- Conceitos gerais
A hemogasometria arterial (HA) é um dos exames mais solicitados dentro da Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Um estudo de Machado et al demonstrou que a cada 100 pacientes internados na UTI de um hospital de referência, 11 HA eram solicitadas por dia no intuito de avaliar o quadro dos enfermos. A HA é um exame rápido, barato e minimamente invasivo, além de extremamente eficaz no diagnóstico de diversas patologias envolvendo os distúrbios ácido-base. Por esses motivos, um bom médico generalista deve ter o conhecimento técnico para ser capaz de compreendê-la adequadamente.
2. Indicações e contraindicações
A HA deve ser solicitada quando for identificado algum distúrbio acidobásico, para mensurar o valor de pO2 ou pCO2, para avaliar a resposta a terapias e para a realização de testes bioquímicos. Contudo, o exame tem algumas contraindicações como distorções anatômicas ou infeção no local de realização do exame, coagulopatias severas e teste de Allen anormal.
2. Realização do exame
Inicialmente o médico, já paramentado com luvas de procedimento e óculos de proteção, deve se apresentar ao paciente e realizar o Teste de Allen, para verificar o suprimento arterial da mão. Com isso, o profissional deve fazer a limpeza do punho, palpar a artéria radial do paciente e puncionar o local onde o pulso foi sentido. Isso deve ser feito com uma seringa própria para a realização da HA ou com uma já heparinizada. Após progressão da agulha e subsequente chegada ao lúmen do vaso, uma quantidade entre 2 e 3 mililitros de sangue é recolhida e encaminhada para análise. A hemostasia da área puncionada, então, deve ser feita para evitar maiores sangramentos. A técnica demonstrada anteriormente expõe um dos possíveis sítios de punção para a realização do exame.
3. Valores de referência
Para a interpretação da HA por parte do profissional de saúde, é preciso que os valores de referência do exame sejam conhecidos. Esses valores se encontram na Tabela 1.
Tabela 1. Valores de referência da Hemogasometria arterial.
Parâmetro | Valor mínimo | Valor máximo |
pH | 7,35 | 7,45 |
pCO2 | 35 mmHg | 45 mmHg |
pO2 | 80 mmHg | 100 mmHg |
SaO2 | 95% | 97% |
HCO3– | 22 mEq/L | 26 mEq/L |
BE | -3 mEq/L | +3 mEq/L |
AG | 8 mEq/L | 12 mEq/L |
Legenda: pCO2: pressão do gás carbônico; pO2:pressão do gás oxigênio; SaO2: saturação de oxigênio; HCO3 -:bicarbonato; BE: base excess eAG: ânion gap.
5. Interpretação do exame
5.1. Qual o pH?
Como foi apresentado acima, os valores normais de pH sanguíneo estão entre 7,35 e 7,45. Um valor maior que 7,45 indica uma alcalemia, ao passo que um valor menor que 7,35 indica uma acidemia.
5.2. Qual distúrbio explica esse pH?
As alcaloses e acidoses podem ser classificadas em metabólicas e respiratórias. Alterações nos valores de pCO2 enquadram-se como disfunções respiratórias, logo, um aumento nos níveis de gás carbônico causa uma acidose respiratória, e uma diminuição causa uma alcalose respiratória. Alterações nos valores de bicarbonato (HCO3–) caracterizam os distúrbios metabólicos, de modo que um decréscimo é característico de uma acidose metabólica e um incremento é característico de uma alcalose metabólica.
5.3. Existe distúrbio compensatório?
Na vigência de um distúrbio ácido-base, respostas compensatórias do corpo podem ocorrer, visando retornar o valor do pH sanguíneo ao normal. Por isso, as respostas compensatórias sempre ocorrem no mesmo sentido do distúrbio primário. Isso quer dizer que um distúrbio que se caracterize por uma resposta de incremento induzirá uma resposta compensatória também de incremento. Por exemplo, caso tenhamos uma diminuição no valor de bicarbonato (acidose metabólica), pode ocorrer uma diminuição no valor do gás carbônico, com a finalidade de reverter a acidose.
Porém, como saber se estamos diante de um distúrbio compensatório? Primeiro que ele, por si só, raramente resolve a variação inicial de pH. Além disso, existem fórmulas matemáticas que demonstram a variação compensatória esperada em caso de um distúrbio ácido-base. Por exemplo, em uma acidose metabólica, podemos usar a seguinte fórmula para estimar os níveis de gás carbônico:
pCO2 esperada= (1,5xHCO3–) + 8
Se estivermos frente a um distúrbio compensatório, o valor real de pCO2 será próximo do estimado; caso contrário, o distúrbio ácido-base em estudo é um distúrbio misto, abordado a seguir.
5.4. O distúrbio é misto?
Os distúrbios mistos ocorrem quando existem dois ou mais desequilíbrios ácido-base acontecendo simultaneamente, podendo gerar uma grave alteração no pH do enfermo. Dois tipos de distúrbios mistos são a alcalose mista (diminuição do valor de pCO2 e aumento no valor de HCO3–) e a acidose mista (aumento do valor de pCO2 e diminuição no valor de HCO3–). Esses dois tipos não devem ser confundidos com os distúrbios compensatórios, os quais, por definição, cursam com aumento ou diminuição dos dois parâmetros (pCO2 e HCO3–) simultaneamente. Entretanto, também é possível encontrar outras duas situações de distúrbios mistos: quando uma alcalose respiratória (diminuição do valor de pCO2) e uma acidose metabólica (diminuição no valor de HCO3–) acontecem ao mesmo tempo, ou quando uma acidose respiratória (aumento do valor de pCO2) e uma alcalose metabólica (aumento no valor de HCO3–) ocorrem simultaneamente. Nesses casos, sugere-se a utilização das preposições matemáticas referidas acima para distinguir se a disfunção é compensatória ou mista.
5.5. O quadro é agudo ou crônico?
Para saber se a patologia encontrada no paciente é aguda ou crônica, utilizamos o base excess (BE), que corresponde à diferença entre o valor de bases encontrado em uma pessoa saudável e o valor de bases encontrado no paciente com distúrbio ácido-base. É interessante notar que, por ser um mecanismo compensatório renal, seu valor não se altera em distúrbios agudos. Assim, um aumento no valor de referência da BE indica uma acidose (metabólica ou respiratória) crônica, ao passo que uma diminuição indica uma alcalose crônica. Um valor de BE > +10 mEq/L ou BE < -10 mEq/L denota uma desregulação grave. Um adendo importante é que, em distúrbios crônicos, o valor do pH está próximo ao do valor de referência ou até mesmo normal, ao que, em disfunções agudas, ele geralmente se encontra bem alterado. Nos distúrbios crônicos agudizados, é possível verificar um pH alterado na vigência de um valor de BE também alterado.
5.6. Como está o ânion gap (AG)?
O ânion gap (AG), calculado apenas em caso de acidose metabólica, tem como pressuposto o seguinte: a soma de todos os cátions do organismo é igual à soma de todos ânions. Logo, a fórmula para apontar seu valor leva em conta os principais íons do corpo e é dada por:
AG = Na+ – (Cl– + HCO3–)
Nos casos de valores de AG elevado, temos uma acidose metabólica pura, sem outro distúrbio associado, pois o aumento do AG é explicado pela própria diminuição do bicarbonato. Contudo, nos casos de acidose metabólica com AG normal, esse valor é explicado por um aumento na concentração de íons cloreto, levando a um quadro de hipercloremia.
5.7. Como está o Δ/Δ?
O valor do Δ/Δ só deve ser feito quando estivermos em uma situação de acidose metabólica com AG elevado. Esse valor investiga se a variação do bicarbonato foi similar à do AG (“delta de bicarbonato por delta de AG”). A fórmula para encontrar essa razão é:
Δ/Δ = AG – 10 / 22 – HCO3–
Nos casos de Δ/Δ = 1 temos um cenário acidose metabólica com AG elevado pura, sem distúrbio associado, pois a variação do bicarbonato foi similar à do ânion gap, como deve acontecer. Caso tenhamos um valor do Δ/Δ > 1, a acidose metabólica com AG elevado está associada a uma alcalose metabólica. Isso se explica pelo fato de que a variação do AG ser maior que a do bicarbonato só acontece quando temos um aumento do bicarbonato. E, por fim, quando o Δ/Δ < 1 temos uma acidose metabólica com AG elevado associado a uma hipercloremia. Tal fato é explicado porque a variação do bicarbonato foi maior que a do AG e isso só acontece quando ocorre o aumento da concentração de íons cloreto.