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Medicina do Futuro: A importância eterna do profissional da saúde | Colunistas

Medicina do Futuro: A importância eterna do profissional da saúde | Colunistas

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Vamos ser substituídos por robôs?

Um professor meu, durante meu segundo ano de faculdade, trouxe um aparelho de ultrassom portátil para a discussão do grupo de integração. Fiquei perplexo com a capacidade dele, podia ver diretamente no celular as imagens de ecografia. Foi um momento interessante para discutir o uso de novas tecnologias na Medicina. Nos últimos 30 anos, a nossa área de atuação sofreu um avanço maior do que no milênio anterior, é assustador.


E surge a pergunta: até quando vamos ser úteis? A medicina do futuro vai ser feita em diagnóstico automático por algum novo software? Talvez até seja. Vamos recapitular o cenário atual para entender esse medo.


A onipresença do Dr. Google

Para o estudante de medicina, é comum acessar a internet para verificar conteúdos médicos. Na área extensa que é a saúde, a informação a poucos segundos de pesquisa se torna mais acessível no século XXI. Mas, se os estudantes da saúde fazem buscas na internet, imagine os pacientes. Qualquer dor nova é motivo de pergunta à web. Uma consulta extremamente rápida e gratuita. Claro que existe a chance de um enjoo pela manhã ser apresentado na internet como gravidez ou câncer, mas muitas vezes não é, muitas vezes o “Dr. Google” acerta. O paciente tem acesso aos mais novos tratamentos para sua doença, consegue entender como funciona a sua melhora e até quais sintomas são mais prováveis que tenha.

Este texto é escrito durante a primeira vacinação da COVID-19 feita nos Estados Unidos da América, pela empresa farmacêutica Pfizer. No Brasil, o assunto está em discussão e as doses de vacina foram compradas em altas quantidades, mas, incrivelmente, não são os biomédicos que estão discutindo nas redes sociais sobre validação da vacina: são pessoas sem qualquer formação em saúde. Esse exemplo marca a realidade da medicina de hoje, o paciente pode até achar que sabe mais que o próprio médico. Não posso ver isso como algo ruim, a informação foi mais democratizada na era das redes sociais e das pesquisas online. Dessa forma, cabe a qualquer profissional de saúde saber lidar com isso e conversar com seu paciente de maneira horizontal, estar pronto para discutir a partir de suas referências. O mundo de hoje nos faz estudar mais e ensinar mais, é um saldo positivo.

A preocupação, por outro lado, vem do rápido surgimento dessa ferramenta de pesquisa e do futuro que a aguarda. Se hoje o paciente pesquisa no Google qual o melhor tratamento, e encontra a resposta correta, em poucos anos vamos ser descartados? Cirurgias feitas por robôs, como nos filmes futuristas; diagnósticos feitos por algoritmos e exames feitos automaticamente. Qual o papel de um profissional de saúde em um mundo no qual todo o conhecimento e toda a técnica já são dominados por máquinas?

Vou responder essas perguntas explicando o que esperamos, hoje, da medicina do futuro.

Como vai ser a medicina do futuro?

A Vacina X

O ano de 2020 foi marcado pela pandemia do SARS-Cov-2 (novo coronavírus), foi então que as pessoas ficaram sabendo das novas maneiras de se produzir vacina. Porém, anos antes da pandemia, já haviam organizações para preparar uma vacina em pouco tempo, a fim de salvar o maior número de vidas. Hoje, em dezembro de 2020, quando o coronavírus alcançou mais de 1.700.000 mortos, se demorássemos o tempo já esperado para uma vacina (mínimo de 5 anos), qual o número de mortes que poderíamos esperar?

A Vacina X se baseia em produção do material genético do vetor infectante. No caso de um vírus de RNA, a vacina seria baseada no RNA do vírus, para que o sistema imune consiga detectar o RNA como perigoso, produzir células de defesa com memória imune. Esse processo consegue ser mais rápido do que isolar o antígeno viral para que o sistema imune produza essa mesma resposta.

A Vacina X pode ser uma das principais bases para a medicina do futuro, podendo trazer a imunidade para a população de possíveis doenças que não podemos controlar o surgimento.

A inteligência artificial na Medicina

É o Dr. Google, mas com raciocínio próprio. O AlphaZero[1], programa de inteligência artificial (IA) montado pela Google em 2016, conseguiu ganhar do último software do ramo em jogos de Xadrez. Só por isso não temos uma impressão do quanto é grande esse feito. AlphaZero não foi criada para jogar xadrez, como seus concorrentes, e aprendeu jogando contra si mesma em 4 horas, tempo necessário para derrotar não só todos os melhores jogadores de xadrez do mundo, mas também para derrotar softwares de IA criados para jogar xadrez que demoraram anos para derrotar um jogador profissional.

Claro que comparar um jogo de xadrez, em suas complexidades de 6 peças diferentes em cada lado, com o corpo humano é inaceitável. Mas não estamos comparando, estamos apenas atestando o que a IA é capaz de fazer. Em 4 horas derrotar qualquer jogador ou sistema que jogue xadrez é incrível; assim, em quanto tempo ela demoraria para correlacionar todas as possibilidades contadas no Medicina Interna de Harrison[2]? Dias, semanas, anos? Não importa, é muito possível que ela o consiga em algum momento, e nela estaremos baseando a medicina do futuro, com atendimento online, leitura de lesões por câmera e até leitura de exames em algoritmos criados pela própria AlphaZero (ou a próxima inteligência artificial que possa substituí-la). Stephen Hawking comenta até de seus medos em relação aos limites da IA em seu último livro (Breves Respostas para Grandes Questões)[3], mas queria trazer o que ele comenta de positivo em relação a possíveis avanços com IA.

Um médico é capaz de atender um paciente por vez, analisar e cuidar de um paciente por vez, por mais que veja inúmeros pacientes por dia. Um computador é capaz de associar inúmeros pacientes ao mesmo tempo sem perder a eficácia de interpretação (afinal, apenas segue um algoritmo). Hospitais podem estar com uma quantidade menor de pacientes na emergência do futuro, já que os profissionais de saúde saberão exatamente onde interferir. Cidades com epidemias serão rapidamente interpretadas e seus focos serão atendidos com maior atenção. São problemas que não conseguimos resolver em toda nossa história de civilização, mas que um software de IA consegue resolver “com as mãos nas costas”. O problema, como já foi abordado em muitos livros, filmes e séries vem justamente da piada que Stephen Hawking deixa em seu livro: “o homem pergunta à IA se Deus existe, a máquina queima seu próprio botão de ‘desligar’ e responde ‘agora existe’”.

Hoje, no Brasil, temos a Laura[4], robô de acompanhamento de sepse. Ela aprende com os protocolos seguidos por médicos e registra a piora e melhora dos pacientes automaticamente por analisar o sistema de dados. Vamos ver até onde a Laura vai chegar e quando teremos ela atendendo pacientes indiretamente.

Substituindo osso por prótese

As impressoras 3D vieram para facilitar tantas áreas da humanidade que não é surpresa a utilização destas pela medicina. Em 2018, já estava pronto para ser comercializado um pâncreas artificial para pacientes com diabetes tipo 1[5]. É uma ampliação enorme da capacidade de cura da medicina. Pacientes dependentes de um transplante não precisarão mais de um transplante, mas de um órgão impresso. Hoje já se aplicam próteses artificiais formadas por impressoras 3D em pacientes com lesões ósseas.

A aplicação de órgãos poderá ser inclusive ajustada para os pacientes a partir de ressonâncias magnéticas, sem cirurgias invasivas até o momento de troca do órgão defeituoso pelo órgão artificial. Nesse quesito, entram muitos problemas imunológicos, o primeiro deles tendo o próprio sistema imune rejeitando o órgão de plástico. Como será a produção hormonal é outra questão a ser pensada. Enquanto o pâncreas artificial que comentei apenas tinha uma bomba de insulina e glucagon, tendo um medidor desses hormônios no sangue para poder monitorar automaticamente os hormônios, esse órgão é muito mais complexo, produz inúmeras substâncias endógenas e ainda ajuda a construir o suco digestivo (exógeno). Estamos a anos de conseguir manter um pâncreas artificial completo, mas com certeza poderemos contar com ele algum dia.

Assim, pacientes cardíacos poderão ter um coração feito na medida certa para cada um, inclusive crianças com malformações poderão nascer com os órgãos artificiais prontos para serem substituídos. Esse avanço inclusive provavelmente virá com a melhoria da IA e sua entrada em diagnósticos médicos. Começamos a entrar em um ambiente parecido com filmes de ficção científica, mas não espere que transfiram sua consciência para o corpo do Ryan Reynolds quando estiver velho[6].

Como será a vida do paciente na medicina do futuro?


O filme Passageiros[7] traz uma máquina em sua espaçonave capaz de diagnosticar qualquer doença e oferecer tratamento em questão de segundos. Até mesmo em casos não possíveis de resolução, a máquina oferece diagnóstico e pílulas para aliviar a dor e possível eutanásia. Isso seria possível?

É incrível pode considerar que sim. Algum dia poderemos ter uma máquina assim, mas não será para todos os pacientes. Um paciente séptico pode ter diagnóstico em segundos, sim, mas seu tratamento não será simples como “tome essas duas pílulas”. Isto é, para o paciente, muitas novas tecnologias ainda vão surgir, muitas curas virão acompanhando, e o tempo de espera para ser atendido tende a diminuir cada vez que uma dessas tecnologias entra no mercado. Mas isso não quer dizer que vamos driblar a morte e viver para sempre encontrando a cura de todas as doenças, isso sim é pura ficção científica.

E os profissionais da saúde? Onde irão se encaixar nesse admirável mundo novo?

É incerto pensar que a presença de um software de IA substitui o trabalho de um médico. É muito possível que o número de médicos diminua, e que sua especialização precise aumentar, até porque ele estará responsável por uma tecnologia muito complexa. Em um hospital, no entanto, continuamos com pacientes internados, técnicos podendo fazer seu acompanhamento e evolução. Assim como enfermeiros, biomédicos, fisioterapeutas… a única diferença é que seu trabalho poderá ser facilitado, e a demanda desses profissionais poderá ser menor, enquanto a demanda por informática biomédica e física médica tende a crescer. Técnicos poderão até ter seu serviço feito por máquinas, mas fará parte de seu trabalho supervisionar as máquinas, o que requer uma maior especialização, mas ajuda mais pessoas em um tempo menor.

Um tema muito pouco abordado aqui é a saúde mental. O seriado Maniac[8] traz uma perspectiva interessante sobre ver as doenças mentais a partir de algoritmos. A psiquiatria hoje lida com muitos problemas para poder conectar a falta ou excesso de neurotransmissores com doenças mentais, e isso pode ter pesquisas mais aprofundadas no futuro, mas não temos previsão. A mente, o cérebro, o sistema nervoso central são temas com uma amplitude imensurável de descobertas, o que com certeza garante o emprego de pesquisadores da área, assim como neurologistas, psiquiatras e psicólogos. No seriado mencionado, os pacientes são induzidos a uma experiência em seus sonhos, enquanto o software de IA faz a análise das ações tomadas em consultas e direciona as experiências para que os pacientes tenham uma cura a partir dessas experiências. Toda essa ideia é acompanhada do uso de antidepressivos e moduladores de humor, ou seja, tenta substituir o trabalho da terapia cognitivo-comportamental com experiências induzidas em sonhos e o trabalho de psiquiatras com algoritmos de precisão. Não me parece ser algo viável, no próprio seriado temos diversos problemas apontados, mas é algo a se pensar no futuro da saúde mental. A mente humana é extremamente complexa, e encaixar a psicologia como um algoritmo me parece um trabalho muito audacioso, mas talvez não seja impossível.

A humanização na saúde

Pensando justamente em tantas máquinas e na IA presente nos hospitais e postos de saúde, é inevitável relembrar a importância da humanização da saúde. O paciente não busca o hospital para saber seu diagnóstico, ele busca o hospital para ser tratado. Um tratamento não se baseia apenas em uma cirurgia e três remédios por 2 semanas, uma parte muito importante dele vem simplesmente da confiança que o paciente divide com a equipe que irá tratá-lo.

O papel de um médico, ou de qualquer profissional da saúde, diante de um paciente, é colocar a mão em seu ombro e passar a sensação de que vai ficar tudo bem, e mesmo que não fique, que vai receber todo o cuidado possível. Uma máquina não passa essa sensação, não é sua função, muito menos sua natureza. A saúde humanizada só pode ser feita por humanos, e isso sempre será nosso, independentemente de como a tecnologia se desenvolver. Então, não tenha medo, o futuro nos espera com boas novidades, e a medicina do futuro tende a melhorar muito a vida de todos.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências:

  1. AlphaZero AI beats champion chess program after teaching itself in four hours. Samuel Gibbs, 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2017/dec/07/alphazero-google-deepmind-ai-beats-champion-program-teaching-itself-to-play-four-hours Acesso 23 de dezembro de 2020.
  2. Harrison Medicina Interna, v.2. 16ª. Edição. Rio de Janeiro: McGrawHill, 2006. 5. Lopes AC, Amato Neto, V. TRATADO DE CLÍNICA MÉDICA 3 VOL. 1ª Edição. São Paulo: Roca, 2006.
  3. Breves Respostas para Grandes Questões, Stephen Hawking, 2020. Editora Intrínseca.
  4. IA Laura, página de acesso disponível em: http://www.laura-br.com/. Acesso em 23 de dezembro de 2020.
  5. O Pâncreas Artificial está pronto para comercialização. Ademilson Ramos, 2018. Disponível em: https://engenhariae.com.br/tecnologia/o-pancreas-artificial-esta-pronto-para-comercializacao . Acesso em 23 de dezembro de 2020.
  6. SEM RETORNO. Direção: Tarsem Singh. Interpretado por Ryan Reynolds. 2015. Distribuição no Brasil por Swen Filmes.
  7. PASSAGEIROS. Direção: Morten Tyldum. Intérprete: Chris Pratt. [S. l.]: Columbia Pictures, 2017. 1 DVD.
  8. MANIAC. Patrick Somerville, Cary Fukunag. Netflix, 2018.

[1] AlphaZero AI beats champion chess program after teaching itself in four hours. Samuel Gibbs, 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2017/dec/07/alphazero-google-deepmind-ai-beats-champion-program-teaching-itself-to-play-four-hours Acesso 23 de Dezembro de 2020.

[2] Harrison Medicina Interna, v.2. 16ª. Edição. Rio de Janeiro: McGrawHill, 2006. 5. Lopes AC, Amato Neto, V. TRATADO DE CLÍNICA MÉDICA 3 VOL. 1ª Edição. São Paulo: Roca, 2006.

[3] Breves Respostas para Grandes Questões, Stephen Hawking, 2020. Editora Intrínseca.

[4] IA Laura, página de acesso disponível em: http://www.laura-br.com/. Acesso em 23 de Dezembro de 2020.

[5] O Pâncreas Artificial está pronto para comercialização. Ademilson Ramos, 2018. Disponível em: https://engenhariae.com.br/tecnologia/o-pancreas-artificial-esta-pronto-para-comercializacao . Acesso em 23 de dezembro de 2020.

[6] SEM RETORNO. Direção: Tarsem Singh. Interpretado por Ryan Reynolds. 2015. Distribuição no Brasil por Swen Filmes.

[7] PASSAGEIROS. Direção: Morten Tyldum. Intérprete: Chris Pratt. [S. l.]: Columbia Pictures, 2017. 1 DVD.

[8] MANIAC. Patrick Somerville, Cary Fukunag. Netflix, 2018.