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A maioria dos serviços de telemedicina que incide sobre diagnóstico e manejo clínico já são rotineiramente oferecidos nos países mais desenvolvidos. Em países subdesenvolvidos pode significar uma importante forma de democratizar o acesso de todos à saúde, em especial nas regiões menos favorecidas.
Ademais, com a regulação dos parâmetros éticos e legais pela telemedicina, uma consequência imediata será a isenção de responsabilidade do médico pela troca de mensagens com seu paciente por WhatsApp, Instagram, Facebook ou similares. A rigor, ao usar esses meios, o médico estaria violando diretrizes mínimas de segurança de informação, já que, ao fazer prescrições de tratamento por qualquer meio que não o identifique formalmente e assegure o sigilo da informação, restará configurada a violação.
A tecnologia disponibilizada pela telemedicina significa mudanças na tradicional relação médico-paciente. A substituição do contato presencial pelo virtual figura como um desafio adicional ao processo de aceitação geral dessa intermediação tecnológica.
Novas tecnologias costumam causar medo. É o que se denomina cainofobia – palavra de origem grega (kainos = novo) que tem como significado medo exagerado da novidade, de novas situações ou de novas teorias. Psicólogos afirmam que esse medo é uma resposta automática fisiológica e psíquica de defesa, além de implicar a saída da zona de conforto. Por isso, podemos observar tanta resistência às mudanças em uma cultura conservadora, que prepondera as incertezas, e a aversão ao risco reverbera por toda classe médica.
Porém, estamos diante de um caminho sem volta, onde observa-se falta de sintonia dessa tecnologia e o aparato ético legal existente. Faz-se imprescindível que a Lei n. 13709/18 (Lei Federal de Proteção de Dados) busque democratizar a telemedicina sem violar a proteção de dados, de acordo com requisitos mínimos estipulados pela autoridade nacional de proteção de dados. Ainda, como marco regulatório na área, que estabeleça os direitos dos pacientes, deveres do provedor de saúde (institucional ou profissional) e os sistemas de informação utilizados.
Histórico
O primeiro relato da utilização de telemedicina se deu a partir da invenção do estetoscópio eletrônico, em 1910, em Londres. Também no final do século XIX, em 1920, foi implantado um serviço de primeiros socorros para navegantes, utilizando código Morse e comunicação por rádio, propiciando um salto na telemedicina, seguiu-se a transmissão telefônica de eletrocardiogramas ou outras informações fisiológicas. Em 1946, durante a Segunda Guerra Mundial, a comunicação por rádio foi usada para conectar médicos das frentes de batalhas e estações costeiras com os médicos dos hospitais de retaguarda.
Outro grande marco da telemedicina no mundo foram os experimentos da NASA, em 1960. Durante voos espaciais, os sinais vitais dos astronautas eram monitorados a distância por médicos através de vídeos e envio de sinais respiratórios. Ainda no final da década de 60, em 1967, o Hospital Geral de Massachusetts criou uma linha de comunicação com o aeroporto de Boston para que os atendimentos médicos de emergência no aeroporto pudessem contar com o auxílio dos profissionais do hospital.
Aqui no Brasil, em 1989, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) criou a Rede Nacional de Pesquisa (RNP) como resposta à demanda de pesquisadores brasileiros e visando à construção de uma infraestrutura de rede de Internet nacional no âmbito acadêmico. Em 2006, a RNP lançou o projeto Rede Universitária de Telemedicina (RUTE), com o apoio do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação (MEC) para implantar infraestrutura de interconexão nos hospitais universitários e unidades de ensino de saúde no Brasil, bem como incentivar trabalhos interinstitucionais. Atualmente, a RUTE possui 139 unidades atuantes com 55 grupos atuantes de forma emergencial (SIGs).[1] Nesses moldes, em 1997, a FMUSP[2] inseriu a disciplina de telemedicina no seu plano de ensino, tendo em vista o avanço de várias iniciativas de rede de teletriagem e prevenção do câncer de pele na área da teledermatologia, além do uso das “teles” nas áreas de oftalmologia, microbiologia e medicina de imagem (TeleECG). Levando em conta as perspectivas de crescimento e todos os potenciais da telemedicina, foi criada em novembro de 2020 uma Associação Brasileira de Telemedicina (ABTms).
Em 2005, a Organização Mundial da Saúde[1], recomendou a seus Estados-membros o investimento em sistemas de saúde utilizando tecnologias de informação. Entre 2006 e 2007, analisando algumas experiências positivas sobre o tema e com apoio de pesquisadores e docentes da área da saúde, o Ministério da Saúde institui o Programa Nacional de Telessaúde, que foi ampliado em 2011, passando a ser designado Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes.
Deve-se ainda destacar o lançamento, em 2013, do Programa Inova Saúde, com término previsto para 2017. Em 2014, o Ministério da Saúde publicou duas portarias, nº 2.859 e 2.860, estimulando a criação de novos Núcleos de Telessaúde estaduais e intermunicipais.
Com a pandemia do coronavírus, em 23 de março de 2020, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ampliou a atuação da saúde a distância liberada pelo CRM e determinou, no Diário Oficial da União (Portaria nº 467), em edição extraordinária, o uso da telemedicina para atendimentos durante esta pandemia, o que inclui atendimento pré-clínico, assistencial, consultas, monitoramento e diagnósticos, liberados tanto na rede privada quando na pública, pelo SUS. Conforme descrito na publicação, “o atendimento deverá ser efetuado diretamente entre médicos e pacientes, por meio de tecnologia da informação e comunicação que garanta a integridade, segurança e sigilo das informações”.
Nesse período foi constatado o avanço do uso da telemedicina no mundo também. Na França, o número de teleconsultas subiu de 10.000 por semana em março, para 1,1 milhão durante a segunda semana de abril. Nos EUA, várias restrições sobre a telemedicina foram suspensas, juntamente com regras de proteção de dados. O sistema britânico de saúde pública relatou que a maior parte de 1,2 milhão de consultas diárias no país foram realizadas a distância, através de recursos tecnológicos.
Definições da telemedicina
Existem várias abordagens diferentes para a definição de telemedicina ou telessaúde.
Daniel Sigulem a considera como “conjunto de técnicas, práticas, atitudes, modos de pensar e novos valores que se desenvolvem em consequência do crescimento do espaço digital.”[1]
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), Telemedicina “compreende a oferta de serviços ligados aos cuidados com a saúde, nos casos em que a distância é um fator crítico; tais serviços são prestados por profissionais da área da saúde, usando tecnologias de informação e de comunicação para o intercâmbio de informações válidas para diagnósticos, prevenção e tratamento de doenças e a contínua educação de prestadores de serviços em saúde, assim como para fins de pesquisas e avaliações“.
Ou, ainda, é o uso do sistema de telecomunicações para o tratamento da saúde a distância.[2] Complementam que isso inclui consultas interativas e serviços de diagnóstico.
De vários pontos controversos, algumas similaridades podem ser observadas nas definições, como: o emprego das telecomunicações no diagnóstico médico e cuidado ao paciente, não sendo a telemedicina uma atividade exclusivamente médica, e sim a sinergia entre profissionais de saúde e de tecnologia, para o desenvolvimento de atividades multiprofissionais que envolvem gestão e planejamento, pesquisa e desenvolvimento de conceitos e soluções em educação, assistência e pesquisa científica em saúde, além de aspectos éticos e legais. Portanto, mais que um conjunto de atividades multiprofissionais, é uma área de atuação interdisciplinar.
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1.643 de 09 de agosto de 2002[3], definia a telemedicina como o exercício da medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em saúde. Estabelecia que os serviços de telemedicina deveriam obedecer às normas técnicas do CFM pertinentes à guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia de sigilo profissional principalmente no tocante aos prontuários médicos.
No dia 03 de fevereiro de 2019, o CFM, por meio da Resolução 2217/18[4], publicada no DOU em 06 de fevereiro de 2019, define e disciplina a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias.
Vale ressaltar que ambas as resoluções apresentam significativas diferenças no tocante ao tema. A mais recente prevê a teleconsulta, o telediagnóstico, a teletriagem, o telemonitoramento, a teleorientação, a teleconsultoria, bem como a telecirurgia e a teleconferência do ato cirúrgico que não estavam regulamentados pela Resolução de 2002. Outro ponto importante será a concordância e autorização expressa do paciente ou seu representante legal − por meio de consentimento informado, livre e esclarecido, por escrito e assinado – sobre a transmissão ou gravação das suas imagens e dados que dispõe a Resolução 2217/18.
Em 19 de março de 2020[5], o CFM enviou ofício ao Ministério da Saúde, para, em caráter de excepcionalidade devido à pandemia de COVID, reconhecer a possibilidade de utilização da telemedicina nos termos da Resolução 1643/02, em especial para teleorientação, telemonitoramento, teleinterconsulta.
Inúmeras indagações éticas e legais serão esclarecidas por uma revisão orientada dos princípios éticos e da legislação vigente na medida em que o atendimento médico a distância, com finalidade diagnóstica ou terapêutica, foge aos princípios tradicionais da ética médica, relativos a relação médico-paciente.
Aspectos favoráveis e desfavoráveis
Primeiramente, há de se falar na perspectiva de elevação do padrão de cuidados médicos a custos reduzidos, com um acesso mais universal e integral em respeito aos princípios do SUS. Pensando na distribuição geográfica do Brasil, pode significar acesso a populações ribeirinhas[6], solucionando grandes desafios da saúde, como ampliação do acesso a serviços médicos especializados em locais que não os apresentam, na melhoria da qualidade da atenção à saúde, na redução do tempo gasto entre o diagnóstico e a terapia.
Nesse sentido[7] também, o atendimento on-line possibilita a dispensa do agendamento de consultas e melhoria da relação custo-benefício, ao se substituir o deslocamento real pelo acesso virtual, favorecendo pessoas que vivem em lugares de difícil acesso.
Há de se admitir que facilitar o acesso pode significar também uma maior preocupação em monitorar suas condições de saúde, com autocuidado e propiciando maior adesão aos tratamentos. São mudanças comportamentais importantes que refletem na melhor distribuição dos recursos médicos, melhor qualidade de vida e educação em saúde dos pacientes.
A telemedicina com a racionalização de custos pode propiciar um melhor apoio à vigilância epidemiológica, auxiliando na identificação e rastreamento de problemas de saúde pública.
Assim, favoravelmente pode-se elencar a redução da distância, o aumento do número de profissionais disponíveis, a melhoria no desempenho das equipes, a agilidade na assistência com redução de custos.
Por outro lado, os aspectos desfavoráveis esbarram-se na insuficiência de regras éticas e legais aplicadas a essa tecnologia, podendo representar uma ameaça para a tradicional relação médico-paciente. Ou, ainda, na falta do contato com os pacientes. Nesse tópico, algumas recomendações já estão sendo feitas como um contato prévio ao menos, a fim de que se estabeleça uma relação de confiança entre profissional e paciente; a programação de um retorno físico após um número de consultas via telemedicina, e tantas outras que nós como profissionais de saúde do século XXI iremos vivenciar.
O fato é que tal prática, que já não era recente nem no Brasil nem no mundo, segundo observado acima, será o nosso novo normal pós-Covid 19, cabendo a nós encontrar as soluções para esse caminho sem volta.
Com relação às operadoras de saúde, estas deverão prever a identificação dos serviços que podem ser prestados por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde; os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.
Reflexões
A prática da telemedicina, no sentido amplo da palavra, não é algo recente, inclusive com disposições expressas pelo Conselho Federal de Medicina. Ademais, no dia a dia da relação médico-paciente, ferramentas como WhatsApp, Facebook, Instagram e outras redes sociais são úteis na comunicação e não podem ser utilizadas sem que isso esteja regulamentado. Juridicamente e eticamente, ao não estarem prescritas, essas modalidades aumentam as possibilidades de violações e até mesmo de futuras ações indenizatórias por eventuais danos aos pacientes.
Diante da atual pandemia, em virtude do isolamento social necessário, restou evidente a importância dessa prática, possibilitando um cenário de colaboração, compartilhamento de técnicas, ideias, teorias que só alavancarão ainda mais a medicina de forma cooperativa e sem fronteiras, em benefício da saúde e bem-estar do paciente[8]. Porém, deve acontecer de forma consciente e complementar, sendo inaceitável essa relação ética que se apoie unicamente com recursos telemédicos. Recomenda-se, ainda, que um primeiro contato médico-paciente seja presencial para estabelecer-se o vínculo e ulteriores consultas tenham prazos fixados para serem via digital.
Ademais, uma revisão orientada dos princípios éticos como privacidade, segurança, confidencialidade e responsabilidade, bem como da Lei Nacional de Proteção de Dados, se mostra imprescindível.
Profissionais que irão se utilizar dessa modalidade de tecnologia deverão ter uma formação específica para garantir sua melhor aplicabilidade sem interferências éticas ou legais na relação médico-paciente.
Esses serão os profissionais do século XXI, que ou se adaptam a essa nova prática ou estarão fora do mercado. Como já dizia Charles Darwin: “Não é o mais forte das espécies que sobrevive. Nem o mais inteligente. Mas sim o mais adaptável às mudanças”. Esta frase poderia ter sido escrita para médicos.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências Bibiográficas
FRANCISCO DEL POZO GUERRERO y ENRIQUE J. GÓMEZ AGUILERA. Telemedicina: una visión del pasado y del futuro. Rev. Todo Hospital (Monográfico Telemedicina), julio-agosto 2001: 444-445
Ferrer-Roca JA, Abreu Reyes R, Abreu González M, Suarez Delgado E. Capacitación médica en la sociedad de la información. Rev. Clín. Esp. 2001; 201: 315-321
LOSADA, Juan Antonio Sánchez. Aspectos Éticos y Médico-Legales en Telemedicina: La Consulta Médica Telefónica. Tese de Doutorado. Madrid, 2011.
SOARES, Paulo Vinícius de Carvalho. Aspectos jurídicos sobre os desafios da flexibilização da Telemedicina diante da crise da COVID-19. 07 de abril de 2020.
SANT’ANNA, Ricardo Tofani; Apolinário Krebs CARDOSO; Joao Ricardo Michielin SANT’ANNA. Aspectos Éticos e Legais da Telemedicina Aplicados a Dispositivos de Estimulaçao Artificial….
MALDONADO. Jose Manuel Santos de Varge, Alexandre Barbosa Marques, Antonio Cruz Telemedicina: desafios à sua difusão no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2016.
[1] Sigulem D, Anção MS, Ramos MP, Leão BF, Campos CJR. Informática Médica: Aplicações para o Diagnóstico e a Terapêutica. In: Atualização Terapêutica. 2ª ed. São Paulo: Editora Artes Médicas; 2001.
[1] Por meio da WHA5828. Disponível em: https://www.who.int/healthacademy/media/WHA58-28-en.pdf?ua=1. Acesso 18 de abril de 2020.
[2] Interactive telemedicine: effects on professional practice and health care outcomes. Cochrane Systematic Review – Intervention Version published: 07 September 2015
[2] El Khouri, Sumaia Georges. Tese USP: Telemedicina: Análise da sua evolução no Brasil. São Paulo: 2003. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5160/tde-24102007-143128/publico/sumaiagekhouri.pdf Acesso: 05 de abril de 2020.
https://doi.org/10.1002/14651858.CD002098.pub2
[3] https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1638
[4] https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227
[5] https://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf
[6] MACHADO, FELIPE SALLES NEVES. Utilização da telemedicina como estratégia de promoção de saúde em comunidades ribeirinhas da Amazônia: experiência de trabalho interdisciplinar, integrando as diretrizes do SUS. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2010, vol.15, n.1, pp.247-254.
[7] A informática no consultório medico. J. Pediatr. (Rio J.) vol.79 suppl.1 Porto Alegre May/June 2003.
[8] FRANCISCO DEL POZO GUERRERO y ENRIQUE J. GÓMEZ AGUILERA Telemedicina: una visión del pasado y del futuro, Rev. Todo Hospital (Monográfico Telemedicina), julio-agosto 2001: 444-445.