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Morte súbita no atleta: quais as possíveis bases fisiológicas?

Morte súbita no atleta: quais as possíveis bases fisiológicas?

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A morte súbita no atleta é definido como todo indivíduo envolvido em práticas esportivas individuais ou coletivas regulares, de caráter competitivo ou não. Geralmente sempre um evento dramático que causa grande impacto na sociedade, na família, na comunidade médica e grande repercussão na mídia, principalmente no caso de atletas profissionais.

Isso ocorre pelo fato de os atletas serem considerados como o segmento da sociedade mais saudável, em que se tem a crença de que as qualidades atléticas desses são um reflexo de seu estado de saúde, tornando-se difícil compreender como esses modelos de saúde podem morrer durante ou após a prática de atividades físicas.

O evento ocorrido no dia 12 de junho de 2021 com o atleta dinamarquês Christian Eriksen, na Eurocopa, deixou todos no mundo dos esportes muito apreensivos. O jogador de futebol apresentou uma síncope, e segundo os médicos que o atenderam não apresentava pulso na avaliação inicial.

As medidas de reanimação cardiopulmonar foram fundamentais para restabelecer os sinais vitais do jogador e trazê-lo de volta à vida. Entretanto a dúvida que paira sobre o ocorrido é: o que aconteceu naquele momento? 

A morte súbita é definida como um evento inesperado, com perda abrupta da consciência em até uma hora após o início dos sintomas. Ocorre, geralmente, em indivíduos sem sintomas relevantes, porém em quase 90% dos casos há uma doença cardíaca não diagnosticada previamente.

A incidência de morte súbita em jovens atletas é estimada entre 1 morte para 50 a 100 mil indivíduos por ano, esse número é substancialmente menor que a incidência de morte súbita na população geral.

Durante a atividade física, o atleta com este tipo de problema pode desenvolver arritmia maligna e parada cardiorrespiratória (inesperada parada do funcionamento do coração e perda da consciência), que se não for revertida prontamente em alguns minutos leva à morte.

O exercício físico, contudo, não deve ser encarado como único responsável pelo evento morte súbita, mas, antes, como coadjuvante em um sistema complexo que envolve uma doença preexistente – por vezes silenciosa – fatores predisponentes como

  • idade,
  • sexo,
  • condições ambientais extremas,
  • distúrbios hidroeletrolíticos graves,
  • uso de determinados agentes ergogênicos
  • tipo de esporte praticado, além de um momento crítico, tendo como “gatilho” o exercício físico, o qual pode alterar o equilíbrio de forma a iniciar a cadeia de eventos que culmina com a morte súbita.

Fisiopatologia

Com base em inúmeros estudos relacionados a este tema, pode-se dizer que a grande maioria das pessoas que morrem subitamente durante a atividade física possui uma doença cardíaca que justifica a sua morte.

Desta forma, é imperioso supor que um atleta falecido por morte súbita já apresentava previamente algum problema no coração, uma vez que é extremamente difícil o desencadeamento de morte súbita em atleta com o coração sadio. A taquiarritmia ventricular é o mecanismo responsável pela morte súbita em 80% dos casos, ficando os outros 20% a cargo da bradiarritmia e da assistolia. 

Esses mecanismos não ocorrem ao acaso, e sim em corações com processos patológicos subjacentes que resultem em hipertrofia, alterações estruturais de fibras cardíacas, fibrose ou necrose no miocárdio, com ressalva de deficiências nos canais iônicos que também podem desencadear arritmias ventriculares, mesmo em corações estruturalmente normais.

Todavia, muitas vezes não basta que existam problemas estruturais no coração, é preciso que sobre ele atuem fatores fisiopatológicos – os chamados “gatilhos” – capazes de ativar mecanismos que, em conjunto, possam levar a instabilidade elétrica do coração e, conseqüentemente, a uma arritmia fatal e morte súbita. 

Alguns desses fatores que podem agir em um miocárdio suscetível durante o exercício físico são: demanda miocárdica de oxigênio elevada e redução simultânea da diástole e do tempo de perfusão coronária; alteração do tônus simpático ou parassimpático; liberação de tromboxano A2 e outros vasoconstritores coronários; hipercoagulabilidade sanguínea; acidose lática e alterações eletrolíticas intra e extracelulares; concentrações elevadas de ácidos graxos livres e elevação excessiva da temperatura corporal. 

A redução do débito cardíaco, secundária a isquemias ou arritmias do miocárdio, a diminuição do fluxo sanguíneo cerebral e a perda de consciência são eventos que sempre precedem a morte súbita cardíaca no decorrer do exercício, independente do mecanismo responsável pela sua ocorrência. Já no intervalo pós-exercício imediato, a ocorrência de síncopes, arritmias e parada cardíaca deve-se à cessação súbita da atividade física, quando ainda está mantida a vasodilatação arterial, associada à acidose láctica própria deste período

Etiologia

As causas de morte súbita em atletas jovens – aqueles com menos de 35 anos de idade – são, na sua grande maioria, relacionadas a anomalias congênitas de origem cardíaca. Dentre essas, a que mais se destaca é a cardiomiopatia hipertrófica, principal responsável por casos de mortes súbitas na quase totalidade dos estudos, seguida das anomalias congênitas da artéria coronária e da hipertrofia idiopática do ventrículo esquerdo. Já em esportistas com mais de 35 anos, as principais causas são doenças adquiridas do coração, em especial a doença arterial coronariana.

Cardiomiopatia hipertrófica

A cardiomiopatia hipertrófica é a forma mais comum de doença cardiovascular de origem genética, tendo prevalência estimada para a população em geral em torno de 0,2%, o que equivale a um caso para cada 500 indivíduos. É uma doença congênita autossômica dominante na qual são conhecidos até o presente momento 12 genes envolvidos, que resultam em mais de 400 mutações genéticas relacionadas com as proteínas contráteis do miocárdio. 

Caracteriza-se por hipertrofia não-dilatada do ventrículo, que ocorre com mais frequência no ventrículo esquerdo, na forma assimétrica e com acometimento do septo interventricular, podendo ou não ter obstrução no trato de sua saída. Isso acarreta em uma importante desorganização miofibrilar, hipercontratilidade e hipodiastolica. Os portadores de cardiomiopatia hipertrófica são, em sua maioria, totalmente assintomáticos, o que torna a morte súbita comumente a primeira manifestação clínica da doença. 

Uma importante diferenciação deve ser feita entre a cardiomiopatia hipertrófica e a “síndrome do coração do atleta”. Nessa síndrome, o treinamento físico intenso leva a várias alterações morfológicas e fisiológicas, em especial a hipertrofia do ventrículo esquerdo, de caráter benigno e reversível, resultado de demanda energética elevada. Esta diferenciação deve ser feita para que se evite pôr em perigo a vida de um atleta com alto risco de falecer subitamente ou para que se evite desqualificar erroneamente um atleta plenamente saudável.

Anomalia congênita

A anomalia congênita da artéria coronária mais comumente relacionada à morte súbita é aquela em que o tronco da artéria coronária esquerda nasce do seio de Valsalva direito. Presume-se que o mecanismo desencadeante da morte súbita seja uma hipoperfusão miocárdica secundária à formação de um ângulo agudo acentuado na origem dessa artéria anômala, quando essa passa entre a aorta e o tronco arterial pulmonar. O exercício físico auxilia o desenvolvimento da isquemia por estimular contrações cardíacas vigorosas que acabam por comprimir mecanicamente a artéria coronária anômala entre a aorta e o tronco pulmonar. Como a cardiomiopatia hipertrófica, a anomalia congênita da artéria coronária normalmente é assintomática, com os portadores da doença apresentando até mesmo eletrocardiograma e teste ergométrico normais, o que dificulta muito a identificação desta condição patológica.

A hipertrofia idiopática do ventrículo esquerdo 

A hipertrofia idiopática do ventrículo esquerdo é uma hipertrofia na qual, inexplicavelmente, o ventrículo esquerdo excede o tamanho normal de uma hipertrofia fisiológica do coração de um atleta. Diferentemente da cardiomiopatia hipertrófica, essa doença apresenta hipertrofia simétrica e concêntrica, não possui um caráter genético nem existe desarranjo miofibrilar no miocárdio. Ainda não se conhece o exato mecanismo através do qual esta doença resulta em morte súbita, mas tal mecanismo parece ser semelhante ao da cardiomiopatia hipertrófica.

Doença arterial coronariana 

A doença arterial coronariana é a principal causa de morte súbita em atletas acima dos 35 anos. Fortes evidências indicam que a atividade física reduz o risco de eventos cardiovasculares em pacientes com este diagnóstico, pois o exercício, quando praticado regularmente e de forma moderada, é capaz de reduzir o perfil lipídico e causar uma estimulação autonômica parassimpática, o que melhora a estabilidade elétrica do coração do atleta.

Entretanto, apesar dos efeitos benéficos dos exercícios, quando esses são praticados ocasionalmente e em intensidade inadequada por pessoas com coronariopatias, o risco de infarto agudo do miocárdio e consequente morte súbita aumenta bastante. O mecanismo desse infarto provavelmente se dá por ativação autonômica simpática, predispondo a uma instabilidade elétrica do coração, desenvolvimento de arritmias cardíacas e/ou de ruptura de placas ateroscleróticas vulneráveis, que leva à trombose coronária e conseqüente isquemia miocárdica.

Commotio cordis

O commotio cordis ou concussão cardíaca é um evento eletrofisiológico causado por impacto não penetrante na região precordial, que ocorre em indivíduos com ausência de doenças cardíacas subjacentes ou lesões estruturais do coração.

Tem uma predileção por crianças e adolescentes, provavelmente pelo fato de a parede torácica do jovem ser mais fina e maleável, o que facilita a transmissão da energia do impacto do tórax para o miocárdio. A concussão cardíaca ocorre em uma ampla variedade de esportes, entretanto é mais comum no beisebol, softball, hóquei no gelo, futebol americano, lacrosse e artes marciais, com o trauma sendo causado usualmente por projéteis esportivos, como bola de beisebol e discos de hóquei, ou por um impacto direto de um adversário.

Link e col. mostraram que o momento do ciclo cardíaco em que o impacto no precórdio acontece, parece ser crítico para o desenvolvimento do commotio cordis. Este período vulnerável seria durante a repolarização ventricular, 15 a 30 milissegundos antes do pico da onda T do eletrocardiograma.

Triagem cardiovascular para participação em esportes

Antes de participar em esportes, geralmente é feita a triagem dos atletas para a identificação do risco. Nos EUA, os atletas são reavaliados a cada 2 anos (se estiverem no segundo grau) ou a cada 4 anos (se forem universitários ou mais velhos). Na Europa, a triagem é repetida a cada 2 anos, independentemente da idade.

Screening recommendations in the US for college-age young adults—as well as for children and adolescents—include the following:

  • História clínica, familiar e uso de fármacos (incluindo o uso de fármacos que melhoram o rendimento e fármacos que predisponham à síndrome do QT longo)
  • Exame físico (incluindo pressão arterial e ausculta cardíaca em pé e deitado)
  • Exames selecionados baseados na história e exame físico
  • European guidelines (Diretrizes europeias) diferem das diretrizes americanas pelo fato de que recomenda-se eletrocardiograma (ECG) para triagem em todas as crianças, adolescentes e atletas universitários.

A triagem de adultos com 35 anos ou mais pode incluir testes de esforço limitados pelos sintomas, especialmente se tiverem sido sedentários por alguns anos.

A história clínica e o exame físico não são sensíveis, nem específicos, uma vez que os achados falso-negativos e falso-positivos são comuns, pois a prevalência de doenças cardíacas em uma população aparentemente sadia é muito baixa. O uso de ECG ou ecocardiograma para triagem poderia melhorar a detecção de doenças, mas pode provocar ainda mais diagnósticos falso-positivos, sendo impraticável em nível populacional.

Exames genéticos para miocardiopatia hipertrófica ou síndrome do QT longo não são recomendados ou mesmo factíveis para triagem de atletas.

Exames selecionados

Atletas com história familiar ou sinais e sintomas de miocardiopatia hipertrófica, síndrome do QT longo ou síndrome de Marfan requerem avaliação adicional tipicamente com ECG, ecocardiograma ou ambos. A confirmação de qualquer desses distúrbios pode impedir a participação em esportes.

Atletas com pré-síncope ou síncope também podem ser avaliados para averiguar a possibilidade de anomalias das artérias coronárias (p. ex., por cateterismo cardíaco).

Se o ECG demonstrar bloqueio de segundo grau Mobitz tipo II, bloqueio AV total, bloqueio do ramo direito verdadeiro ou BRE, ou se houver evidências clínicas ou eletrocardiográficas de distúrbio do ritmo ventricular ou supraventricular, investigação de doença cardíaca é necessária.

Se uma aorta alargada for detectada no ecocardiograma (ou incidentalmente), é necessária uma avaliação mais aprofundada.

Recomendações

Os atletas devem ser orientados a evitar o uso de drogas ilícitas e as intensificadoras de desempenho. Pacientes com doença valvar cardíaca leve ou moderada podem participar de atividades vigorosas; mas os pacientes com doença cardíaca valvar grave, particularmente estenótica, não devem participar de esportes competitivos ou esportes recreativos de alta intensidade.

Pacientes com distúrbios cardíacos mais estruturais ou arritmogênicos (p. ex., miocardiopatia hipertrófica, anomalias das artérias coronárias, displasia arritmogênica do ventrículo direito) não devem participar de esportes competitivos ou de esportes recreativos de alta intensidade.

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Perguntas Frequentes

  1. Qual a causa mais frequente?

Cardiomiopatia hipertrófica

2. A presença dessas patologias afeta a prática esportiva?

A confirmação de qualquer desses distúrbios pode impedir a participação em esportes.

3. Qual a principal recomendação?

Os atletas devem ser orientados a evitar o uso de drogas ilícitas e as intensificadoras de desempenho.