Carreira em Medicina

Resumo: Princípios de ouro do atendimento pré-hospitalar no trauma | Ligas

Resumo: Princípios de ouro do atendimento pré-hospitalar no trauma | Ligas

Compartilhar
Imagem de perfil de Comunidade Sanar

Autor(a): Higor Cezar Xavier Dias

Revisor(a): Luccas Pedro Panini- @ dr.luccaspanini (opcional)

Orientador(a): Dr. Rodrigo Dias

Liga: Liga do trauma São Leopoldo Mandic Araras (LTLSMA)

Introdução

Concebida em 1960 pelo médico R. Adams Cowley, a “hora de ouro” é um período crucial durante o qual seria importante iniciar o cuidado definitivo ao doente traumatizado grave. A hora de ouro não se refere estritamente a 60 minutos, variando de doente para doente com base nos ferimentos. Portanto, o termo mais correto a se usar é “Período de ouro”. Os pacientes que podem receber o atendimento definitivo dentro do seu período de ouro, suas chances de sobrevida aumentam muito.

Ter acesso ao doente, identificar e tratar as lesões com risco à vida e acondicionar e transportar o doente até a unidade de atendimento adequada mais próxima no menor tempo possível são objetivos essenciais para satisfazer o período de ouro do paciente.

É importante enfatizar que nem todos os doentes têm o privilégio de uma “hora de ouro”, há ferimentos que caminham para a morte em minutos.

Por que os doentes traumatizados morrem

Um estudo da Rússia com mais de 700 mortes por traumatismo apresentou que a maioria dos doentes que sucumbiram rapidamente devido às lesões enquadram-se em uma das três categorias:

  1. Perda sanguínea aguda maciça (36%)
  2. Lesão grave de órgãos vitais, como cérebro (30%)
  3. Obstrução de via área e insuficiência respiratória aguda (25%)

Um estudo publicado em 2010 documentou que a morte rápida de 76% dos doentes deve-se às lesões fatais na cabeça, aorta e coração. O choque é visto como uma falência na produção de energia do corpo. Apesar de nosso corpo poder armazenar energia sob a forma de glicogênio e de gordura, o oxigênio necessário para o acontecimento dos processos metabólicos não pode ser armazenado. Como o oxigênio é essencial na produção de energia (ATP) do nosso organismo, e a energia é vital para a saúde de nossas células e órgãos, sua ausência acarreta em não produção de ATP e, consequentemente, sem energia suficiente, as atividades metabólicas essências não funcionam normalmente e as células começam a morrer e os órgãos entram em falência. A sensibilidade das células com relação à falta de oxigênio varia de um órgão para outro. Ou seja, o choque leva à morte se o doente não for prontamente tratado, por isso é essencial o transporte rápido do doente.

O Período de Ouro representa um intervalo de tempo no qual uma sequência de eventos do choque está se agravando e a sobrevivência a longo prazo, assim como o desfecho, estão comprometidos, mas essa condição é quase sempre reversível se o atendimento adequado for rapidamente recebido. Para que os doentes traumatizados tenham uma melhor chance de sobreviver, as intervenções devem ser iniciadas com um sólido sistema de comunicação de emergência. O trauma é um “trabalho de equipe”, ou seja, o doente “vence” quando todos os membros da equipe de trauma trabalham juntos para cuidar de cada doente.

Os princípios de ouro do atendimento pré-hospitalar no trauma

Os socorristas devem reconhecer e estabelecer as prioridades dos doentes com lesões múltiplas, seguindo os “Princípios de Ouro” do atendimento pré-hospitalar ao traumatizado.

  1. Garantir a segurança dos socorristas e do doente;

A segurança do local do trauma deve ter a prioridade máxima na chegada em todos as ocorrências da equipe de atendimento. Com base nas informações dadas pelos socorristas, os riscos em potencial podem ser antecipados antes da chegada no local. O socorrista que se expõe a riscos desnecessários pode tornar-se uma vítima também, contribuindo, assim, com as dificuldades de atendimento no local.

O equipamento de proteção deve ser sempre utilizado, especialmente no atendimento de doentes traumatizados com a presença de sangue ou fluidos corporais.

2. Avaliar a situação para determinar a necessidade de recursos adicionais;

Imediatamente à chegada, deve-se realizar uma avaliação rápida para determinar a necessidade de recursos adicionais ou especiais.

Ex: necessidade de unidades de atendimento médico de emergência adicionais, equipamentos de combate a incendia, equipes especiais de resgate, equipe da companhia de eletricidade, helicópteros médicos, e médicos para auxiliar na triagem de muitos doentes. A necessidade desses recursos deve ser analisada com antecedência e solicitada o quanto antes.

3. Reconhecer a cinemática que produziu as lesões;

Compreender os princípios da cinemática leva a uma melhor avaliação do doente. O conhecimento de padrões específicos de lesões ajuda a prevê-las e saber onde examinar. A consideração sobre a cinemática não deve retardar o início de uma avaliação e o atendimento do doente, deve ser incluída na avaliação global da cena e nas perguntas direcionadas ao doente e às testemunhas. A cinemática pode exercer papel fundamental na escolha da unidade de destino para um determinado doente.

4. Usar a avaliação primária para identificar condições de risco à vida;

A pesquisa rápida permite que as funções vitais sejam rapidamente avaliadas e as condições com risco à vida identificas por meio da avaliação sistemática dos ABCDEs (agora XABCDE). Assim que problemas de risco à vida são identificados, o atendimento é imediatamente iniciado.

Durante o transporte, a avaliação primária deve ser repetida em intervalos regulares de modo que a efetividade das intervenções passa ser avaliada e novos problemas possam ser tratados.

A avaliação primária também fornece os dados para estabelecer as prioridades de atendimento no caso da existência de múltiplas vítimas.

Obs: Em crianças, gestantes e nos idosos, as lesões devem ser consideradas da seguinte forma:

1.São mais graves do que aparentam 2.Têm um impacto sistêmico mais profundo 3.Têm grande potencial de levar à rápida descompensação

5. Cuidar adequadamente da via aérea enquanto a coluna vertebral permanece estabilizada conforme indicado;

O cuidado da via aérea continua sendo a maior prioridade no tratamento de doentes gravemente feridos. Isso deve ser feito enquanto se mantém a cabeça e o pescoço na posição neutra alinhada, se indicado pelo mecanismo do trauma.

6. Providenciar ventilação e oferecer oxigênio para manter o nível de SpO2 superior a 95%;

 A avaliação e o tratamento da ventilação é outro aspecto fundamental do atendimento ao doente gravemente ferido. Os doentes com bradipneia precisam de suporte ventilatório, assistido ou total, com o dispositivo de máscara com válvula e balão conectado a fonte de oxigênio.

Em doentes taquipneicos deve ser estimada a volume minuto (volume corrente x frequência ventilatória). No doente com redução significativa do volume minuto (ventilações rápidas, superficiais), as ventilações devem ser assistidas com o dispositivo de máscara com válvula e balão conectados a fonte de oxigênio.

Oxigênio suplementar deve ser administrado a todo doente traumatizado com suspeita ou evidencia de problemas que gerem risco á vida. Manter o SpO2 superior a 95%.

No caso de ventilação assistida, deve-se ter cuidado para evitar a hiperventilação invertida. A hiperventilação no doente com lesão cerebral traumática, na ausência de sinais de aumento da pressão intracraniana e herniação, pode causar a vasoconstrição, comprometer o fluxo sanguíneo cerebral e levar a desfechos negativos para o doente.

7. Controlar toda hemorragia externa significativa;

Como o sangue não está disponível para administração no ambiente pré-hospitalar, o controle da hemorragia torna-se uma grande preocupação para os socorristas.

A maioria das hemorragias externar é prontamente controlada pela aplicação de pressões direta no ponto de sangramento ou, se os recursos forem limitados, pelo uso de curativo compressivo feito com gaze e atadura.

Se a pressão direta ou um curativo compressivo não conseguirem controlar a hemorragia externa de uma extremidade, o próximo passo é limitar o fluxo sanguíneo na extremidade pelo uso de um torniquete devidamente aplicado.

Para um doente em choque evidente decorrente de hemorragia externa, as medidas de reanimação devem ser evitadas antes do controle adequado de sangramento. Tentativas de animação nunca terão sucesso na presença de uma hemorragia externa.

O controle da hemorragia externa e o reconhecimento da suspeita de hemorragia interna, associados ao transporte imediato para o hospital apropriado mais próximo, representam oportunidades para que o socorrista exerça impactos significativo e salve muitas vidas.

8. Realizar terapia básica de choque, incluindo a imobilização adequada das lesões musculoesqueléticas e o restabelecimento e manutenção da temperatura corpórea normal;

Ao final da avaliação primária, o corpo do doente é exposto de forma que o socorrista possa verificar rapidamente outras lesões que gerem risco à vida. Uma vez concluído esse exame, o doente deve ser novamente coberto porque a hipotermia pode ser fatal para um doente traumatizado grave. O doente em choque já está comprometido por uma redução acentuada de energia resultante de uma perfusão tecidual inadequada. Permitir a perda de calor devido a exposição desnecessária resulta em um efeito negativo para o doente traumatizado grave. A tríade da morte (hipotermia, acidose e coagulopatia) são sintomas da produção de energia reduzida e de um metabolismo anaeróbico.

A hipotermia compromete drasticamente a capacidade do sistema de coagulação sanguínea do organismo, dificultando a hemostasia.

Com um doente traumatizado grave, pode não haver tempo para a imobilização individual de cada fratura. Ao invés disso, a imobilização do doente em prancha longa imobilizará virtualmente todas as fraturas em posição anatômica e diminuirá a hemorragia interna.  Na maioria das ocorrências de trauma, quando não há lesões que gerem risco à vida, identificadas durante a avaliação primária, cada extremidade com suspeita de fratura pode ser imobilizada de forma apropriada.

9. Manter a estabilização manual da coluna até que o doente esteja imobilizado;

Após contatar o doente traumatizado, a estabilização manual da coluna vertebral deve ser iniciada e mantida até que o doente esteja imobilizado no dispositivo apropriado ou isento da indicação de imobilização da coluna. A imobilização adequada da coluna implica na imobilização desde a cabeça até a pelve. A imobilização não deve interferir na habilidade do doente de abrir a boca e não deve comprometer a função ventilatória.

A imobilização da coluna após um trauma contuso é indicada se o doente apresentar um nível de consciência alterado, dor no pescoço, queixas neurológicas, sensibilidade na coluna, anomalia anatômica ou um déficit motor ou sensorial identificado durante exame físico.

Para a vítima de trauma penetrante, a imobilização da coluna é feita somente se o doente apresentar queixas neurológicas relacionadas à coluna ou se o déficit motor ou sensorial for observado no exame físico. Um estudo apresentou que doentes com trauma penetrante que passam pela imobilização pré-hospitalar desnecessária tem um desfecho pior.

10. Quando se trata de doentes traumatizados graves, iniciar o transporte à unidade adequada o quanto antes, após a chegada do AME no local;

Estudos têm demonstrado que os atrasos no transporte de doentes traumatizados para as unidades de destino adequadas, aumentam as taxas de mortalidade.

A solução cristaloide restaura temporariamente o volume intravascular, mas não restabelece a capacidade de transportar oxigênio das hemácias perdidas e a perda dos fatores de coagulação do plasma que extravasa rapidamente para o espaço intersticial, criando problemas de troca de oxigênio. A reanimação nunca será alcançada no doente com hemorragia interna ativa.

O hospital mais próximo pode não ser o mais adequado para muitos dos doentes com trauma. Esses doentes que preenchem certos critérios fisiológicos, anatômicos ou de mecanismos de trauma serão beneficiados ao encaminhá-los para um centro de trauma – unidade com equipe e recursos especiais para tratar o traumatizado.

11. Iniciar reposição de volume com fluídos intravenosos aquecidos a caminho do local de atendimento;

O início do transporte de um doente com trauma gravemente ferido nunca deve ser protelado devido à inserção de cateteres IV e para administração de terapia de fluídos. Apesar das soluções cristaloides restaurarem o volume sanguíneo perdido e melhorarem a perfusão, elas não transportam oxigênio. Além disso, a restauração da pressão arterial pode levar a mais uma hemorragia pelo rompimento do coágulo no vaso sanguíneo.

A caminho da unidade de destino, dois cateteres IV de grosso calibre podem ser inseridos e iniciada a infusão de solução cristaloide aquecida, de preferência, Ringer Lactato.

12. Obter histórico clínico do doente e realizar uma avaliação secundária quando os problemas de risco à vida tiverem sido tratados de forma satisfatória ou tiverem sido descartados;

Se a avaliação mostrar lesões que gerem risco à vida, as intervenções fundamentais devem ser realizadas e o doente deve ser transportado dentro dos 10 minutos de platina. Por outro lado, se não forem identificadas lesões que gerem risco à vida, uma avaliação secundária deve ser realizada. A avaliação secundária é um exame físico sistemático, da cabeça aos pés, que serve para identificar todas as lesões. O histórico SAMPLE (sintomas, alergias, medicamentos, passado médico, líquidos e alimentos ingeridos pela última vez, eventos que precederam o trauma) é obtido também durante a avaliação secundária.

13. Proporcionar alívio adequado da dor;

A administração de analgésicos para aliviar a dor é indicada, desde que não existam contraindicações para a administração. Os doentes não devem sentir dor durante o transporte. Os socorristas devem administrar analgésicos para o alívio adequado da dor.

14. Comunicar de forma minuciosa e precisa as informações sobre o doente e as circunstâncias do trauma ao serviço médico de destino;

A comunicação a respeito do doente traumatizado com o hospital de atendimento envolve três componentes:

  • Alerta pré-chegada
  • Relato verbal na chegada
  • Documentação escrita da ocorrência no formulário de atendimento ao doente

Na chegada ao hospital de destino, o socorrista faz um relato verbal àqueles que estão assumindo o atendimento do doente traumatizado. Esse relato deve ser sucinto e preciso e deve servir para informar à equipe sobre:

  • A condição atual do doente
  • A cinemática do trauma
  • Achados da avaliação
  • Intervenções realizadas
  • A resposta do doente à essas intervenções

15. Acima de tudo, não causar mais dano;

Ao cuidar de um doente traumatizado grave, os socorristas devem questionar-se se as suas intenções no local e durante o transporte irão beneficiar o doente de forma razoável. Se a resposta para essa pergunta for não ou incerta, essas intervenções devem ser suspensas e a ênfase deve ser colocada no transporte do doente com trauma ao local de atendimento mais próximo e apropriado. Por fim, não causar mais dano significa, por vezes fazer menos.