Resumo sobre a maconha explicando se ela vicia | Colunistas

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O que exatamente é maconha?

Maconha é um termo genérico usado para se referir às plantas do gênero Cannabis  (C. sativa; C. indica e C. ruderalis). Historicamente, acredita-se que a interação entre os humanos e a maconha começou no Afeganistão e na Índia, possivelmente, há 29.000 anos atrás. De lá pra cá foi usada de muitas formas diferentes, desde substrato para construção de tecidos, papéis ou como substância psicoativa e, até mesmo, como “medicamento”.  A maconha possui diversos princípios com atividade psicoativa, sendo o principal responsável pelos efeitos psicotrópicos o delta-9-tetrahidrocannabinol (THC). Outros fitocanabinóides conhecidos são o Cannabidiol (CBD), Cannabigerol e Cannabivarina.

Como a maconha funciona?

O THC se liga como agonista parcial a dois receptores endógenos: o CB1 e o CB2, distribuídos pelo sistema nervoso central e, também, por todo o corpo – até mesmo no sistema imune. O THC promove liberação de dopamina por meio da ligação aos receptores CB1 no circuito mesolímbico – parte do cérebro responsável pela sensação de recompensa -, gerando uma percepção de reforço positivo ao seu uso.  Essa mesma via é relacionada ao uso de diversas substâncias psicoativas e, ainda, às sensações positivas que temos no nosso dia-a-dia. O uso crônico e intenso, diário, favorece um processo de dessensibilização dos receptores do tipo CB1, explicando a resistência adquirida pelos usuários recorrentes.  Esse processo pode ser revertido com a abstinência.

Quais os sinais e sintomas do uso de maconha?

As manifestações agudas do consumo de maconha sofrem de uma relação concentração-dependente de THC: quanto mais THC, mais afetado fica o usuário. Os sintomas podem ser diversos, mas os mais frequentemente observados são: euforia, epifania, relaxamento, sedação, lentificação do discurso, diminuição da atenção e da memória episódica, ansiedade e modificação do conteúdo dos pensamentos. Dentre os sinais temos principalmente: taquicardia,  olhos vermelhos, boca seca, ataxia e náuseas. Alguns usuários podem, ainda, apresentar paranoia e ataques de pânico.

Quem usa maconha? 

Uma estimativa de 2016 apontou que aproximadamente 192 milhões de pessoas usavam maconha por todo o mundo – principalmente no Ocidente e África Central), apontando um crescimento de mais de 15% em comparação ao ano de 2006. É mais comumente usada por adultos jovens, porém dos 2,6 milhões de novos usuários nos EUA – em 2016 – 46% tinham entre 12 e 17 anos. Homens usam maconha até duas vezes mais do que mulheres. Estudantes de graduação fumam em níveis menores do que pessoas sem acesso ao recurso, porém, estudantes em tempo integral consomem a substância em níveis comparáveis ao dos não-estudantes. Ademais, reprovação, pouco engajamento escolar, não gostar da escola e influência de colegas foi associado a uma chance 2-3 vezes maior de exposição à cannabis. Pessoas que fumam cigarro e consomem álcool têm até 6 vezes mais chance de consumir maconha.

E a maconha vicia?

Atualmente, os termos “vício” e “dependência química” vem sendo substituídos pelo conceito de “Transtorno de Uso”. Dessa forma, temos o transtorno por uso de Cannabis, definido pelo DSM-V como:

Um padrão problemático de uso de cannabis que leva a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativo, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes, ocorrendo dentro de um período de 12 meses:
1) A cannabis é frequentemente consumida em grandes quantidades ou por um período mais longo do que o planejado.
2) Há um desejo persistente ou esforços mal sucedidos para reduzir ou controlar o uso de cannabis.
3) Muito tempo é gasto em atividades necessárias para obter cannabis, consumir cannabis ou recuperar-se de seus efeitos.
4) Desejo ou forte desejo ou necessidade de usar cannabis.
5) Uso recorrente de cannabis, resultando em falha no cumprimento de obrigações de papel importante no trabalho, na escola ou em casa.
6) Uso continuado de cannabis, apesar de ter problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelos efeitos da cannabis.
7) Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes são abandonadas ou reduzidas devido ao uso de cannabis.
8) Uso recorrente de cannabis em situações em que é fisicamente perigoso.
9) O uso de cannabis é continuado apesar do conhecimento de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que provavelmente foi causado ou exacerbado pela cannabis.
10) Tolerância, conforme definido por um dos seguintes:
a) A necessidade de quantidades acentuadamente maiores de cannabis para atingir a intoxicação ou o efeito desejado.
b) Efeito marcadamente diminuído com o uso continuado da mesma quantidade de cannabis.
11) Retirada, conforme manifestado por um dos seguintes:
a) A síndrome de abstinência característica da cannabis.
b) A cannabis (ou uma substância intimamente relacionada) é consumida para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.
Especifique se:
Na remissão inicial: depois que todos os critérios para transtorno por uso de cannabis foram atendidos anteriormente, nenhum dos critérios para transtorno por uso de cannabis foi atendido por pelo menos 3 meses, mas por menos de 12 meses (com exceção do Critério A4, “Desejo ou um forte desejo ou necessidade de usar cannabis “, pode estar presente).
Em remissão sustentada: Depois que todos os critérios para transtorno por uso de cannabis foram atendidos anteriormente, nenhum dos critérios para transtorno por uso de cannabis foi atendido em qualquer momento durante um período de 12 meses ou mais (com exceção do Critério A4, “Desejo ou um forte desejo ou necessidade de usar cannabis “, pode estar presente).
Especifique se:
Em um ambiente controlado: Em um ambiente controlado: Este especificador adicional é usado se o indivíduo estiver em um ambiente onde o acesso à cannabis é restrito.
Especifique a gravidade atual:
Leve: presença de 2 a 3 sintomas.
Moderado: Presença de 4 a 5 sintomas.
Grave: Presença de 6 ou mais sintomas.

Portanto, observamos que sim: a maconha pode gerar problemas relacionados ao seu uso. Devemos, de forma adicional, sempre ponderar em relação ao diagnóstico diferencial com “Uso Não Problemático de Cannabis”, feito por meio da análise cuidadosa de hábitos e condições do usuário, bem como funcionalidade. A funcionalidade do usuário, controle sobre o uso, capacidade de evitar situações em que haja prejuízo de sua segurança (dirigir, trilhas, etc.), envolvimento com trabalho e/ou estudos são parâmetros mais adequados do que somente análise da quantidade e da frequência para estabelecermos a possibilidade de um uso patológico ou não problemático. 

Outro ponto relevante é o aumento da concentração de THC nos compostos à base de Cannabis consumidos pelo mundo, com flores chegando a 25% de concentração e extrações – como Wax e Rosin – que passam dos 80% de THC. Perceba: os problemas relacionados ao uso de Cannabis tem um padrão dose-dependente, sendo, portanto, mais frequentes os efeitos adversos quanto maior a concentração de THC ingerida. 

Quem desenvolve o “Transtorno por Uso de Cannabis”?

Em 2010, cerca de 13,1 milhões de pessoas foram diagnosticadas com “Transtorno por Uso de Cannabis” moderado a grave. Nos EUA, cerca de 1 a cada 8 usuários de maconha desenvolvem o transtorno. 

São fatores relacionados à maior chance de desenvolvimento do transtorno:

  • Usar Cannabis – chance 7,6 vezes maior de desenvolver o transtorno em 3 anos, comparado a não usuários.
  • Maior intensidade de uso.
  • Homens têm até 2 vezes mais chance de desenvolver o transtorno do que mulheres.
  • Ser mais novo – a taxa de pessoas com transtorno diminui com o aumento da idade.
  • Ter abandonado a escola.
  • Morar em cidade, quando comparado a populações rurais.
  • Estudos genéticos levantam a possibilidade de componente hereditário importante em relação ao consumo e abuso de Cannabis, apesar de não haver ainda uma associação robusta e específica para com um determinado gene ou nucleotídeo.
  • Disfunção familiar.
  • Eventos estressores pregressos.
  • Comorbidade psiquiátrica.

Alguns fatores protetores:

  • Boa relação e suporte familiar.
  • Religiosidade.
  • Boa performance em atividades acadêmicas e escolares.
  • Boa noção em relação aos riscos do uso de Cannabis
  • Baixo uso em contextos sociais.

Além disso, há associação entre o consumo de Cannabis e várias morbidade psiquiátricas, porém, não há uma relação causal clara e bem estabelecida entre a maioria delas.

Quais os riscos?

Em relação a esse tópico, há ainda muito o que se estudar. Em relação à estimativa de “anos de vida perdidos” (Burden of Diseases), a Cannabis ocupa o 4º lugar da lista com responsabilidade estimada em 5,5% em relação aos 2 milhões de anos considerados. O álcool ocupa a primeira posição com prejuízo de 47%, seguido dos Opióides (24,3%) e Anfetaminas (7%). Estudos transversais falharam em correlacionar o uso de Cannabis a condições médicas graves e morte por doenças. Por outro lado, o uso de Cannabis está associado a um aumento do risco de acidentes  com veículos. 

Correlações entre o uso de Cannabis e o desenvolvimento de morbidades psiquiátricas são fortemente discutidas. A relação com o desenvolvimento de Esquizofrenia talvez seja a mais bem estabelecida, apesar de não haver ainda compreensão fisiopatológica do fenômeno – mais frequente em usuários que iniciaram consumo na adolescência. Em relação à exposição juvenil à Cannabis como fator de risco para desenvolvimento de esquizofrenia, questiona-se se é em função da relação de dose-exposição ou alguma outra particularidade da faixa etária. Já em relação ao desenvolvimento de Transtornos do Afeto, os estudos falham pela falta de explorar com maior precisão o que causa o que.

Não obstante, a cessação abrupta após consumo crônico de Cannabis pode cursar com sintomas de abstinência como irritabilidade, Ansiedade, depressão, inquietação, dificuldade para dormir (por exemplo, insônia, sonhos vívidos ou perturbadores, diminuição do apetite ou perda de peso, dor abdominal, tremores, sudorese, febre ou calafrios, dor de cabeça.

O que fazer ao me deparar com o “transtorno por uso de Cannabis”?

A “US Preventive Services Task Force” recomenda rastreio por meio de questionamentos simples e direcionados para todas as pessoas com mais de 18 anos de idade em relação ao uso de drogas. Assim, enquanto profissional de saúde, você pode oferecer tratamento ou encaminhar o paciente para cuidados especializados. No caso do Transtorno Por Uso de Cannabis, as modalidades de tratamento mais utilizadas são a Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e a Terapia de Aprimoramento Motivacional (TAM). Estudos sobre o uso de fármacos no tratamento do transtorno por uso de Cannabis ainda estão sendo realizados.

Se você é uma pessoa que sofre do transtorno por uso de Cannabis, procure ajuda.

O objetivo do tratamento pode ser a abstinência total ou a retomada de um padrão de vida funcional, com redução do consumo da substância e ressignificação de hábitos/valores. 

Esse é um texto feito com propósitos exclusivamente científicos, sem juízo de valor ou apologia em relação ao uso de cannabis.

Autor: Vinícius Nunes Soares

@vinicius_n.s 


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências bibliográficas:

Screening for Unhealthy Drug Use US Preventive Services Task Force Recommendation Statement – https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2766873

A HISTÓRIA DA MACONHA, A DROGA MAIS POLÊMICA DO MUNDO – https://psicodelia.org/noticias/a-historia-da-maconha-a-droga-mais-polemica-do-mundo/

Cannabis use disorder in adults – https://www.uptodate.com/contents/cannabis-use-disorder-in-adults?search=cannabis%20use%20disorder&source=search_result&selectedTitle=1~75&usage_type=default&display_rank=1#H3189237810  

Cannabis use and risk of psychotic or affective mental health outcomes: a systematic review – https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(07)61162-3/fulltext

Cannabis use and disorder: Epidemiology, comorbidity, health consequences, and medico-legal status – 

https://www.uptodate.com/contents/cannabis-use-and-disorder-epidemiology-comorbidity-health-consequences-and-medico-legal-status?search=cannabis%20use%20disorder&source=search_result&selectedTitle=2~75&usage_type=default&display_rank=2#H2829470397

Cannabis use and disorder in adults: Pathogenesis, pharmacology, and routes of administration – https://www.uptodate.com/contents/cannabis-use-and-disorder-in-adults-pathogenesis-pharmacology-and-routes-of-administration?search=cannabis%20use%20disorder&source=search_result&selectedTitle=3~75&usage_type=default&display_rank=3#H1282544564

Cannabis withdrawal: Epidemiology, pathogenesis, clinical manifestations, course, assessment, and diagnosis – https://www.uptodate.com/contents/cannabis-withdrawal-epidemiology-pathogenesis-clinical-manifestations-course-assessment-and-diagnosis?search=cannabis%20use%20disorder&topicRef=109802&source=see_link#H1199129934

Drug misuse prevention – https://www.nice.org.uk/guidance/qs165

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