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Quadro de Diarreia Aguda: e agora, como manejar? | Colunistas

Quadro de Diarreia Aguda: e agora, como manejar? | Colunistas

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Definição

A diarreia aguda é definida, pela Sociedade Brasileira de Pediatria, como o aumento na quantidade de evacuações (3 ou mais) e diminuição da consistência das fezes nas últimas 24 horas, de maneira abrupta e autolimitada. Causa um desequilíbrio entre a secreção e absorção de líquidos e eletrólitos.¹ A gravidade varia de acordo com o número de evacuações, sendo sete a quantidade correspondente a uma diarreia grave.³ Porém, devemos levar em consideração que alguns lactentes e neonatos apresentem tal frequência e consistência dentro de sua normalidade, sem que estejam diante de uma diarreia aguda.⁴

É, usualmente, classificada em:

  1. Aquosa: quadro que persiste entre 7 a 14 dias, com maior chance de desidratação por grande perda de volume, causada por vírus e bactérias. ¹
  2. Disenteria: é a presença de sangue nas fezes, causada por bactérias como a Escherichia coli e Shigella. Diferente da aquosa, não é autolimitada. ¹
  3. Persistente e/ou crônica: algumas literaturas consideram a diarreia persistente como o quadro com duração maior do que 14 dias e crônica, quando maior de 28 dias e outras literaturas consideram somente a frequência maior do que 28 dias.¹

Causas

São divididas em: infecciosas (mais prevalentes em menores de 5 anos) e não infecciosas.¹ʾ⁴

Os agentes infecciosos causadores da diarreia aguda podem ser:

  1. Vírus: os mais comuns são rotavírus (é o principal, com pico de incidência entre 6 e 24 meses), coronavírus e adenovírus. Geralmente o quadro é caracterizado por febre baixa, com duração de 3 a 4 dias, sem muita alteração do estado geral e com histórico de contágio.¹ʾ⁴ Precisam de uma carga viral baixa para conseguir causar diarreia.⁴
  2. Bactérias: principalmente E. coli, Salmonella, Shigella, Campylobacter jejuni, Vibrio cholerae, entre outras. Diferente da viral cursa com prostração e disenteria.¹
  3. Parasitos: Entamoeba histolytica, Giardia lamblia, Isospora, Cryptosporidium.¹
  4. Fungos: Candida albicans.¹

Não podemos nos esquecer dos pacientes imunocomprometidos ou em tratamento prolongado com antibióticos, os quais podem ser acometidos por quaisquer agentes, sendo necessária uma cobertura ampla durante o tratamento.¹

Dentre as causas não infecciosas, podemos citar: uso de laxantes e medicamentos (efeito colateral), alergia ao leite de vaca, apendicite aguda (reto-cecal), deficiência de lactase, intoxicação por metais pesados e invaginação intestinal em lactentes.¹ Além disso, há correlação com fatores ambientais e socioeconômicos como condição familiar, saneamento básico e suprimento de água inadequados.³

Fisiopatologia

Os patógenos conseguem causar a infecção através da quebra da barreira protetora existente na mucosa gástrica e dos meios naturais de proteção (pH, peristaltismo, lisozimas e sistema imune, por exemplo), sendo assim, são capazes de aderir e expressar seus fatores de virulência como enterotoxinas ou citotoxinas.⁴

O processo diarreico pode ocorrer através de 4 maneiras fisiopatológicas, dentre elas, a osmótica (vírus), secretora (bactérias), inflamatória (bactérias) e alteração da motilidade (por uso de laxantes).¹

Na diarreia osmótica ocorrerá menor absorção de carboidratos, principalmente de lactose, caracterizando um quadro de fezes líquidas, muito volumosas e explosivas com desequilíbrio hidroeletrolítico, de coloração mais amarelada. Na diarreia secretora também haverá perda e desequilíbrio hidroeletrolítico, com poucos sintomas sistêmicos e febre baixa, quando existente. A diarreia inflamatória é caracterizada pela invasão do intestino grosso e delgado, cursando com queda do estado geral, dor abdominal do tipo cólica, podendo ser acompanhado de febre e vômitos, geralmente com presença de sangue nas fezes. ⁴

Anamnese e Exame físico

Como em todo momento da medicina, a anamnese e o exame físico muito bem feito são essenciais para o diagnóstico e conduta da diarreia aguda. Sendo assim, é necessário questionar todas as características, como frequência, duração, data de início, se houve melhora ou piora, fatores associados (febre, mal estar, vômitos, dor abdominal), presença de sangue nas fezes, se há algum familiar ou pessoa próxima com os mesmos sintomas, questão alimentar antes e durante o quadro (recusa ou normal), uso de medicamentos, perda de peso, diminuição da diurese, calendário vacinal e comorbidades. ¹

Ao exame físico, precisamos nos atentar principalmente ao estado de hidratação, a ponto de sermos capazes de classificá-los em planos, como veremos adiante. Avaliar a condição, olhos, lágrimas, boca e língua, sede, sinal da prega, pulso e enchimento capilar. Sempre que possível, verificar o percentual de perda de peso do paciente.¹

Exame físico    A           B C
CondiçãoBem alertaIrritadoComatoso, hipotônico*
 OlhosNormaisFundosMuito fundos
 LágrimasPresentesAusentesAusentes
FontanelaPlanaDeprimidaMuito deprimida
Boca e línguaÚmidasSecasMuito secas
 SedeBebe normalmenteSedento, bebe rápido e avidamenteBebe mal ou não é capaz de beber*
DiuresePresenteOligúriaOligúria ou anúria
Sinal da pregaDesaparece rapidamenteDesaparece lentamenteDesaparece muito lentamente
PulsoCheioRápido, débilMuito débil ou ausente*
Enchimento capilarNormal (até 3 segundos)Prejudicado (entre 3 e 5 segundos)Muito prejudicado (maior que 5 segundos)*
ConclusãoNÃO TEM DESIDRATAÇÃOSe apresentar 2 ou mais sinais, existe desidrataçãoSe apresentar 2 ou mais dos sinais, incluindo pelo menos 1 com asterisco, existe desidratação grave.

Tratamento

Após classificar o estado de hidratação em A, B ou C, o seguinte passo é instituir o tratamento.¹

É dividido em planos, sendo o plano A estabelecido quando o paciente recebe a classificação A do estado de hidratação; o plano B, quando recebe a classificação B e o plano C, quando recebe a classificação C.¹

  1. Plano A: paciente diagnosticado com diarreia, mas ainda permanece sem desidratação. A prevenção é feita a domicílio, sendo explicado ao paciente ou ao acompanhante todas as medidas a serem tomadas. Deverá ser oferecido ou ingerido mais líquido do que o habitual (água, chá, suco e sopas) ou a solução de reidratação oral (SRO) após cada evacuação (cuidado com a SRO, sendo necessário explicar que não deverá ser consumida juntamente com alimentos industrializados que contém muito sódio em sua composição ou que é o único responsável por interromper a diarreia)¹ʾ².  Não fazer ingesta de refrigerantes e sucos muito adocicados. Tanto o aleitamento materno (incentivar e conscientizar a mãe sobre a sua importância) quanto a alimentação habitual devem ser mantidos para crianças e adultos.¹ʾ² 

A quantidade de líquido que deve ser ingerido após cada evacuação diarreica varia de acordo com a idade, sendo que menores de 1 ano devem receber de 50 a 100ml; entre 1 a 10 anos devem receber de 100 a 200 ml e maiores de 10 anos devem receber de acordo com a quantidade de aceitação.¹

Orientar em caso de não melhora em 2 dias ou se houver o aparecimento de sinais de alarme (piora da diarreia, vômitos repetidos, muita sede, recusa alimentar, sangue nas fezes ou diminuição da diurese), procurar imediatamente o serviço de saúde. Sendo assim, o paciente ou o acompanhante devem estar aptos a reconhecer os sinais de alarme e de desidratação.¹

Administrar Zinco 1x/dia na dose de 10mg/dia em crianças de até 6 meses e 20mg/dia em maiores de 6 meses por 10 a 14 dias.¹

  • Plano B: paciente com classificação B, apresentando 2 ou mais dos sinais citados. Realizar administração do soro de reidratação oral dentro da unidade de saúde por via oral, em quantidades pequenas com colher ou copo, de 50 a 100ml/kg entre 4 a 6 horas e deixar em jejum durante a ingesta, mantendo somente os casos de aleitamento materno. Iniciar zinco 1x/dia.¹

Avaliar o paciente continuamente, quantificando sempre que possível a diurese e o peso. Se houver melhora do quadro de desidratação, voltar para o plano A. O paciente deve permanecer na unidade de saúde até que tenha sido feita a reidratação completa e após o reinício da alimentação.  Mas caso ocorra evolução para desidratação grave, progredir para o plano C.¹

  • Plano C: paciente em estado grave de desidratação, classificado como C. Realizar a reposição por via parenteral na unidade hospitalar até que seja possível a reposição por via oral, deixando-o em observação por pelo menos 6 horas.¹ Os principais fatores de risco para essa condução são baixo nível socioeconômico, desnutrição e falta de aleitamento materno.²

É feito através da fase rápida de expansão e da fase de manutenção e de reposição.¹

Fase rápida de expansão:

– Em menores de 5 anos: utilizar soro fisiológico a 0,9% 20ml/kg por 30 minutos e repetir no máximo até 60ml/kg, se necessário. Sempre checar a clínica do paciente, se não há ritmo de galope ou rebaixamento hepático, devido ao risco de causar um edema agudo de pulmão. Em cardiopatas e recém-nascidos começar com 10ml/kg.¹

– Em maiores de 5 anos: utilizar soro fisiológico 0,9% 30ml/kg por 30 minutos e ringer lactato 70ml/kg por 2 horas e 30 minutos.¹

Fase de manutenção para todas as faixas etárias: soro glicosado a 5% + soro fisiológico a 0,9% na proporção de 4:1 + KCl 10% 20ml para cada 100ml de solução ou KCl 19,1% 1ml para cada 100ml. Utilizar a regra de Holiday & Segar, o qual define o volume em 24 horas a depender do peso.¹

Peso até 10 kg100 ml
Peso de 10 a 20 kg1000 ml + 50 ml/kg de peso que exceder 10 kg
Peso acima de 20 kg1500 ml + 20 ml/kg de peso que exceder 20 kg
Fase de reposição: utilizar soro glicosado a 5% + soro fisiológico a 0,9% na proporção de 1:1. Iniciar com 50ml/kg/dia e reavaliar a quantidade de acordo com as perdas do paciente.¹

É necessário enfatizar que a atuação do médico não termina após a hidratação do paciente. Devemos sempre orientar e educar todas as pessoas sobre quais são os riscos, como pode ter sido contaminado e quais as responsabilidades de pais e responsáveis, ou seja, deixando-os conscientes de tudo o que precisa ser melhorado em relação aos cuidados diários com alimentação, limpeza e saúde.²

Medicações

O zinco tem muita importância no tratamento da diarreia aguda, uma vez que auxilia na função e no crescimento celular, além de atuar no sistema imunológico.  Sendo assim, reduz a duração do quadro e a possibilidade de um novo episódio dentro de, aproximadamente, 3 meses. ¹

A vitamina A deve ser somente administrada em pacientes que apresentam a sua deficiência, a qual diminuirá o risco de mortalidade e hospitalização.¹

A antibióticoterapia é indicada em casos específicos como na disenteria com presença de febre e queda do estado geral, em imunocomprometidos, em pacientes com anemia falciforme, em casos de cólera, em infecções agudas causadas por Giardia lamblia ou Entamoeba hystolitica, em pacientes portadores de próteses e em casos de disseminação bacteriana extraintestinal. O principal agente infeccioso que levará o indivíduo a apresentar um quadro apto a necessitar de antibiótico é a Shigella, seguido da E. colli enteroinvasiva, Yersinia, V. chorelae, C. difficille e Salmonela.¹  As opções são:

  1. Azitromicina: na dose de 10 a 12 mg/kg no 1º dia e na dose de 5 a 6 mg/kg por mais 4 dias por via oral.¹
  2. Ceftriaxona: na dose de 50 a 100 mg/kg por 3 a 5 dias nos casos graves em hospitalização, por via endovenosa.¹
  3. Cefotaxima: na dose de 100 mg/kg dividida em 4 doses.¹
  4. Ciprofloxacino: em crianças é usado na dose de 15 mg/kg 2x/dia por 3 dias e em adultos é usado na dose de 500 mg 2x/dia por 3 dias.¹

O Metronidazol deve ser utilizado em quadros de diarreia aguda causados por amebíase ou giardíase comprovada. ¹

O antiemético deve ser utilizado somente em casos de diarreia aguda com vômitos frequentes, sem melhora após a reidratação. O mais indicado é a Ondasentrona na dose de 0,1 mg/kg (0,15-0,3/kg) por via oral ou intravenosa, até no máximo 4 mg.¹

Não há contraindicação do uso de probióticos como adjuvantes ao tratamento da diarreia aguda, ficando a critério e disponibilidade do paciente.¹

A racecadotrila pode ser utilizada na dose de 1,5 mg/kg de peso corporal 3x/dia, dose máxima de 400 mg em adultos, sendo contraindicada em menores de 3 meses. Sua função é reduzir a secreção intestinal de água e eletrólitos, devendo a sua utilização ser interrompida assim que o quadro cessar.¹

Prevenção

O papel do médico é fundamental, uma vez que o paciente, acompanhante e familiar sempre precisam de orientações e conscientização.

Em relação a recém-nascidos e crianças, é preciso sempre enfatizar a importância do aleitamento materno exclusivo por no mínimo 6 meses e o desmame aos 2 anos para a prevenção tanto de quadros como diarreia aguda como desnutrição. A introdução dos alimentos corretos no momento adequado também é de extrema importância. Além disso, orientar sempre a necessidade de estar com o calendário vacinal em dia.⁴

A questão socioeconômica também precisa ser conversada e avaliada, devendo sempre manter alimentos muito bem limpos e ter acesso a água de qualidade.³   


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências bibliográficas:

  MORAIS, Mauro Batista; CRUZ, Aristides Schier; SADOVSKY, Ana Daniela Izoton et al. Diarreia Aguda: diagnóstico e tratamento. Sociedade Brasileira de Pediatria. Março, 2017.

VANDERLEI, Lygia Carmen de Moraes; SILVA, Gisélia Alves Pontes. Diarreia aguda: o conhecimento materno sobre a doença reduz o número de hospitalizações nos menores de dois anos? Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), Recife, PE. Rev Assoc Med Bras 2004; 50(3): 276-81.

VANLERDEI, Lygia Carmen de Moares; SILVA, Gisélia Alves Pontes; BRAGA, José Ueleres. Fatores de risco para internamento por diarreia aguda em menores de dois anos: estudo de caso-controle. 13 de novembro de 2002.

BURNS, Dennis Alexander Rabelo; JÚNIOR, Dioclécio Campos; SILVA, Luciana Rodrigues et al. Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. 4. ed. Barueri, SP: Manole, 2017. 1286p.