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A maconha é a droga ilícita mais consumida no Brasil, em grande parte por adolescentes e jovens adultos, sendo popularmente conhecida como “inofensiva”, devido ao seu menor potencial de reforço primário, quando comparada a outras drogas em circulação, como cocaína e heroína. A discussão acerca de seu uso medicinal nos últimos anos vem gerando debates que favorecem a disseminação de informações incompletas e errôneas, colocando a Cannabis sativa como positiva e benéfica.
Inúmeros estudos comprovam a ação medicinal dos canabinóides presentes na maconha, inclusive o fato dela ser natural, o que colabora para uma maior aceitação popular. Entretanto, esses constituintes, como será visto adiante, também exercem efeito psicoativo, sendo capazes de comprometer vários sistemas do organismo e ainda causar dependência.
Estudos acerca dos efeitos patológicos da maconha indicam que estes estão mais ligados ao tempo de uso da substância do que com a frequência de consumo, o que impõe grave risco aqueles que a utilizam há anos de forma recreativa. O uso recreativo, como o próprio nome já diz, refere-se a utilização em situações de lazer, geralmente em festas e com amigos. A maioria destes usuários esporádicos acredita não correr perigo neurofisiológico devido à baixa frequência de uso, o que não é inteiramente verdade.
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Sistema endocanabinóide
O corpo humano contém um complexo chamado de Sistema Endocanabinóides (SECB), formado por receptores, canabinóides endógenos e as enzimas que os sintetizam, onde os canabinóides exógenos da maconha atuam. Estudos mostram que o SECB possui a capacidade de modular o eixo hipotalâmico-hipofisário, a resposta imune e inflamatória, funções cardiovasculares, respiratórias, reprodutivas, oculares, além de exibir influência no apetite. Todos esses sistemas são controlados diariamente e naturalmente pelos endocanabinóides, sendo modulados positiva ou negativamente pelos canabinóides da maconha, o que reforça a importância de estudos sobre o uso medicinal da Cannabis sativa.
Receptores canabinóides
Os receptores canabinóides fazem parte do grande grupo de receptores acoplados à proteína G, geralmente com ação inibitória, sendo os principais o CB1 e o CB2.
O CB1, responsável pelos efeitos psicoativos, está localizado em áreas de controle emocional e motor, de aprendizagem, memória e funções cognitivas, sendo abundante no SNC. Pode ser encontrado em menor quantidade na periferia, como no tecido adiposo, modulando a lipogênese e a lipólise. Seu posicionamento é geralmente pré-sináptico, o que sugere que sua ação seja exercida através da modulação da liberação de neurotransmissores na fenda sináptica. Quando ativado, ele inibe a adenilciclase e gera um aumento na saída de potássio dos terminais pré-sinápticos, além de inibir canais de cálcio dependentes de voltagem.
Os receptores CB2 estão localizados no sistema imunológico, sendo encontrados no SNC na micróglia. Esse fato corrobora com as hipóteses de envolvimento do SECB na modulação inflamatória. Quando ativado, atua também através da inibição da adenilciclase e ativação da cascata da MAPK (proteínas cinases ativadas por mitógenos).
Endocanabinóides
Os endocanabinóides são mensageiros retrógrados extracelulares liberados do neurônio pós-sináptico para atuar nos receptores canabinóides pré-sinápticos, CB1 e CB2, de forma autócrina e parácrina. Como já dito, ao ativar os receptores, promovem a modulação da liberação de outros neurotransmissores na fenda, como glutamato e acetilcolina. São sintetizados quando ocorre aumento da concentração intracelular de cálcio ou mediante sinal direto ativado por proteína G, e sua inativação é mediante captação pré-sináptica ou recaptação pós-sináptica e oxidação ou hidrólise da substância.
Cannabis sativa
A Cannabis é formada por inúmeros canabinóides ainda em estudo, sendo o principal causador de efeitos psicoativos o THC (Δ9-tetraidrocanabinol). Alguns outros canabinóides, estes importantes no uso medicinal da maconha, são o CBN (canabinol), CBD (canabidiol), CBG (canabigerol) e CBC (canabicromeno). Diversos estudos vêm sendo conduzidos na tentativa de isolar os efeitos medicinais e minimizar os efeitos psicoativos provocados pelo THC, a fim de promover o uso da maconha no tratamento de inúmeras doenças e distúrbios. Portanto, para que a planta seja usada na medicina ela deve ser manipulada, e não consumida em sua forma pura.
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THC
O THC é um canabinóide exógeno com ação agonista nos receptores CB1 modulando a liberação de importantes neurotransmissores como GABA, dopamina, norepinefrina, acetilcolina e glutamato, e neuromoduladores como histamina e prostaglandinas. Dessa forma, é capaz de causar alterações em quase todos os sistemas do corpo humano, controlados por essas substâncias.
Os endocanabinóides são degradados por ação controlada e direcionada na homeostasia do organismo, mediante a definição de um setpoint. Os canabinóides exógenos atuam através do comprometimento da neuromodulação por alteração do desempenho dos receptores e das cascatas de sinalização intracelulares, causando uma perturbação na homeostasia. No caso do THC, por ser uma substância psicoativa, ele promove efeitos sobre a atividade psíquica, mental e comportamental exacerbados que a longo prazo podem gerar perturbações crônicas. Por isso é importante que exista a manipulação da planta, a fim de minimizar esses efeitos tóxicos orgânicos e exacerbar os efeitos medicinais dos outros canabinóides.
Efeitos de uso agudo
O uso da maconha desencadeia uma série de efeitos agudos que contribuem na promoção do potencial de reforço da substância, ocasionando, a longo prazo, danos crônicos que serão descritos mais à frente.
Durante a intoxicação, o usuário passa por um momento de sedação e relaxamento com prejuízos cognitivos que envolvem dificuldade de consolidação de memória de curto prazo, alteração na avaliação do tempo (distorção temporal), prejuízo nas funções executivas, alterações da sensopercepção e na coordenação (maior risco de acidentes). A partir disso são desencadeados sinais de paranoia, ansiedade, sintomas psicóticos, alucinações, aumento da pressão arterial e queda da capacidade motora.
Os efeitos prazerosos, que estimulam o uso recreativo da substância, incluem o aumento de prazer sexual, bem-estar, intensas crises de riso, euforia e aguçamento dos sentidos (intensificando as experiências sensoriais como ouvir música ou comer).
Efeitos de uso crônico
Como dito anteriormente, os efeitos crônicos do uso da maconha estão mais relacionados ao tempo de consumo do que com a frequência de uso, afetando principalmente os usuários esporádicos recreativos.
Estudos apontam que em usuários crônicos pode ocorrer redução significativa em estruturas cerebrais, como a amígdala e o hipocampo, podendo este estar relacionado ao surgimento de sintomas psicóticos ou desenvolvimento de patologias mentais em usuários prolongados, principalmente aqueles com pré-disponibilidade a transtornos mentais. Em relação à amígdala, percebeu-se relação com a redução da percepção emocional e uma lentificação no processamento de informações.
Dentre outras funções afetadas estão os processos de aprendizagem (principalmente em adolescentes) e memória, bem como diminuição progressiva da motivação (apatia e improdutividade), irritabilidade, letargia, dores de cabeça, diminuição da coordenação motora, queda da capacidade visual e alteração do pensamento abstrato, problemas crônicos na garganta, bronquites, ataques de pânico, ansiedade, depressão, isolamento social (afastamento do lazer), tentativas de suicídio, além de piorar distúrbios pré-existentes.
Além desses grandes sistemas afetados pelo efeito psíquico e tóxico da maconha, se tem os efeitos provocados diretamente na via respiratória devido ao contato crônico com a substância estranha, são eles: dor de garganta crônica, congestão nasal, infecções pulmonares frequentes, bronquite crônica e piora de quadros preexistentes de asma. Danos importantes ao sistema reprodutivo também foram reportados como problemas menstruais, impotência, infertilidade, diminuição da libido e da satisfação sexual. Não se pode desconsiderar sua influência no surgimento de câncer.
Conclusão
A maconha a longo prazo é capaz de causar efeitos deletérios em vários sistemas como o sistema imunológico, cardiovascular, respiratório e reprodutor, além de afetar o desempenho neurológico e aumentar a probabilidade do surgimento de câncer. Hipóteses sugerem que a maioria dos efeitos psíquicos e neurológicos se devem a uma neurotoxicidade cumulativa da maconha, estando esta mais relacionada ao tempo de uso da droga do que com a frequência de consumo.
O uso recreativo da Cannabis somado aos atuais debates sobre a aplicação medicinal da planta conduz à equivocada interpretação acerca do uso favorável da maconha pura pelo consumidor, fator que pode desencadear inúmeros efeitos crônicos prejudiciais à saúde orgânica e psíquica.
Referências
LARANJEIRA, R.; JUNGERMAN, F.; DUNN, J. Drogas: maconha, cocaína e crack. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. 67p.
neurobiologia da Cannabis: do sistema endocanabinoide aos transtornos por uso de Cannabis
O sistema endocanabinóide: novo paradigma no tratamento da síndrome metabólica
https://www.scielo.br/j/jbpsiq/a/sjLsV6Qg3S7YtQWnKqwnjWv/?format=html
Autora: Ana Luísa Tano Sanches
Instagram: nanu_tsc
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