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Miocardite aguda em crianças com COVID-19 | Colunistas

Miocardite aguda em crianças com COVID-19 | Colunistas

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A COVID-19 é uma doença recente que vem assolando a humanidade. De fácil transmissão e ação ainda não bem conhecida no organismo humano, seus efeitos são vários sobre a saúde física e mental dos indivíduos afetados. Dentre as múltiplas consequências decorrentes da contaminação pelo SARS-CoV-2 descritas na literatura, uma intriga grandemente os médicos e, mais especialmente, os pediatras: o surgimento de miocardite aguda em pacientes pediátricos.

Embora as estatísticas apontem para uma menor exacerbação de sintomas em crianças e adolescentes, de modo que esses exibem apenas sintomas leves ou então se portam assintomáticos, o que resulta em uma menor incidência de casos fatais, a descrição de vários casos de complicações cardíacas em pacientes pediátricos preocupa bastante aos médicos, pelo tipo de dano resultante da contaminação viral e seu alto potencial de desfecho fatal.

Miocardite: o que é?

Para entender o alarde que os vários relatos de caso de miocardite infantil pós-infecção pelo coronavírus causaram, é primordial entender inicialmente o que é a miocardite. Essa é uma condição de inflamação do miocárdio, um dos três tecidos que formam o coração (endocárdio, miocárdio e pericárdio). As causas da miocardite são várias, desde o uso de fármacos, exposição a cardiotóxicos, doenças autoimunes e infecções (independentemente do gênero agressor: bactéria, fungo ou vírus).

No caso de miocardite aguda, essa decorre normalmente de uma infecção viral, o que propicia um súbito desenvolvimento da doença e acometimento do tecido muscular do coração, condição essa de grave risco, pois a principal consequência é a falência do músculo cardíaco, que necrosa e propicia uma redução da eficiência de contração cardíaca, reduzindo sua capacidade de bombear o sangue para os tecidos periféricos, ocorrendo principalmente nos casos de lesão difusa do miocárdio; outra consequência é o surgimento de arritmias, que também diminuem a eficiência da bomba cardíaca, e maior probabilidade de morte súbita, decorrente normalmente de acometimento focal do miocárdio.

Miocardite: sintomas e diagnóstico

De praxe, a miocardite apresenta quadros muito brandos, por vezes imperceptíveis ao acometido. No entanto, nos casos em que a evolução do quadro é mais acentuada, levando à redução na capacidade de bombeamento do coração (insuficiência cardíaca), os sintomas são mais relevantes. Normalmente o indivíduo passa a sentir um desconfortável cansaço, que, dependendo do grau da lesão no miocárdio, impossibilita a mais simples ação, como andar ou simplesmente pentear os cabelos, além da sensação dispneica (falta de ar) e o surgimento de edemas (inchaço) que, normalmente, afetam os membros inferiores. A miocardite pode ser ainda mais grave nos casos agudos, pois, com a rápida e súbita evolução do quadro, o indivíduo pode desenvolver um sério choque cardiogênico, o que demandará um atendimento rápido e preciso para que o desfecho não seja fatal.

O diagnóstico é clínico, pela realização de uma boa anamnese para avaliação do caso, e complementado, para confirmação, com exames específicos, que podem ser iniciados a partir de dois procedimentos: a realização de eletrocardiograma (ECG) e a aferição da presença e concentração da troponina cardíaca na circulação sanguínea. Por meio do ECG, embora em alguns casos este se mostre normal, anormalidades no segmento ST podem ser descobertas no exame, sugestivo de lesão cardíaca. Dessa forma, achados como elevação do segmento ST ou alterações no padrão da onda T são sinais para a realização de uma investigação mais detalhada do caso.

No caso da dosagem de troponina, esse é um exame super interessante para averiguar lesão cardíaca, pois, em casos de lesão miocárdica, as enzimas cardíacas tenderão a estar elevadas devido à necrose dos miócitos desse tecido. Havendo suspeitas de miocardite, deve-se solicitar a realização de ressonância magnética (RNM) do coração, por ser um exame de boa sensibilidade à lesão cardíaca e poder indicar, ainda, a extensão e localização do dano miocárdico.

O exame considerado padrão-ouro no diagnóstico da miocardite é a biópsia endomiocárdica (BEM), sendo a constatação definitiva de lesão miocárdica por meio histopatológico. No entanto, esse exame apresenta uma baixa sensibilidade para diagnóstico, pois, caso o resultado seja positivo, esse é de fato confirmado; mas, se for negativo, não é possível “bater o martelo” e afirmar com exatidão que não é miocardite, uma vez que a amostra recolhida e enviada ao laboratório pode não ser significante, de uma região onde ainda não houve o acometimento do tecido por inflamação. Além do mais, esse exame não é realizado rotineiramente, por seus riscos de complicação, como ruptura do miocárdio, que pode levar à morte. Portanto, esse exame só deve ser realizado em alguns casos especiais, como uma insuficiência cardíaca fulminante, arritmias ventriculares intratáveis ou casos em que o resultado afete significativamente o tratamento, ou seja, os benefícios superam os riscos de possíveis danos.

Miocardite aguda infantil por COVID-19

A miocardite aguda infantil associada à COVID-19 é um assunto que cada vez mais é relatado no círculo médico e que vem sendo alertado por importantes entidades envolvidas com esse tema, como a Associação Americana do Coração (American Heart Association) e a Academia Americana de Pediatria (American Academy of Pediatrics). Embora essa complicação tenha sido, de certo modo, recentemente descrita, o surgimento de diversos relatos dessa condição ao redor do mundo permite uma dedução inicial das causas da miocardite pediátrica pós-contaminação por SARS-CoV-2.

Uma primeira hipótese seria o bloqueio viral das respostas mediadas pelos interferons dos tipos I e III (glicoproteínas secretadas pelo sistema imunológico, que têm, dentre seus vários papéis, a tarefa de modular a resposta imunológica, induzindo a proliferação e nível de atividade de outras células do sistema imune, como macrófagos e células NK “Natural Killer”), gerando uma tempestade de citocinas pró-inflamatórias que seria liberada na circulação de pacientes com uma expressiva carga viral de SARS-CoV-2 ou em replicação viral descontrolada, ocasionando uma inflamação multissistêmica denominada MIS-C (multisystem inflamatory syndrome in children).

Outra suposição parte do pressuposto de que as crianças seriam menos afetadas pelo coronavírus pela menor ligação viral à enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), o que leva a uma segunda suposição: a miocardite não necessariamente refletiria a ligação do vírus à ACE2, mas seria ocasionada por uma resposta imune do hospedeiro associada à infecção, mediada por anticorpos. Essa hipótese é corroborada pelo achado de vários anticorpos que são encontrados exclusivamente em pacientes com MIS-C e que tem seus alvos amplamente expressos no tecido miocárdico, levando alguns estudiosos do tema a postular que a MIS-C é semelhante, no aspecto imunológico, à febre reumática aguda (uma doença causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A, decorrente da complicação de infecções na garganta que atinge diversas estruturas do corpo, entre elas o coração).

A miocardite aguda associada à COVID-19 exibe características muito similares (fazendo com que ela mimetize) a doenças já conhecidas, como a doença de Kawasaki (vasculite que normalmente afeta as coronárias) e a síndrome do choque tóxico (condição de hipoperfusão tecidual induzida por toxinas de origem estafilocócicas ou estreptocócicas).

Os afetados normalmente apresentam como achados clínicos: febre persistente, sintomas gastrointestinais, sintomas mucocutâneos e danos no sistema cardiovascular (originado da inflamação multissistêmica). Dentre os achados laboratoriais, estudos realizados em vários centros médicos permitem que se elenquem alguns fatores sugestivos de miocardite aguda. Em um estudo realizado com 5 crianças atendidas em um hospital do Bronx, em Nova Iorque, o ecocardiograma demonstrou a presença de disfunção biventricular ou em ventrículo esquerdo, o que resultou em diminuição da VES (volume ejetado sistólico). A troponina sérica estava elevada na maioria dos investigados (resultado similar ao encontrado em um estudo realizado em 8 hospitais britânicos). O peptídeo natriurético pró-cérebro N-terminal (NT-proBNP) se mostrou elevado em todos os pacientes afetados pela miocardite aguda. Em um dos pacientes analisados, uma menina de 8 anos de idade, o ecocardiograma detectou artérias coronárias ectáticas (dilatadas). E em exames radiológicos foi evidenciada cardiomegalia e congestão vascular ou edema pulmonar nesses pacientes, além da ausência de opacidades no espaço aéreo (resultado contrastante com o de indivíduos que não apresentaram miocardite aguda pós-infecção, mas que apresentaram consolidações pulmonares ou infiltrados parenquimatosos nebulosos).

Ainda, em uma revisão sistemática que se utilizou de 7 estudos que contaram, ao todo, com 212 pacientes, foi encontrado que: ao ECG, a maioria apresentou anormalidades do segmento ST e outros exibiam ondas T anormais, bloqueio atrioventricular (AV) e arritmia ventricular; a ecocardiografia relatou anormalidades nas artérias coronarianas de alguns indivíduos, como aneurismas; o teste de função cardíaca revelou fração de ejeção cardíaca (FE) abaixo dos normais 55% (condizente aos resultados encontrados no hospital do Bronx).

Conclusão

Dado o caráter recente e a gravidade do quadro de miocardite aguda decorrente da infecção pelo SARS-CoV-2, é imprescindível que os profissionais médicos se atentem para qualquer sintomatologia que remeta a essa condição, buscando sempre identificar sinais de miocardite nas crianças infectadas por eles atendidas. A condição, embora se apresente rara, apresenta uma tendência perigosa de desfecho, o que demanda um cuidado médico mais aprofundado, que muitas vezes pode necessitar de um serviço suplementar de suporte ao sistema cardiorrespiratório.

Ainda, é necessário que se continue a investigação dessa misteriosa complicação, por parte de médicos e pesquisadores do assunto. Para isso, deve-se acompanhar todos os casos encontrados, desde o período curto de tempo, do atendimento médico, pela análise dos sintomas desenvolvidos e respostas aos tratamentos implementados, até o período médio e longo, a fim de avaliar as anormalidades cardíacas persistentes mesmo após o retorno dos marcadores inflamatórios a níveis normais.

Além disso, é primordial que se evite esse possível desfecho. Para isso, seguir as diretrizes dos órgãos sanitários, como isolamento social, uso de máscaras adequadas e limpeza das mãos com sabão ou álcool em gel é importantíssimo. A COVID-19 mostra que pode afetar a todos em diversas gravidades, independentemente da idade ou condição física, e a eficiente tática da prevenção pode preservar a todos dos danos que essa infecção acarreta.

Autor: Felipe Dias Gonçalves

Instagram: @felipedias789


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


REFERÊNCIAS:

MIOCARDITE AGUDA DECORRENTE DE INFLAMAÇÃO MULTISSISTÊMICA EM CRIANÇAS COM COVID‐19: UMA COMPLICAÇÃO EMERGENTE – https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7936758/

COVID-19 in pediatric patients: a case series from the Bronx, NY – https://link.springer.com/article/10.1007/s00247-020-04782-2

Cardiac manifestations, treatment characteristics, and outcomes of paediatric inflammatory multisystem syndrome temporally associated with severe acute respiratory syndrome coronavirus-2: A systematic review – https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1058981321000308

Miocardite – https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/doen%C3%A7as-cardiovasculares/miocardite-e-pericardite/miocardite#:~:text=Miocardite%20infecciosa%20pode%20ser%20precedida,sarcoidose%20como%20etiologia%20de%20base.

MIOCARDITE: O QUE É, CAUSAS, SINTOMAS E TRATAMENTO – https://www.mdsaude.com/cardiologia/miocardite/#:~:text=Miocardite%20%C3%A9%20o%20nome%20dado,%2C%20consumo%20de%20coca%C3%ADna%2C%20etc.