Residência Médica

O luto de cada um | Colunistas

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Durante o curso de medicina, em algum momento dele, aprendemos sobre as fases do luto: Negação, Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação. O luto nada mais é do que um período que passamos após alguma perda; o clássico seria a perda de um ente querido. Entenda aqui período não apenas como um espaço de tempo, mas como um status; um status reacional à perda.

                Apesar do clássico entendimento de luto estar vinculado à perda física de um ente, a psicologia nos esclarece que o luto pode ser vivenciado diante de qualquer transformação abrupta que ocorra em nossa vida. Você pode vivenciar o luto, por exemplo, ao se mudar repentinamente de país, se afastando de rotinas e amizades construídas por anos. Neste ponto, não é difícil de entender, então, que o status de luto irá eventualmente estar conosco em algum momento de nossas vidas, sejam esses momentos breves ou prolongados.

            Recentemente o luto chegou a mim, talvez não tão recentemente, acho que há 1 ano mais ou menos. Há 1 ano estourava a Pandemia de Covid-19 no Brasil e hoje falo sem dúvidas, há 1 ano vivemos o luto. Digo vivemos, pois ele não chegou apenas para mim, ele chegou para cada um de nós; e por mais que você esteja pensando que não perdeu ninguém próximo de você, não se engane, já falamos aqui que o status de luto não se restringe à perda da matéria.

            Há 1 ano vivemos em luto porque perdemos nosso dia a dia, nossa rotina; nos afastamos de parentes e amigos, deixamos de frequentar locais X ou Y, deixamos de ver o sorriso no rosto de quem amamos e, alguns de nós, literalmente perderam alguém nesse caminho. É óbvio que cada um lidou com o momento de uma maneira diferente, mais saudáveis ou menos saudáveis, mais condizentes com as normas de saúde ou menos; mas cada um em sua forma lidou com seu luto e, invariavelmente, tem lidado com o luto de todos nós.

            Seria ingênuo de nossa parte, portanto, sabendo que todos estamos em período de luto, achar que estamos no mesmo momento dessa fase. Enquanto uns já alcançaram a aceitação, outros ainda estão na barganha, olha que mesmo após um ano alguns ainda se negam a aceitar que existe realmente uma pandemia e que necessitamos viver de maneira diferente. Particularidades à parte, o fato é que o luto é extremamente individual e, portanto, estamos em fases diferentes, que têm sido, talvez, nossa maior dificuldade neste momento e agora vamos entrar onde eu queria.

            Com 1 ano de pandemia no solo brasileiro, convivendo diuturnamente com notícias e números de casos e mortes assustadores, há de se pensar que todos estaríamos em uma fase de aceitação da situação. Pois é, não estamos, mas achamos que estamos, ou alguns acham que estão. A frase: “Eu aceitei a pandemia.” travestida de inúmeras variações com o mesmo significado, tem chegado aos nossos ouvidos diferente do esperado. A fase de aceitação do luto é marcada pela aceitação e compreensão da perda e de como isso afeta o seu viver, com a pessoa agora partindo para novos caminhos sem o que foi perdido; não é esquecer a perda ou viver como se ela não existisse, mas aprender a viver com ela. A aceitação que vemos hoje, a dita em palavras vazias é marcada pela tentativa de esquecimento; quanto menos a pessoa lembrar do que estamos vivendo, mais próximo ao normal ela vive, tentando se desviar de qualquer coisa que remeta à ruptura do dia a dia que ocorreu e está ocorrendo. Bom, isso não é aceitação, está mais para negação ou negociação.

            A tentativa desenfreada de muitos brasileiros, muitos pelo mundo, de voltar a normalidade antes da hora é preocupante; não apenas no sentido de disseminação – isso com certeza é muito preocupante, mas no sentido de o que isso representa. Estamos em uma fase inicial no período de luto, estamos negociando quantas vidas dispomos de arriscar para uma festinha com os amigos, estamos exigindo no nosso subconsciente todos os mecanismos de defesa possíveis para encarar o dia a dia sem passar pelo período de luto. E a tentativa de não viver esse momento tem seu preço, seja o cobrado a cada dia pelo aumento desenfreado dos casos e mortes, seja o preço que será nos cobrado psicologicamente a médio prazo.

            Evidentemente a situação brasileira da pandemia é permeada por inúmeros fatores, sejam eles políticos, econômicos, educacionais. O ponto que trago hoje é mais um, e é um que talvez estejamos deixando de lado. Mesmo com toda ansiedade de depressão que têm permeado esse período, estamos longe de dimensionar todo o impacto dessas modificações na sociedade e na saúde. Leitos estão lotados de doentes hoje tanto quanto os bares e as academias, optamos por não sofrer o agora, mas tudo isso será cobrado amanhã ou depois. Com o tempo todos nós teremos que viver esse luto, com o tempo todos nós teremos que chegar à aceitação, desta vez uma real aceitação, uma que talvez lote não bares, mas os consultórios de psicologia de todo o mundo.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

  1. De Lucas Freitas, Joanneliese. Luto e Fenomenologia: uma Proposta Compreensiva. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, vol. XIX, núm. 1, enero-junio, 2013, pp.97-105.