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O que é HIV?
A infecção causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) foi descoberta em 1981 através dos primeiros casos na Califórnia. Acredita-se que esse vírus atingiu o ser humano por meio do contato direto com o sangue infectado de chimpanzés, já que estes eram alvo de caça. Desde então, a transmissão homem-homem foi determinada pelo contato sexual, drogas injetáveis, transfusões sanguíneas e de mãe para filho. O HIV se alastrou de forma rápida pelo mundo e a taxa de mortalidade era quase 100%¹.
Na década de 80, o vírus ganhou atenção no mundo quando homens homossexuais começaram a apresentar inexplicada deficiência de imunidade. Dois anos depois, surgiu o primeiro relatório onde eventualmente tornou-se conhecida como Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, e os cientistas descobriram o vírus causador: o HIV².
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) apontou de acordo com dados recentes que, o número de novos casos de HIV, por ano, continua aumentando. Em 2010, na América Latina, foram 100 mil casos, em 2019 esse número subiu para 120 mil. Nesse mesmo período, as mortes ligadas à AIDS diminuíram, passou de 41 mil em 2010 para 37 mil em 2019. O que esses dados indicam? Eles mostram definitivamente que a infecção por HIV representa um grave problema de saúde pública e é preciso enfrentar o estigma, as desigualdades e discriminação para assegurar que ninguém perca a cobertura³.
Ainda que não exista a cura para a infecção pelo HIV, a terapia antirretroviral está disponível há quase duas décadas e pode controlar o vírus e ajudar a prevenir a transmissão¹. O HIV infectou mais de 75 milhões pessoas no mundo e hoje, aproximadamente 37 milhões convivem com o vírus, sendo essa a infecção uma das principais causas de morbimortalidade no mundo². Quando usado de forma apropriada, o antirretroviral é eficaz pois supre a replicação do HIV, logo, aumenta a função imunológica e o risco de desenvolver AIDS. Porém, não é curativo, e se a terapia for interrompida o vírus se recupera em semanas².
Frente a esse aumento no número de casos de HIV e diminuição de mortes relacionada à AIDS, Etienne explicou que é esperado que a COVID-19 intensifique esta situação devido a seu impacto nos serviços de saúde, principalmente naqueles países onde os sistemas de saúde são mais frágeis3. Assim, devemos intensificar nossos esforços para proteger esses serviços, pois além de saber que o estigma ainda existe em torno do HIV e da AIDS, o acesso desigual ao serviço de saúde também impede o processo de eliminação da doença³.
Para fins explicativos, podemos esclarecer que o Vírus da Imunodeficiência Humana inclui uma coleção diversa de vírus, entre eles o HIV-1 e HIV-2. O tipo 1 é mais prevalente e patogênico do que o tipo 2 e é responsável pela maioria dos casos no mundo. Em termos de fisiopatologia, o HIV causa fibrose do tecido linfoide através de vários mecanismos, entre eles, a regulação positiva das células T reguladoras e liberação do TGF-β².
SARS-CoV-2 e HIV
No caso do SARS-CoV-2, os primeiros casos surgiram em dezembro de 2019 na China. Em março de 2020, quando globalmente os casos confirmados ultrapassou 118.000, a Organização Mundial de Saúde definiu o SARS-CoV-2 como uma pandemia de uma doença chamada COVID-19¹.
No primeiro semestre de 2020, comparado com o segundo semestre de 2019, foram feitos quase 4 mil diagnósticos a menos de HIV em oito países da América Latina e Caribe. Pessoas sem diagnóstico não têm acesso ao tratamento antirretroviral, portanto correm risco de morte e de expor outras pessoas à infecção. Sabemos, e foi afirmado pelo diretor regional do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), que o COVID-19 é um desafio para os serviços de prevenção, teste, tratamento e cuidados de saúde para os pacientes com HIV. Qualquer interferência na prestação destes serviços gera vulnerabilidade e risco aumentado de infecção por HIV ou morte relacionada à AIDS³.
Já entra em sua quinta década a epidemia de HIV. Quando o HIV se tornou global sobrecarregou os sistemas de saúde e restringiu o acesso a serviços, além disso, segundo Henrietta Fore, diretora executiva do Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas (UNICEF), o crescimento da pobreza, deficiência na saúde mental e abuso estão aumentando o risco de infecção de mulheres e crianças. E, a menos que aumentemos os esforços para resolver as desigualdades que excitam a epidemia do HIV, que neste momento á exacerbadas pela COVID-19, veremos mais crianças infectadas e também perdendo a luta contra a AIDS4.
Como discutido anteriormente, sobre os dois tipos de vírus do HIV, podemos dizer que mesmo parecendo que eles induzem doenças não muito semelhantes, têm alguns pontos formidáveis em comum, entre eles: o medo na população, o aumento da síntese de pró-inflamatório citocinas, as modificações da microbiota intestinal e as armadilhas extracelulares de neutrófilos¹.
Particularmente, gostaria de abordar com você leitor, o papel das citocinas já que essas estão relacionadas com complicações secundárias em pessoas infectadas. É bem sabido que na infecção pelo HIV, a liberação de citocinas é um mecanismo crônico que gera inflamação prolongada. Esse estado inflamatório sustentado foi associado ao aumento da permeabilidade intestinal e translocação bacteriana nos pacientes com HIV. Outro ponto associado à inflamação prolongada é a replicação viral residual e outras coinfecções. Em relação ao COVID-19, a secreção de citocinas é uma resposta aguda e está relacionada às manifestações clínicas. Citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas amplificam a resposta deletéria quando atraem mais células inflamatórias. Uma tempestade de citocinas está implicada na síndrome da angústia respiratória aguda ou na disfunção de múltiplos órgãos. Assim, sabemos que marcadores aumentados na inflamação sistêmica são variáveis significativas no prognóstico de COVID-19¹.
O último relatório HIV and Aids Global Snapshot lembra que uma prolongada pandemia de Covid-19, que coloca crianças, adolescentes, gestantes e lactantes vulneráveis em risco maior de falta de acesso a serviços de prevenção e tratamento, está aprofundando as desigualdades que há muito tempo já impulsionavam a epidemia do HIV4.
O mesmo relatório nota que, no início de 2020, muitos países foram, devido à Covid-19, significativamente interrompidos em seus serviços de HIV. O teste de HIV infantil, por exemplo, em países com alta carga viral diminuiu até 70%. O lockdown, devido aos picos de violência de gênero, limitação dos cuidados de acompanhamento e a falta de estoque de produtos, contribuiu diretamente para um aumento nas taxas de infecção. Vários países passam também por reduções nos partos em unidades de saúde, testes de HIV maternos e início de tratamento antirretroviral. Em um exemplo final, a cobertura de antirretroviral entre grávidas na Ásia, caiu substancialmente de 71% para 56% em 20204.
No Brasil, o painel “Monitoramento durante a pandemia de covid-19 – Dados relacionados ao HIV” foi criado com intuito de apoiar estados e municípios no monitoramento do cuidado às pessoas portadoras do HIV e da prevenção à infecção pelo vírus. Esse painel apresenta indicadores operacionais fundamentais nas tomadas de decisão realizadas por diferentes instâncias de gestão, tanto durante quanto após a pandemia do COVID-195.
O Relatório Global do UNAIDS 2021 “Enfrentando Desigualdades – Aprendizados dos 40 anos de AIDS para respostas a pandemias” lançado recentemente, traz evidências de que os portadores de HIV são mais vulneráveis à COVID-19, ao mesmo tempo indicando que as desigualdades impedem os mesmos a buscar tanto as vacinas contra a COVID-19 quanto os serviços de HIV6.
Epidemiologia
Na América Latina, a cifra de novos casos de infecção por HIV, entre 2010 e 2019, registrou aumento de 21%, segundo a OPAS³. Abaixo alguns, entre outros, resultados importantes destacados pela organização:
- A porcentagem de gestantes em tratamento com antirretroviral, subiu de 52% em 2010 para 74% em 2019;
- O percentual de crianças nascidas de mulheres com HIV caiu de 20% para 15%, no mesmo período;
- A população infectada pelo HIV em tratamento antirretroviral aumentou entre 2010 e 2019, de 43% para 60%;
Em contrapartida, dados de 2020 apontam4:
- 150 mil crianças (até 9 anos de idade) foram infectadas pelo HIV, elevando o número total dessa faixa etária para 1,03 milhão.
- 150 mil crianças e adolescentes entre 10 e 19 infectadas levaram o número total desta faixa etária para 1,75 milhão.
- 120 mil crianças e adolescentes morreram por causas relacionadas à AIDS; 86 mil na faixa etária de 0 a 9 anos.
Pelo menos 300 mil crianças foram infectadas no ano de 2020, isso equivale a uma criança a cada dois minutos. No mesmo período, 120 mil crianças morreram por causas relacionadas à AIDS, o equivalente a uma criança a cada cinco minutos. De forma preocupante, no mundo todo, duas em cada cinco crianças portadoras do HIV não sabem sua condição, e apenas pouco mais da metade está recebendo terapia antirretroviral, tudo isso devido a barreiras como acesso inadequado, discriminação e desigualdades de gênero4.
Em suma, as novas infecções pelo HIV foram de forma maquiada reduzidas em 52% desde o pico em 1997. Isso ocorreu porque as pessoas vivendo com HIV têm resultados mais severos e têm comorbidades mais elevadas frente ao COVID-19. Um dos motivos que levam a tal dado é que a maioria das pessoas vivendo com o HIV não tinha acesso às vacinas da COVID-19. Também, o lockdown interrompeu os testes de HIV e levou a quedas acentuadas nos diagnósticos e encaminhamentos para o tratamento7.
Diagnóstico de HIV
A detecção de infecção aguda é fundamental para prevenir a transmissão progressiva do HIV. A infecção aguda contribui significativamente para novas infecções devido aos níveis virais mais altos e um comportamento continuado pelos indivíduos que desconhecem sua infecção pelo HIV. O início imediato da terapia antirretroviral reduz os sintomas da infecção aguda, logo, reduz a propagação do vírus².
Os sintomas aparecem de 2 e 6 semanas após o contato com o vírus e pode se dividir em infecção precoce (primeiros dois meses) ou crônica. Na fase aguda o infectado pode apresentar febre, cefaleia, mialgia, erupções cutâneas, dor de garganta e feridas na boca e linfonodos aumentados, no entanto, pode ser tão leve que nem sempre são percebidos. Já na fase crônica, o vírus que continua se espalhando e destruindo as células do sistema imunológico, causando imunossupressão. Desta forma, se não tratado, o HIV se transforma na Síndrome da Imunodeficiência Adquirida em uma média de 10 anos. Quando a AIDS se instala, o sistema imunológico já está brutalmente danificado, assim, infecções oportunistas, doenças neurodegenerativas e câncer ocorrem em pessoas infectadas¹.
A OMS e a OPAS recomendam o autoteste como estratégia chave para atingir a meta das Nações Unidas de que 90% das pessoas com HIV conheçam sua condição. Nesse modelo de teste, as pessoas coletam suas próprias amostras e as testam, aumentando a autonomia do usuário, descentralizando os serviços criando uma demanda para o teste de HIV entre aqueles que não foram alcançados por outros serviços³.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define o autoteste como um processo no qual uma pessoa coleta sua própria amostra (fluido oral ou sangue), realiza o teste e interpreta seu resultado, sozinho ou com alguém em quem confia. Este teste representa a evolução nos esforços que visam aumentar a autonomia do indivíduo e acessar aqueles não alcançados pelos serviços ou que precisam ser testados com mais frequência devido à exposição contínua ao risco, como, por exemplo, população trans, homens que fazem sexo com homens, os(as) trabalhadores(as) do sexo, além da população privada de liberdade e usuários de álcool e outras drogas8.
O autoteste distribuído pelo Ministério da Saúde possui uma tarja vermelha indicando que sua venda é proibida. As estratégias para distribuição no Sistema Único de Saúde são ações que incluem a distribuição em locais de sociabilidade e a distribuição para os parceiros sexuais de pessoas vivendo com HIV ou em situação de maior vulnerabilidade9.
O teste rápido pode fornecer resultados em 30 minutos e é útil em configurações em quais cuidados de acompanhamento de pacientes são desafiadores, como para testes de alcance público em bares ou feiras de rua².
Conclusão
Na América Latina, aproximadamente 2,1 milhões de pessoas têm o Vírus da Imunodeficiência Humana. No âmbito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a OPAS colabora com os países da América Latina e do Caribe para acabar com a ameaça à saúde pública representada pela AIDS até 2030³.
O uso de preservativos em homens tem sido a pedra angular da prevenção do HIV, já que o uso previne a transmissão do vírus, bem como a transmissão de muitas outras infecções sexualmente transmissíveis. Mesmo que a eficácia do uso do preservativo foi de aproximadamente 80% na transmissão heterossexual da infecção por HIV e 70% na transmissão sexual de homem para homem, ela ainda é a melhor opção de prevenção².
As pessoas esquecem que preservativo não é apenas uma forma de evitar gravidez, mas também um acessório fundamental na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. O assunto ainda gera desconforto no cerne daqueles que se dizem tradicionais, no entanto, é um tabu que precisa ser quebrado. Pois, reprovável é ter uma condição de saúde evitável que poderia ser perfeitamente barrada por um método básico ou devidamente tratada por uma medicação em vez de levar à morte de milhares de pessoas.
Autora: Geovanna R. B. Castro
Instagram: @georbcastro
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
REFERÊNCIAS
1 – Illanes-Álvarez F, Márquez-Ruiz D, Márquez-Coello M, Cuesta-Sancho S, Girón-González JA. Similarities and differences between HIV and SARS-CoV-2. Int J Med Sci. 2021 Jan 1;18(3):846-851. doi: 10.7150/ijms.50133. PMID: 33437221; PMCID: PMC7797543.
2 – Deeks SG, Overbaugh J, Phillips A, Buchbinder S. HIV infection. Nat Rev Dis Primers. 2015 Oct 1;1:15035. doi: 10.1038/nrdp.2015.35. PMID: 27188527.
3 – ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Novos casos de infecção por HIV aumentaram mais de 20% na América Latina na última década. Nov 2020. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/30-11-2020-novos-casos-infeccao-por-hiv-aumentaram-mais-20-na-america-latina-na-ultima. Acesso em: dez 2021.
4 – UNITED NATIONS INTERNATIONAL CHILDREN’S EMERGENCY FUND – UNICEF. Uma criança foi infectada com HIV a cada dois minutos em 2020 – UNICEF. Nov 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/uma-crianca-foi-infectada-com-hiv-cada-dois-minutos-em-2020. Acesso em: dez 2021.
5 – MINISTÉRIO DA SAÚDE – Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Painel de monitoramento de dados de HIV durante a pandemia da COVID-19. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/painelcovidHIV. Acesso em: dez 2021.
6 – JOINT UNITED NATIONS PROGRAM ON HIV/AIDS – UNAIDS. Relatório do UNAIDS mostra que as pessoas que vivem com HIV enfrentam uma ameaça dupla em relação ao HIV e à COVID-19. Julho de 2021. Disponível em: https://unaids.org.br/2021/07/relatorio-do-unaids-mostra-que-as-pessoas-que-vivem-com-hiv-enfrentam-uma-ameaca-dupla-em-relacao-ao-hiv-e-a-covid-19/. Acesso em: dez 2021.
7 – JOINT UNITED NATIONS PROGRAM ON HIV/AIDS – UNAIDS. Estatísticas. Disponível em: https://unaids.org.br/estatisticas/. Acesso em: dez 2021.
8 – MINISTÉRIO DA SAÚDE – Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Autoteste de HIV. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/autoteste. Acesso em: dez 2021.
9 – MINISTÉRIO DA SAÚDE – Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. O autoteste de HIV no SUS. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/autoteste/o-autoteste-de-hiv-no-sus. Acesso em: dez 2021.