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A Anemia Falciforme é uma doença hematológica sem cura que acarreta complicações que acompanham o paciente por toda a vida. São motivos de preocupação durante toda a vida dos pacientes pois apresentam grande incidência e que frequentemente os trazem ao atendimento nos serviços de emergência. São estas complicações as responsáveis por aumentar a mortalidade da Anemia Falciforme.
Introdução
A Anemia Falciforme (AF) é uma doença bastante conhecida pela área médica e pela população geral devido a gravidade, recorrência e complicações advindas do quadro.
Trata-se de uma doença autossômica recessiva hereditária na qual tem-se uma hemoglobina anormal que predispõe à formação de hemácias disformes, com aparência de “foices”, por isso o termo “anemia falciforme”.
Em linhas gerais, os pacientes portadores da doença possuem o gene Homozigoto SS, sendo, obrigatoriamente filhos de pais com, ao menos, um gene da doença, sendo estes denominados Heterozigotos AS e portadores de “Traço Falciforme”, tipicamente assintomáticos, com expectativa de vida normal.
Os mecanismos que regem as complicações agudas da Anemia Falciforme são decorrentes principalmente da hemólise crônica, associada ao aumento da agregação das hemácias, lesão endotelial e vasculite crônica.
Tem-se que os episódios agudos possuem relação com a redução da expectativa de vida a cada nova crise, representando acréscimo na morbimortalidade desses pacientes. Entretanto, os mecanismos fisiopatológicos da doença não serão abordados neste momento.
Serão tratados aqui as principais complicações agudas de pacientes com AF.
Crises álgicas
As crises dolorosas estão entre as complicações mais comuns e mais características da AF. Elas ocorrem geralmente devido a fenômenos vaso-oclusivos da microcirculação periférica, levando a isquemia, inflamação e alterações celulares locais. Podem gerar grande angústia quando o quadro se apresenta em crianças já que um dos diagnósticos diferenciais é a leucemia.
As crises podem surgir espontaneamente, entretanto, é mais comum que elas surjam após episódios infecciosos, desidratação ou hipóxia. Além disso, a dor pode surgir em qualquer região do corpo, sendo mais comum os pacientes se queixarem de dor óssea em região lombar, dorsal e ossos longos.
Durante os episódios álgicos os pacientes podem apresentar acometimento articular (dactilite, eritema e derrame articular), sendo crucial descartar quadros infecciosos (principalmente na vigência de febre alta).
Os principais diagnósticos diferenciais nas crises são: artrite séptica, abdome agudo inflamatório, infarto renal e leucemias.
Para o tratamento, é recomendada a hidratação (idealmente com solução combinada de SF e SG 5% com solução a 0,45% num aporte de 50mL/Kg em 24 horas) associada a uso de analgésicos a depender do grau de intensidade da dor (desde AINES até opioides, podendo inclusive combinar as classes). A analgesia deve ser o mais precoce possível. Casos refratários ao uso de opioides apresentam resposta ao uso de quetamina mas não devem ser considerados precocemente. O oxigênio suplementar é indicado naqueles pacientes com saturação <90% ou PaO².
Síndrome Torácica Aguda (STA)
A STA está presente em 80% dos pacientes após uma crise vaso-oclusiva. Trata-se de um infiltrado pulmonar associado a febre, dor torácica, hipoxemia, sibilância, estertores, tosse e dispneia.
Entretanto, nem todos os sintomas são obrigatórios para o diagnóstico, de modo que o episódio pode ser confundido com muitos quadros respiratórios (principalmente em crianças).
Apesar de não compor os critérios diagnósticos, outros achados reforçam a suspeita:
- leucocitose,
- anemia (ou diagnóstico de AF),
- dor abdominal,
- dor esternal,
- baixa saturação e
- embolia pulmonar gordurosa.
Podem estar presentes bactérias atípicas (Mycoplasma pneumoniae e Chlamydia pneumoniae são as mais comuns).
Nestes casos, o tratamento envolve a hidratação venosa e controle da dor como de costume. Entretanto, por se tratar de um quadro que por vezes envolve sibilância e taquipneia, o uso de broncodilatadores pode trazer benefícios.
Na suspeita de quadro infeccioso associado, o tratamento empírico inicial para esses casos pode ser com o uso de cefalosporinas de 3ª geração + macrolídeos. A transfusão de hemácias pode ser considerada naqueles casos de hemoglobina inferior <9 g/dL. Todos os pacientes devem receber profilaxia para trombose venosa profunda.
Quadro 1. Critérios diagnósticos para Síndrome Torácica Aguda (STA).
Presença de infiltrado novo em radiografia e pelo menos 1 dos seguintes: |
Dor torácicaTemperatura >38,5ºcTaquipneiaTosseSibilânciaDiminuição de 2% ou mais na SatO² em relação ao basalPaO² <60mmHg |
Manifestações Neurológicas
Dentre as manifestações neurológicas, o Acidente Vascular Cerebral (AVC) é o que traz maior importância clínica devido a prevalência e gravidade do quadro.
Devido os fenômenos vaso-oclusivos já explicados, os pacientes com AF apresentam risco aumentado de apresentar AVC, de modo que, após o primeiro episódio, a chance de recorrência nos próximos 03 anos é de até 50%. Há cerca associação de STA e AVC.
O quadro clínico sugestivo é de pacientes previamente diagnosticados com AF e na vigência de cefaleia com sinais de alarme, alteração do nível de consciência ou déficit neurológico. Nesses casos, sempre deve-se realizar exames de imagem para avaliar a possibilidade de AVC.
O tratamento específico segue as orientações de cada serviço e a depender do tipo de AVC (hemorrágico ou isquêmico), do tempo de início dos sintomas e da resolutividade do serviço.
Priapismo
O priapismo é definido como uma ereção persistente e dolorosa do pênis ou clitóris sem associação com desejo ou com estimulação sexual. Assim como nos demais quadros, o priapismo também ocorre devido à vaso-oclusão. Até 90% dos pacientes com AF entre 12-20 anos de idade apresentam ao menos 1 episódio.
A linha de tratamento com analgésicos e hidratação segue as mesmas orientações das crises álgicas.
Com relação ao tratamento específico, recomenda-se a aspiração de sangue do corpo cavernoso e aplicação de solução salina com alfa-adrenérgicos (fenilefrina) caso o quadro tenha se instalado há menos de 4 horas. Pacientes com mais de 12 horas de evolução podem ser beneficiados pela eritrocitoaférese e, na persistência, recomenda-se o tratamento cirúrgico.
Outras
As complicações já citadas são aquelas com altas taxas de prevalência e/ou mortalidade, entretanto não são as únicas. Pacientes com AF possuem risco aumentado de diversos outros quadros.
Outras complicações agudas da Anemia Falciforme (AF) | |
Hepatobiliares | Colelitíase (>70% de risco)Sequestro hepático agudoColestase intra-hepática |
Cardíacas | Disfunção sistólica/diastólica e arritmias (devido hemossiderose) |
Renais | HematúriaGlomeruloscleroseInfarto renais |
Úlceras de extremidades | Principalmente em MMII |
Hipertensão pulmonar | Importante fator de mortalidade para AF |
Osteomusculares | Necrose avascular da cabeça de fêmurOsteomieliteArtrite séptica |
Complicações infecciosas | Principalmente pneumonias, meningites e infecções cutâneas |

Conclusão
As complicações agudas da Anemia Falciforme são muito comuns e podem trazer insegurança ao médico diante do atendimento desses pacientes. Mais importante do que saber os tratamentos específicos para cada situação é reconhecê-las e conseguir relacioná-las à doença de base.
*Este é um texto de promoção de saúde e educação. Não substitui uma consulta médica. Na suspeita de alguma enfermidade, procure seu médico e não se automedique. *
Autor: Víctor Miranda Lucas
Instagram: @victormirandalucas
Referências:
ARAÚJO, J.S. Manual Prático para Urgências e Emergências Clínicas. Editora Sanar, Salvador, 2016.
VELASCO, I.T; NETO, R.A.B.; SOUZA, H.P.; MARINO, L.O.; MARCHINI, J.F.M.; ALENCAR, J.C.G. Medicina de Emergência: Abordagem Prática16ªed. Editora Manole, São Paulo, 2022.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.