Carreira em Medicina

Qual a ligação entre diabetes mellitus e doenças do fígado? | Colunistas

Qual a ligação entre diabetes mellitus e doenças do fígado? | Colunistas

Compartilhar
Imagem de perfil de Comunidade Sanar

As doenças do fígado e a diabetes mellitus são condições de grande prevalência mundial, por isso, não é incomum que sejam diagnosticadas no mesmo paciente. A depender da etiologia, estima-se que entre 20 a 60% dos pacientes com hepatopatia crônica possuam também diabetes, enquanto 60 a 80% já apresentam intolerância à glicose.

Em contrapartida, o paciente diabético possui um risco duas vezes maior de evoluir com doença hepática gordurosa não alcóolica e hepatocarcinoma em comparação a um paciente não-diabético, independente de fatores de risco como álcool ou vírus.

Desta forma, acredita-se que existe uma relação bidirecional entre essas duas doenças, ou seja, tanto a diabetes pode ser a causadora da doença hepática, quanto a doença hepática pode desencadear a diabetes. Para além disso, ambas, quando presentes, exercem um efeito sinérgico na morbimortalidade e na frequência de complicações.

O que é a diabetes mellitus?

A diabetes mellitus (DM) é uma condição caracterizada por hiperglicemia crônica, proveniente da secreção deficiente de insulina pelas células beta do pâncreas e/ou pelo desenvolvimento de uma resistência periférica a este mesmo hormônio.

Qual relação com o fígado?

O estado hiperglicêmico da DM institui o “octeto nefasto”, denominado por DeFronzo, que compreende as principais consequências do acúmulo da glicose no sangue. Dentre elas, é importante destacar o aumento da lipólise periférica, com a liberação de ácidos graxos na corrente sanguínea, a produção elevada de glucagon pelas células alfa pancreáticas e o aumento da produção de glicose hepática pela resistência à insulina no fígado.

Com isso, o parênquima hepático começa a trabalhar sob alta demanda, realizando glicogenólise e gliconeogênese. O excessivo aporte de ácidos graxos na corrente sanguínea favorece sua oxidação no fígado, resultando em maior síntese hepática de VLDL e acúmulo de lipídeos nos hepatócitos, que podem resultar em lipotoxicidade, ativação de vias inflamatórias, estresse do retículo endoplasmático, disfunção mitocondrial, produção de espécies reativas de oxigênio, intensificação da resistência à insulina, sobrecarga de ferro e dano hepático progressivo.

Doença hepática gordurosa não alcóolica

Os eventos patológicos descritos anteriormente levam o paciente diabético à doença hepática gordurosa não alcoólica, que constitui a hepatopatia crônica mais frequente, podendo atingir de 14 a 30% da população mundial e, em breve, poderá vir a ser a principal causa de transplante hepático. Esta condição abarca um espectro fisiopatológico graduado em esteatose, esteato-hepatite e cirrose, podendo ainda evoluir para doença hepática em estágio terminal e carcinoma hepatocelular.

Estima-se que 2 em cada 3 pacientes com o tipo 2 da doença apresentam algum dos estágios da doença hepática gordurosa não alcóolica. Sendo assim, tanto o diagnóstico de DM quanto a presença de glicemia em jejum alterada, hiperinsulinemia de jejum ou a existência de um familiar com diabetes constituem fatores de risco para esta doença hepática.

Doenças hepáticas

As doenças hepáticas compreendem um grande grupo de condições que afligem o fígado em sua integridade anatomofisiológica.

Qual relação com a diabetes mellitus?

Alguns autores defendem a “diabetes hepatogênica”, ou seja, a doença hepática, como desencadeadora da diabetes mellitus. Acredita-se que a doença hepática possa provocar diminuição na depuração de insulina e dessensibilização das células beta por fatores relacionados ao fígado como álcool, vírus e depósitos de ferro, resultando em uma hiperinsulinemia.

Com a cronificação deste quadro, o paciente evolui para uma resistência periférica à insulina, intolerância à glicose subclínica e, por fim, a diabetes mellitus. A hemocromatose, a hepatite C, a esteatohepatite não alcoólica e o álcool são as causas mais comuns da “diabetes hepatogênica”.

Hemocromatose

Trata-se de uma doença autossômica recessiva que resulta no aumento da absorção intestinal de ferro com acúmulo no fígado e outros tecidos. Acredita-se que a infiltração concomitante de ferro no pâncreas possa gerar o quadro de DM presente em 50 a 85% dos pacientes em estágios avançados da doença.

Hepatites virais crônicas

Os principais agentes virais que evoluem para infecção crônica são o vírus da Hepatite B (HBV), contabilizando 5 a 10% de casos crônicos, e o vírus da Hepatite C (HCV), com 60 a 85%. Ambos agentes, a longo prazo, podem produzir cirrose, doença hepática terminal e carcinoma hepatocelular, com risco cumulativo de até 5% ao ano.

O envolvimento do HBV na DM ainda é incerto, sendo encontrada a comorbidade apenas em pacientes cirróticos. No entanto, para pacientes com o HCV, esse risco é independente à severidade da doença hepática, apesar de também ser mais frequente na doença avançada, podendo ser três vezes maior o risco em doentes infectados com mais de 40 anos em comparação com pacientes sem hepatite.

Alguns estudos sugerem que o vírus causador da hepatite C seja capaz de induzir a resistência insulínica por meio da inibição direta da sinalização intracelular deste hormônio, estresse oxidativo, ativação de vias inflamatórias, modulação de incretinas e disfunção de células beta pancreáticas.

A diabetes mellitus tipo 2 afeta quase um terço dos pacientes, compondo a segunda causa mais comum de doença extra-hepática na hepatite C crônica. Quando considerado o pré-diabetes, este é cerca de 4 vezes mais frequente em pacientes com infecção crônica por HCV em relação à indivíduos saudáveis. A presença desta comorbidade é preocupante, considerando que aumenta o risco de carcinoma hepatocelular e está associada a uma menor resposta ao tratamento antiviral com interferon e ribavirina.

Em pacientes com alterações pré-diabéticas, a diminuição da carga viral após tratamento parece diminuir a resistência insulínica e o risco de diabetes.

Álcool

A doença hepática crônica desencadeada pelo álcool é fator de risco dose-dependente para o desenvolvimento de diabetes mellitus, possivelmente relacionado ao alto valor calórico das bebidas alcóolicas e à ação lesiva do álcool sobre o fígado e pâncreas.

Por que é importante compreender a ligação entre o diabetes mellitus e as doenças do fígado?

A maior parte dos fatores de risco que levam ao desenvolvimento de DM e doenças hepáticas são preveníveis, como o abuso de álcool, sedentarismo e consumo excessivo de carboidratos e lipídios.

O paciente com esteatose hepática em exames de imagem rotineiros ou com leves alterações de transaminases devem ser investigados para diabetes, devido à alta prevalência neste grupo.

O paciente diabético com doença hepática tem maior chance de desfechos sombrios, com maior morbimortalidade e frequência de complicações, tais como o carcinoma hepatocelular. O tratamento adequado das doenças hepáticas pode provocar melhora da resistência insulínica do paciente diabético.

Autora: Marcella Araújo
Instagram: @cell_araujo

Posts relacionados: