Apresentação do caso clínico
Paciente do sexo feminino, 16 anos, branca,
estudante, procedente e residente de Salvador, Bahia. Procura o ambulatório de ginecologia com queixa de dor na
região pélvica que vai e volta há 8 meses. Relata que essa dor esta associada
ao seu período menstrual se iniciando algumas horas antes de ocorrer o fluxo
sanguíneo com intensidade variante. Afirma náuseas, vômitos e fadiga durante
esse período. Afirma ter também tontura e cefaleia intensa que está sempre
antecedendo o quadro de dor já citada. Relata menarca aos 14 anos e sexarca aos
16 anos, tem vida sexual ativa com um parceiro fixo – seu namorado há 4 meses-
porem não faz uso de anticoncepcional oral pois sua mãe não permite, usando o
preservativo masculino como o único
método contraceptivo.
Ao exame físico a paciente se encontrou em bom estado geral, lucida e
orientada no tempo e no espaço, eupnéica (22 ipm), normotensa (120×80 mmHg),
eucardica (80 bpm), acianótica, anictérica, hidratada, afebril ( 36,7ºC). Sem
alterações nos sistemas cardiovascular, respiratório, e digestório. Na inspeção
das mamas ausência de erupções, descamações, assimetria, proeminências venosas,
massas visíveis ou depressões. Mamilos protusos, sem secreção mamilar. Na
palpação das mamas não foram encontrados achados clínicos relevantes. Já no exame
ginecológico foi verificado forma adequada do períneo, da distribuição dos
pelos, e a conformação externa da vulva. Introito vaginal palpado e sem alterações
ou dor a palpação. Manobra de Valsalva realizada e sem achados para
incontinência urinária ou prolapsos genitais. Sem demais achados no exame
físico.
Foi solicitado que a paciente realizasse exames laboratoriais para
confirmação do diagnóstico como: NAAT negativo, Hemograma completo normal, VHS
normal (15 mm) e Beta hCG negativo (2 mlU/ml). Além disso, foi solicitada uma
US pélvica que não mostrou alterações.
Pela anamnese, exame físico geral e exames laboratoriais além da
exclusão de doença pélvica de base e confirmação da natureza cíclica da dor foi
estabelecido o diagnóstico de Dismenorreia primária, ou seja, a dor menstrual
sem doença pélvica.
Questões
para orientar a discussão
- O que é e como podemos
classifica-la? - Qual a
etiologia da dismenorreia primária? - Qual a fisiopatologia da
dismenorreia primária? - Como podemos fazer o
diagnóstico diferencial entre dismenorreia primária e secundária? - Como é feito o tratamento?
Respostas
- Podemos definir dismenorreia como
dor pélvica, tipo cólica, espasmódica, crônica, cíclica e intensa que se
manifesta no período pré ou intermenstrual. Habitualmente inicia-se no abdômen
inferior, podendo irradiar-se para a região lombar e face interna das coxas. É
importante classificar a dismenorreia em primária (também chamada de funcional),
ou em secundária. A dismenorreia primária é caracterizada como uma dor cíclica,
crônica, sem patologia associada, sendo mais comum o seu início logo após a
menarca. Já a dismenorreia secundária compreende em torno de 5% dos casos, e é
associada a outros sintomas ginecológicos (como dispareunia, disúria,
infertilidade), e, principalmente, a outra doença de base, como leiomiomas,
DIP, adenomiose, pólipos, e, principalmente, endometriose. Podemos utilizar um
score verbal multidimensional para avaliar o grau de dor da dismenorreia da
paciente. Essa classificação perpassa o grau 0, sendo ausência de sintomas de
dor, até o grau 3, sendo esse a classificação de dor severa.
Grau | Capacidade para o trabalho | Sintomas sistêmicos | Analgesia |
Grau 0: menstruação sem dor | Normal | Nenhum | Não necessária |
Grau 1: menstruação com dor leve | Raramente afetada | Nenhum | Raramente necessária |
Grau 2: menstruação com dor moderada |
Moderadamente afetada. Absenteísmo incomum |
Poucos |
Necessária, com boa resposta |
Grau 3: menstruação com dor severa | Marcadamente afetada |
Importantes: cefaleia, fadiga, vômitos, diarreia |
Necessária, mas com pequena resposta |
Fonte: adaptada de FREITAS F. Rotinas em Ginecologia. 7ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2017 |
- Até nos dias de hoje, a etiologia da
dismenorreia primária ainda não foi totalmente esclarecida. De acordo com
alguns estudos, não há distinção na prevalência da dismenorreia primária em
relação à raça e status econômico. Para tanto, a gravidade da dor pode estar
relacionada à: idade jovem; menarca precoce; fluxo menstrual intenso ou
prolongado; distúrbios psicológicos (como ansiedade e depressão); maior índice
de massa corporal (IMC); tabagismo, e, principalmente, a influência genética.
A prevalência da dismenorreia em adolescentes oscila entre 60-70%, e apenas 10%
dessas mulheres apresentam alguma anormalidade que justifique a presença do
sintoma (dismenorreia secundária).
- Ainda não há consenso sobre como se dá a
fisiopatologia da dismenorreia primária, porém, a teoria mais aceita tem como
base o aumento no nível de prostaglandinas. Logo após a queda dos níveis de
progesterona ao final do período ovulatório, a cascata de prostaglandinas tem o
seu início, a partir da via do ácido araquidônico. Essas prostaglandinas (PGE2,
PGD e PGF2-alfa) são armazenadas nos lisossomos das células endometriais, e,
durante a descamação endometrial, essas células liberam as prostaglandinas no
inicio da menstruação. Dessa forma, essas substancias ficam responsáveis pela
vasoconstrição das arteríolas miometriais, estimulação das contrações
miometriais exageradas e descoordenadas com consequente isquemia e dor.
- O diagnóstico da dismenorreia primária é
essencialmente clínico, e, por isso a importância de uma anamnese e exame
físico bem feitos. Na anamnese, é necessário atentar-se para idade da paciente,
e principalmente as características da dor; já que na dismenorreia primária ocorre
entre 8 e 72 horas, possuindo relação com o início do fluxo menstrual. Podemos
suspeitar de dismenorreia secundária quando a paciente possui mais de 30 anos,
sendo que a sua queixa principal, na maioria das vezes é a mudança no início e
na intensidade da dor. Além disso, a paciente pode apresentar sinais e sintomas
como infertilidade, fluxo menstrual intenso ou irregular, ausência de resposta ao
tratamento da dor com AINEs ou contraceptivos hormonais. No exame físico, é
importante tentar identificar qualquer alteração compatível com um problema
orgânico, como anomalia congênitas, massas tumorais e cicatrizes cirúrgicas. A
solicitação de exames complementares se faz necessário quando é preciso afastar
causas de dismenorreia secundária, e os mais utilizados são: ultrassonografia
endovaginal, histerossalpingografia, tomografia computadorizada, ressonância
magnética, histeroscopia e laparoscopia e marcadores séricos. Dentre os
marcadores séricos, o mais usado é o CA-125, que se apresenta aumentado
principalmente em endometriose, mioma uterino e câncer de ovário. Para
descartar endometriose – pois é uma das principais causas de dismenorreia
secundária em adolescentes e mulheres adultas – a laparoscopia é bastante
utilizada, pois permite o diagnóstico e o tratamento quando possível e
necessário. - O
manejo adequado da terapia da dismenorreia precisa considerar os sintomas
durante a crise, mas também a profilaxia. Para a dismenorreia primária, pode
ser utilizado o controle da dor por meio de AINEs (por conta sua gênese a
partir da liberação de prostaglandinas). Para o seu uso, é importante começar a
utilizar de 2 a 3 dias antes do fluxo menstrual, e só finalizar após o fim da
menstruação. No caso da nossa paciente, poderia ser instituído Ibuprofeno 400
mg de 6 em 6 horas de 2 dias antes do fluxo menstrual até o seu término, por no
mínimo 3 meses. Caso não houvesse melhora, poderíamos pensar em analgésicos
mais potentes, como o Naproxeno sódico ou o Ácido mefenâmico. Também pode ser
usado contracepção hormonal esteroide, com método oral combinado (estrogênio +
progesterona), ou somente com uso do progestágeno. Além disso, o uso de Mirena®, e a injeção de acetato de
medroxiprogesterona de depósito e os bastões implantados para liberação de
progestogênio também demonstraram efetividade no tratamento. Uma outra forma de
tratamento é com agonistas do hormônio liberador da gonadotrofina e
androgênios, os quais possuem efeitos redutores do estrogênio que levam a
atrofia endometrial e redução na produção de prostaglandina; porém, é
necessário cuidado com o seu efeito a longo prazo por conta de efeitos
colaterais. O uso de terapias integrativas e complementares como tratamento
não-farmacológico ainda não possuem evidencias cientificas suficientes, mas
estudos sobre exercícios, calor tópico, acupuntura e estimulação nervosa
elétrica transcutânea (TENS) tem se mostrado promissores. A cirurgia é
reservada para casos que possuem refratariedade aos outros tratamentos,
sendo indicada a histerectomia. Porém, muitas vezes pode ser rejeitada pelas
pacientes as quais querem manter a fertilidade. É válido salientar que na
ausência de resposta a um tratamento clinico adequado e mantido por 3 a 6
meses, sugere–se investigação para dismenorreia secundaria, com exames já
descritos anteriormente. Para o tratamento da dismenorreia secundária, é
necessário o tratamento da doença de base para alivio dos sintomas.