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O COMBATE AO CORONAVÍRUS NO BRASIL SOB A ÓTICA DO MARKETING | Colunistas

O COMBATE AO CORONAVÍRUS NO BRASIL SOB A ÓTICA DO MARKETING | Colunistas

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            Minha primeira formação em nível superior foi de tecnólogo em Marketing. Trabalhar com Marketing nunca foi um sonho meu, mas, enquanto eu não encontrava meios para entrar na medicina, tentei ao menos fazer alguma coisa, e o curso de marketing me parecia o mais atrativo (ou o menos repulsivo) dentre as opções ofertadas pela universidade particular que cursei em minha cidade (Diadema-SP). Assim, não é surpresa que eu nunca tenha atuado na área e, durante muito tempo, pensei que tivesse mesmo perdido tempo e dinheiro com o curso. Contudo, já dizia Oscar Wilde que a vida imita a arte com mais maestria do que a arte imita a vida, e é justamente nesta pandemia (um tema eminentemente médico) que percebo como as estratégias do marketing poderiam ser úteis aos nossos gestores públicos.

            Em 2006, Philip Kotler, uma das maiores autoridades em marketing no mundo, escreveu com Nancy Lee o livro “Marketing in the Public Sector: A Roadmap for Improved Performance”. Nesta obra, os autores rebatem a visão comum que se tem do marketing, encarado como algo limitado à propaganda, um sinônimo da palavra “venda” ou mesmo associado à manipulação, mostrando que, na verdade, seus princípios e técnicas têm a função de desenvolver, precificar, distribuir e oferecer valor para consumidores e, no caso da ação de governos, cidadãos.

            Aprofundando o tema, Kotler e Lee apontam que a mentalidade (mindset, como se diz em inglês) por trás do estudo se expressa em seus 4 “Ps”: produto, preço, praça (ponto de venda ou de distribuição) e promoção (divulgação). Assim, de forma a esclarecer como o marketing pode ser interessante à atuação de entes públicos, vou ilustrar os princípios da sua atuação (os 4 “Ps”) com base nas ações governamentais brasileiras de combate à pandemia.

Antes, porém, é interessante apresentar uma definição, e a mais precisa que conheço é a de Raimar Richers, um dos grandes nomes da área no Brasil, para quem o marketing consistia em entender e atender ao cliente. E a coisa não muda muito no caso de governos, bastando dizer que sua função é entender e atender a seus cidadãos.

Agora sim podemos começar: no caso da pandemia no Brasil, a população foi entendida? O que ela quer é óbvio: não morrer de COVID-19 (nem de fome). Ademais: ela foi atendida em suas necessidades? Vejamos:

1º P: PRODUTO

Por produto também se inclui serviço e, de maneira ampla, a solução de um problema. Quem vende uma furadeira, em última análise, vende furos. Dessa forma, entende-se que neste primeiro P encontram-se os produtos e serviços oferecidos pelo governo de modo a atender às necessidades da população de não ficar doente e de que, caso fique, tenha como se restabelecer. O que se observou, entretanto, foi o negacionismo por parte do chefe do poder executivo que, inclusive, demitiu dois ministros da saúde contrários a medidas sem respaldo científico. E, percebendo que não encontraria um profissional de saúde alinhado com seus erros, este mesmo cidadão escolheu um general alinhado com sua forma de “pensar” para o ministério da saúde – durante uma das maiores crises sanitárias que o Brasil já viu. Os números de doentes e mortos, entretanto, o “obrigaram” a escolher outra pessoa para a pasta, o que enfim aconteceu – mas ainda é cedo para avaliar as ações deste novo ministro que “pelo menos” é médico.

Tratando especificamente dos produtos ofertados pelo governo, encontra-se um minguado auxílio emergencial, só liberado depois de grande insistência popular e parlamentar. E, com relação ao combate objetivo da pandemia, assistimos com tristeza ao Supremo Tribunal Federal vendo-se obrigado a entregar a responsabilidade pelo combate à pandemia aos estados e municípios, uma vez que o governo federal se mostrou incapaz para coordenar ações. Muitos exemplos desta incapacidade em oferecer o que o povo precisa poderiam ser citados, mas bastam quatro para comprovar o que se diz aqui:

1) A recusa a três ofertas de compra de vacinas no segundo trimestre de 2020;

2) A tentativa de obrigar o estado de São Paulo a entregar todas as vacinas produzidas pelo Instituto Butantan em parceira com chineses (diversas vezes chamada pelo “supremo mandatário” de “vacina do Dória” e “vacina da China”);

3) O estímulo a métodos não comprovados de combate ao vírus, como destaque para a hidroxicloroquina;

4) Falta de leitos de UTI e de insumos, com destaque para oxigênio e ventiladores mecânicos.

2º P: PREÇO

            Neste segundo P encontra-se o custo dos produtos e serviços ofertados ao consumidor ou, no caso, contribuinte, que executa o pagamento mediante impostos. Aqui também o desgoverno foi a média, já que a recusa inicial em comprar vacinas antes levou o governo a buscar estas mesmas vacinas mais tarde, em um mercado ainda mais saturado pela concorrência. Ademais, a ineficiência governamental contribuiu para tornar o Brasil o epicentro da pandemia, o que resultou em mortes e sequelas para milhares de famílias. Ou seja, o preço econômico e social pago pela população foi (e é) alto demais.

3º P: PRAÇA

            O P de praça representa os pontos de venda que, numa análise mais ampla, são os locais onde os consumidores obtêm os produtos e serviços. Aqui também encontramos erros:

  1. Aglomerações em bancos e casas lotéricas para retirada do auxílio emergencial; paradoxalmente, foi se submetendo a aglomerações que muitos conseguiram sacar seu auxílio;
  2. Superlotação de hospitais, com destaque para o filme de terror que se passou na rede pública de Manaus. Entretanto, é preciso lembrar que as coisas já não iam bem antes da pandemia, nós apenas havíamos perdido a capacidade de nos escandalizar – fizemos do absurdo nossa rotina, achando normal gente em corredor de hospital porque “é assim mesmo, fazer o quê?”;
  3. As (poucas) vacinas não foram ofertadas seguindo o exemplo de nossas já bem-sucedidas campanhas de vacinação. Por conta da falta de uma coordenação nacional, cada município seguiu um calendário próprio, e, diante da falta de vacinas, a vacinação nos municípios foi restrita apenas aos seus moradores, limitando assim os postos de vacinação (“ponto de venda”) disponíveis para a população (“consumidores”).

4º P: PROMOÇÃO

            Neste quarto e último P, estão as ações de comunicação com o consumidor e, como se trata de cuidados em saúde, a promoção pode ser tanto o anúncio do produto (como anunciar uma campanha de vacinação) como de um cuidado de saúde (como o ensino de ações de combate e prevenção ao vírus). Eis aí o que aconteceu:

  1. Propagação de medidas e produtos sem eficácia comprovada: lembremos do alarde feito em torno da cloroquina, além de todas as outras medicações incluídas no “tratamento precoce”, como azitromicina, ivermectina, vitamina D e tantas outras coisas imaginadas pela criatividade de muitos, incluindo médicos;
  2. Desrespeito pelas medidas de isolamento social e de proteção individual: assistimos a autoridades provocando aglomerações e desprezando o uso de máscaras, com destaque para nosso (felizmente ex-) chanceler, que chegou a ser repreendido por não utilizar máscara durante sua visita a Israel;
  3. Falta de propagandas nacionais sobre vacinação: diferentemente de todas as campanhas de vacinação na história recente do Brasil, não vimos uma coordenação nacional no sentido de informar a população sobre a vacinação. Esqueceram do Zé Gotinha no momento em que ele era mais necessário;
  4. Politização do combate ao vírus: a frase “quem é de direita toma cloroquina, que é de esquerda toma tubaína” mostra a que ponto a polarização política chegou em nosso país e como a comunicação foi deturpada por conta disso.

É claro que não basta jogar sobre as costas do governo toda a responsabilidade, afinal, pululam no noticiário casos de aglomerações por todo o país. Todavia, é útil se questionar em que medida tudo isso é estimulado por uma postura displicente que já vem “de cima”.

De resto, acho que não disse nada que ninguém já não soubesse. Contudo, espero que esta breve revisão de descalabros sirva ao menos de exemplo sobre o que não se fazer no marketing em setor público e que, também, tenha ampliado a visão comum que se tem do marketing – que teria muito a contribuir no Brasil de hoje.

O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.


REFERÊNCIA

  1. Kotler, P., & Lee, N.Marketing in the Public Sector: A Roadmap for Improved Performance, Financial Times/ Prentice Hall; 1ª edição (16 outubro 2006);
  1. Richers, Raimar, Marketing: Uma Visão Brasileira (Editora Negócio, São Paulo, 1ª edição 2000);
  2. Noticiário comum (nacional e internacional).