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Resumos: anemia ferropriva na criança | Ligas

Resumos: anemia ferropriva na criança | Ligas

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Anemia ferropriva é a redução na quantidade de hemoglobina sanguínea devido à carência de ferro e é considerada o principal tipo de anemia nutricional. Ela acontece devido à manutenção de um quadro com maior demanda que oferta desse nutriente, levando ao esgotamento das reservas orgânicas.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a anemia é um grave problema de saúde que leva, inclusive, a impactos sociais e econômicos, pois, além de afetar o desenvolvimento cognitivo e motor de crianças, também causa fadiga e redução na produtividade. Além disso, quando ocorre durante a gravidez, pode se relacionar com baixo peso ao nascer dos recém-nascidos, podendo aumentar a mortalidade materna e perinatal.

 Apesar de possuir ampla distribuição mundial, com cerca de um terço da população mundial atingida, a anemia ainda é uma doença que acomete principalmente países em desenvolvimento e de menor renda.

Ainda segundo a OMS, os grupos mais vulneráveis são crianças, especialmente as menores de 2 anos de idade -possuem maior demanda por ferro devido ao rápido crescimento e desenvolvimento nessa faixa etária -, idosos e mulheres em idade reprodutiva, pois  elas, além de perderem sangue regularmente através da menstruação, durante a gravidez aumentam a demanda por ferro.

Fisiopatologia    

O ferro é um mineral muito importante para a homeostase e sua deficiência compromete a produção de hemoglobina, o que leva à redução na oxigenação tecidual. As principais fontes para obtenção do ferro são a dieta e o próprio metabolismo de hemácias senescentes.

É importante destacar que a anemia ferropriva é uma consequência tardia da deficiência de ferro e, para maior compreensão dessa doença é preciso saber sobre a função, absorção e metabolismo desse mineral.

Para ocorrer formação de hemoglobina (Hb), o ferro se combina com protoporfirina IX e forma o grupo HEME que, por sua vez, combina-se com o polipeptídeo globina formando a subunidade da Hb e, então, quatro subunidades se ligam para formar a molécula completa. Sendo assim, em uma molécula há quatro átomos de ferro que podem, cada um, se ligar a uma molécula de oxigênio para ser transportada pela circulação sanguínea. Adicionalmente, esse elemento também é importante na formação de mioglobina, de citocromos, de citocromo oxidase, de peroxidase e de catalase.

A quantidade de ferro no corpo é cerca de 4 a 5 gramas sendo que 65% estão em forma de Hb e 15% a 30% estão armazenados no sistema reticuloendotelial e no fígado principalmente na forma de ferritina.

Esse nutriente é absorvido no intestino delgado e se combina com a apotransferrina (que é uma beta globulina) e forma a transferrina, que vai ser levada pelo plasma. Essa ligação é frouxa e, por isso, o ferro pode ser liberado para qualquer célula do corpo, mas seu excesso é depositado principalmente nos hepatócitos. No espaço intracelular ele é combinado com apoferritina e forma a ferritina, que é considerada o “ferro de depósito”.  Já nos eritroblastos, a transferrina libera o ferro para as mitocôndrias, que é onde ocorre a síntese do grupo HEME.

Após cerca de 120 dias as hemácias senescentes são destruídas e a Hb liberada é fagocitada por monócitos e macrófagos. Com isso, o ferro é liberado e irá formar novamente depósitos em forma de ferritina até que seja necessária produção de mais moléculas de Hb.

Dito isso, é importante salientar que a anemia ferropriva ocorre principalmente quando os estoques de ferro são esgotados e a ingestão desse nutriente não é suficiente para todas essas reações metabólicas acontecerem ou quando há perdas sanguíneas gastrointestinais, parasitoses intestinais, refluxo gastroesofágico e outras condições que predisponham a maior perda desse elemento. Assim, pode-se entender o motivo pelo qual crianças menores de 2 anos estão no grupo de risco dessa doença, uma vez que o crescimento corpóreo exige maior demanda de ferro para a rápida expansão da massa eritrocitária nesse período.

Quadro clínico

O quadro clínico depende do estágio da doença. Na fase de deficiência de ferro, pode ocorrer nas crianças uma queda na curva de peso, dificuldade de atenção e maior susceptibilidade a infecções devido à redução da capacidade imune. Com o passar do tempo, essa deficiência pode reduzir a mielinização e prejudicar a cognição levando a atrasos no desenvolvimento da linguagem, do desenvolvimento motor e do equilíbrio.

Alguns sintomas são comuns quando se trata de um quadro de anemia ferropriva. São eles: palidez cutâneo-mucosa, irritabilidade, fadiga e perversão do apetite com geofagia e/ou pagofagia. Além disso, podem ocorrer achados ao exame físico, como escleras azuladas, queilose, papilas linguais hipotróficas e sopros cardíacos leves.

Diagnóstico

O diagnóstico da anemia ferropriva baseia-se no quadro clínico apresentado pela criança juntamente com exames laboratoriais que irão confirmar o quadro anêmico. Porém, as manifestações clínicas da deficiência de ferro, bem como a anemia propriamente dita, dependem do estágio de depleção desse micronutriente e são os exames laboratoriais específicos que proporcionarão o diagnóstico de cada um desses estágios.

O primeiro estágio consiste na depleção de ferro, na qual há diminuição do depósito dessa substância no baço, fígado e medula óssea, sendo diagnosticada pela ferritina sérica (principal exame para avaliar a reserva de ferro). Entretanto, a ferritina sofre influência quando há doenças hepáticas, bem como processos infecciosos e inflamatórios, logo, deve-se estar atento a essas condições ao solicitar esse exame.

Os valores de ferritina que indicam depleção da reserva corporal de ferro são:  

  • inferiores a 12μg/L em crianças menores de 5 anos;
  •  inferiores a 15μg/L na faixa etária dos 5 a 12 anos.

O segundo estágio é determinado pela deficiência de ferro, no qual há redução do ferro sérico (valores menores que 30mg/dl), aumento da capacidade total de ligação da transferrina (>250-390μg/dl) e a diminuição da saturação da transferrina (<16%).

O terceiro e último estágio de deficiência de ferro seria a anemia ferropriva, em que os valores de hemoglobina seriam menores que 11g/dl para crianças de 6 a 60 meses e 11,5g/dl para crianças de 5 a 11 anos de idade. Além da hemoglobina, o hematócrito também está alterado e seus valores encontram-se abaixo dos valores de normalidade sendo valores abaixo de 33% para crianças de 6 a 60 meses e 34% para crianças de 5 a 11 anos de idade. Porém, atualmente utiliza-se com maior frequência as variações da hemoglobina conforme a idade, com os intervalos aceitáveis.

Além do hemograma, a presença de leucopenia, plaquetose (podendo atingir níveis de 700 a 800.000/mm³) e a contagem de reticulócitos podem indicar a anemia, sendo este último relacionado a eritropoese e é indicador precoce de anemia ferropriva e déficit de hemoglobinização, em que a referência para crianças é de 0,5% a 2% de valor relativo, e de 25000-85000/mm3 do valor absoluto.  Classicamente, a anemia ferropriva se manifesta por hipocromia, com o HCM (Hemoglobina Corpuscular Média) abaixo de 25 pg, associada na maioria da vezes à microcitose, com VCM (Volume Corpuscular Médio) menos que 75 fl. O RDW (Red Cell Distribution Width), que indica o grau de anisocitose da amostra de sangue examinada, sugere fortemente anemia ferropriva quando seu valor é superior a 20%.

O exame parasitológico de fezes pode ser necessário na suspeita de verminoses que levam a espoliação sanguínea, como necatoríase e esquistossomose. A pesquisa de sangue oculto nas fezes tem muita validade na suspeita de hemorragia em lactantes que fazem uso de leite de vaca e nas crianças maiores suspeitas de lesões hemorrágicas no trato gastrointestinal.

Tratamento

O tratamento da anemia ferropriva baseia-se na reposição de ferro por via oral, na orientação nutricional para consumir alimentos fonte desse micronutriente e na identificação da etiologia da anemia. Na grande maioria das vezes, a etiologia configura-se pela velocidade de crescimento aumentada, necessitando de um maior aporte de ferro, em conjunto com uma dieta inadequada em ferro, além do desmame precoce, fatores aos quais levam a alta prevalência desse tipo de anemia nos dois primeiros anos de vida.

A dose terapêutica de ferro elementar é de 3 a 5 mg/kg/dia, fracionado ou em dose única, antes das refeições, por no mínimo 8 semanas. A suplementação deve continuar por um período entre dois a seis meses ou até se obter um valor de ferritina sérica acima de 15μg/dL, a fim de repor os estoques de ferro, sendo de suma importância que o valor de ferritina sérica se mantenha entre 30 e 300 μg/dL, a fim de se evitar um novo quadro de anemia. Deve-se monitorar o quadro por meio de parâmetros laboratoriais de reticulócitos, hemograma completo a cada 30 a 60 dias. Além disso, deve-se realizar a dosagem de marcadores do estoque de ferro (ferritina) com 30 e 90 dias.

Atualmente, utiliza-se os sais de ferro para corrigir a hemoglobina e repor os estoques desse micronutriente. Tais medicamentos são de baixo custo e rápida absorção, apesar de terem uma baixa adesão pelos sintomas adversos que causam frequentemente, como náuseas, vômitos, gosto metálico, diarreia ou constipação. Apesar dos efeitos adversos, o Ministério da Saúde tem o sulfato ferroso como composto de escolha para os programas de suplementação profilática de ferro no Sistema Único de Saúde.

Caso a anemia seja grave e não foi obtido sucesso com a suplementação via oral, a reposição parenteral de ferro é recomendada. Outras situações podem exigir a necessidade de reposição parenteral, como perdas sanguíneas, doenças inflamatórias, quimioterapia.

Com relação à orientação nutricional, é necessário que ela seja baseada no estímulo ao aleitamento materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida, bem como ao aleitamento complementar até os 2 anos de vida. Além disso, faz-se necessário: contraindicar o consumo de leite e derivados e outros fatores antinutricionais concomitante às refeições da criança anêmica; orientar adequadamente o início da alimentação complementar; realizar o aconselhamento dietético por um nutricionista para orientar as famílias e avaliar adequadamente os grupos de risco para anemia ferropriva, como os vegetarianos e crianças menores de um ano que recebem o leite de vaca in natura ou a fórmula inadequada, pois nesses grupos há a necessidade de avaliar de modo precoce a suplementação de ferro.

É importante frisar que desde junho de 2018 a Sociedade Brasileira de Pediatria orienta a suplementação profilática de 1mg de ferro elementar/kg/dia dos 3 aos 24 meses de idade – que antes se iniciava somente aos 6 meses de idade – para recém-nascidos a termo, de peso adequado para a idade gestacional e independente do tipo de aleitamento. Porém, a dose e o início dessa suplementação variam conforme a prematuridade e o peso ao nascer.