Reflexos de uma pandemia | Colunistas

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Após muitos meses de pandemia, seguimos sobrevivendo a uma das fases mais críticas da doença. Sim, é isso mesmo, sobrevivendo, e não vivendo. Qual a diferença entre os dois? Isso é algo que venho tentando entender há muito tempo, e a pandemia somente aguçou esta reflexão.

Há algum tempo atrás não teríamos condições de imaginar um evento dessa magnitude, como conceber que uma doença seria capaz de nos privar de nossa liberdade, se é que em algum momento já estivemos livres. Mesmo com todos os dramas pelo qual esse mundo já passou, com inúmeras guerras, doenças e catástrofes naturais, vivíamos imersos em uma ilusão de que estávamos seguros, dentro de nossa própria realidade. E qual realidade é essa? A sua!

Impossível descrever os padrões da realidade de seu semelhante, a cada um cabe uma forma única de enxergar o mundo, a uniformização dessa visão antes de improvável, é inviável. E, inseridos nesse contexto, como entender os impactos e cicatrizes que esta doença nos deixará quando o pior passar? Ou pior ainda está por vir? Como será a reação individual e coletiva a ressaca desse ser, que incapaz de se reproduzir sozinho, leva a óbito seu próprio hospedeiro?

Infelizmente muito desses impactos, precocemente, já passam a ser sentidos por toda sociedade e vão muito além das sequelas físicas. Nem todos estavam preparados para tamanha pressão e peso que nos foi atribuído, se é que existia alguém preparado. Em minha humilde opinião, entendo que não haverá uma só pessoa que passará ilesa a esse processo, o próprio fato de se achar bem, já determina que não está.

Em um artigo de revisão, intitulado “Protocolos para tratamento psicológico em pandemias: as demandas em saúde mental produzidas pela COVID-19”, Zwielewski et al. relacionam os grupos envolvidos com a COVID-19 e as demandas específicas para cada um desses grupos de acordo com literaturas especializadas. No grupo classificado como “população geral”, os aspectos relacionados foram: medo, pânico generalizado, estigmatização e exclusão de pessoas confirmadas e sobreviventes, reações emocionais negativas incluindo dificuldade de adaptação e depressão. Obviamente estas sensações atingem a cada um de maneira diferente, mas o difícil sem dúvida, é manter-se apático diante do momento que todos compartilhamos.

Como sentir-se bem com tamanho sofrimento a sua volta? Como sentir-se bem privado de sua liberdade de ir e vir? Como sentir-se bem distante de quem ama? Como sentir-se bem com a fome e pobreza que se intensifica? Como sentir-se bem consigo mesmo? Se você já se fez alguma dessas perguntas, provavelmente você não está bem, mas se você não as fez, provavelmente está pior.

Recentemente, em março deste ano, foi publicada uma reportagem no caderno de saúde da CNN, que apresentou a nova geração que está sendo formada, os filhos da pandemia, referidos como “geração C”. Uma geração composta por criança que nasceram entre 2016 e meados da década de 2030, uma vez que os impactos previstos pela pandemia são tão drásticos, que devem perdurar por anos.

E quais serão os impactos? Algo mais para refletirmos. As crianças da próxima geração terão na composição de sua história um ingrediente a mais, com a inclusão de hábitos novos e abandono dos antigos. E nós, como adultos, fragilizados, ressacados ou alienados que acredito que somos, teremos a função de a elas fornecer todo o suporte e orientação necessário, além de claro, aprendermos, e muito com elas. Acredito que as crianças que melhor lidam com a realidade são as mesmas que melhor se abstraem dela. A imaginação é uma grande aliada nesse processo, afinal, ela nos leva a qualquer lugar sem ao menos sair de casa, não é assim? Provavelmente para você que está lendo este artigo, não! Experimente tirar um tempo de seu dia e se dedicar a brincar com uma criança, mas brincar de verdade, imergir de fato na brincadeira, no começo é difícil, muito difícil na verdade, mas quando acontece, por algum instante somos capazes de entrar em um mundo que há muito não recordávamos, nossa única e exclusiva Nárnia.

Mas, a realidade a porta bate e, ao mesmo tempo em que aguçamos nossos olhos de criança, precisamos assumir responsabilidade de adulto e conviver com todo o estresse que os anos nos trazem. O artigo da CNN está direcionado principalmente a nova geração que se forma, mas não podemos esquecer da geração atual, inúmeros jovens e adultos que tentam se reinventar em meio a este cenário, que nos arrasta a um futuro desconhecido e imprevisível.

A todos que sofrem de forma direta ou indireta, um conselho simples: busque ajuda e permita que alguém compartilhe de seu mundo. Não tenho inclinação à autoajuda e muito menos propriedade para aconselhar formas e estratégias para sentir-se bem, trago apenas reflexões, que na maior parte das vezes guardo comigo, pouco as exponho, assim me sinto mais seguro, em minha zona de conforto. Seria esta mudança de atitude também um dos reflexos da pandemia? Estaria eu, passando por um processo de adaptação sem ao menos me dar conta disso. Muito provavelmente sim!

A Pandemia nos molda e nos impacta de formas que não conseguimos nem imaginar, a ponto de identificarmos essas mudanças apenas quando as expomos a outras pessoas, afinal, de tudo o que fomos privados, um deles nos falta em especial, o contato! Físico e sobretudo emocional.

Em meio a muitas dúvidas e outras que ainda estão por vir, sigo em reflexão!

Diogo Valvano de Medeiros

Instagram: @vmedeirosdiogo

Referências bibliográficas

SHOICHET, Catherine E. Conheça a Geração C, a geração Covid. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/13/conheca-a-geracao-c-a-geracao-covid. Acesso em: 01 de maio de 2021.



O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


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