeias β normais e a consequente formação de hemoglobina S (HbS), constituída por duas cadeias globínicas anormais e duas cadeias globínicas β-S mutantes. A homozigose para HbS é chamada de anemia falciforme.
O evento central da fisiopatologia da doença é a polimerização da hemoglobina S. Quando o tetrâmero formado por HbS está desoxigenado, ocorre alteração da arquitetura do eritrócito, alterando sua flexibilidade e promovendo desidratação celular. A reoxigenação das moléculas de hemoglobina desfaz os polímeros e a hemácia retoma seu formato original, ciclos repetidos de falcização e retorno à morfologia normal lesam permanentemente a membrana eritrocitária, fazendo com que a hemácia se torne rígida e falcizada sob qualquer tensão de oxigênio.
As manifestações clínicas da anemia falciforme não estão presentes no nascimento, devido à alta concentração de hemoglobina fetal (HbF). Com o declínio da concentração de HbF e o aumento da concentração de HbS, as hemácias falcizadas já são vistas em esfregaços de sangue periférico aos três meses de idade e os primeiros sinais de anemia hemolítica podem surgir por volta dos quatro meses
Diversos órgãos e sistemas são afetados na anemia falciforme. O coração sofre as consequências de um estado crônico de alto débito que provoca alterações morfológicas e fisiológicas, como septo interventricular espessado, massa ventricular esquerda aumentada, disfunção diastólica de ventrículo esquerdo, anormalidades de condução, dentre outras.
Episódios de crises vaso-oclusivas ou simplesmente crises de dor são a marca registrada da doença falciforme. Principal causa de internação em pacientes adultos (mais de 90%), muitas vezes precedem complicações mais graves, como síndrome torácica aguda e falência de múltiplos órgãos, e têm associação temporal bem definida com morte súbita, tanto durante quanto alguns dias após o evento. São associadas à grande morbidade e nota-se considerável aumento de mortalidade quando ocorrem três ou mais vezes num intervalo de um ano em adultos
A incidência dessa condição de alta letalidade varia com a idade e com o genótipo, não havendo diferença de incidência entre sexos. É cerca de três vezes mais comum em crianças de pouca idade, embora a apresentação seja mais grave em adultos. Há uma forte associação entre a ocorrência de crises de dor e síndrome torácica aguda e aproximadamente metade dos episódios ocorrem após admissões hospitalares motivadas por crises dolorosas agudas. Parece ser a principal causa de morte dentre indivíduos com anemia falciforme e a segunda causa mais comum de hospitalização. As etiologias possíveis são pneumonia, embolia gordurosa, infarto pulmonar, infarto de costelas ou esterno e embolia pulmonar. Entretanto, em até 50% dos casos não é possível identificar o fator precipitante.
Os efeitos da doença falciforme sobre o sistema nervoso central variam com a idade e podem ser agudos, crônicos, clinicamente evidentes ou sutis. Podem ocorrer acidentes vasculares encefálicos (AVE), ataques isquêmicos transitórios (AIT) e infartos cerebrais silenciosos, sendo que esses últimos levam a um importante prejuízo neurocognitivo. Outras complicações possíveis são convulsões, epilepsia (duas a três vezes mais comum em indivíduos com anemia falciforme) e síndrome da encefalopatia posterior reversível, condição de etiologia desconhecida que se caracteriza por confusão mental, sintomas visuais, convulsões e que pode mimetizar um AVE.
Complicação incomum e potencialmente fatal da anemia falciforme, apresenta-se com amplo espectro clínico, de benigna e oligossintomática a hepatopatia fulminante e óbito. Caracteriza-se por obstrução intra-hepática da formação ou fluxo de bile, gerando hiperbilirrubinemia. Pode vir isolada, associada a outras manifestações agudas, ou no contexto de sequestro hepático, com a adição de grave disfunção hepática a esse quadro.
Para compensar a meia-vida diminuída das hemácias falciformes, a medula óssea aumenta a taxa eritropoiese. Condições que interfiram nesse equilíbrio agravam sobremaneira a anemia. Qualquer processo inflamatório ou infeccioso pode afetar a eritropoiese, sendo a infecção por parvovírus B19 o exemplo clássico.
Definida como queda marcante da hemoglobina basal, associada ao aumento abrupto das taxas de hemólise com reticulocitose e eritroblastose, na ausência de outras causas identificáveis, como sequestro esplênico ou hepático, ou recuperação de crises aplásica, megaloblástica ou sangramento agudo.
Trata-se de ereção dolorosa, persistente, indesejada e recorrente, que pode durar de horas a dias. O diagnóstico se dá pelo relato do paciente, que se queixa de dor no pênis ou no escroto, e pelo pênis completamente ereto ao exame físico.
Infecções bacterianas envolvendo a cortical dos ossos são comuns e estão associadas à necrose avascular e infartos ósseos. O agente etiológico mais comum é a Salmonella spp., seguida por Staphylococcus aureus e outros bacilos gram-negativos entéricos. Fêmur, tíbia e úmero são os ossos mais acometidos. O diagnóstico clínico pode ser extremamente difícil, haja vista que os sinais e sintomas mimetizam aqueles verificados em crises vaso-oclusivas ou infartos ósseos, sendo que esses são cinquenta vezes mais comuns que a osteomielite.
Dentre as intervenções terapêuticas atualmente disponíveis para o tratamento da anemia falciforme, pode-se destacar a hidroxiureia. O tratamento diário e em longo prazo com o fármaco previne ou reduz muitas das complicações agudas e crônicas da doença. É evidente a redução na frequência de crises dolorosas, síndrome torácica aguda, hemotransfusões e hospitalizações, além de redução da mortalidade.