Ciclo Clínico

RIP Aspirina? Tudo o que você precisa saber sobre o uso de ácido acetilsalicílico (AAS) | Colunistas

RIP Aspirina? Tudo o que você precisa saber sobre o uso de ácido acetilsalicílico (AAS) | Colunistas

Compartilhar
Imagem de perfil de Comunidade Sanar

 

An aspirine a day keeps the doctor away”. No mercado desde 1899, o ácido acetilsalicílico (AAS) é a droga antitrombótica mais prescrita do mundo. Foi em 1950 que Lawrence Craven, um clínico geral, presidente do Glendale Optimist Club, publicou o primeiro trabalho sobre os benefícios cardiovasculares do uso da aspirina: ele simplesmente observou que nenhum dos seus 400 pacientes infartou em um pequeno follow-up de 2 anos.

A prevenção primária de infarto agudo do miocárdio e outros eventos cardiovasculares, ou seja, evitar que uma pessoa saudável tenha um infarto, tinha na aspirina o seu principal representante. Tinha, não tem mais. E isso tudo por causa da medicina baseada em evidências.

Prevenção primária – um apanhado geral

Entre 1998 e 2005, alguns estudos, entre eles a famosa metanálise do Antithrombotic Trialists (ATT) (1), evidenciaram redução significativa, mas não expressiva, de eventos cardiovasculares em pacientes de alto risco cardiovascular segundo calculadoras de risco (importante: nenhum estudou evidenciou redução de mortalidade por todas as causas). Baseado nisso, os guidelines das principais sociedades do mundo adotaram a prescrição de aspirina para essa classe de pessoas – alto risco cardiovascular, ou seja, diabéticos, hipertensos, obesos, portadores de síndrome metabólica, tabagistas, etc.

Entretanto, o risco de sangramento pelo uso da aspirina não é desprezível, pelo contrário, é pior do que imaginamos: o já clássico AVERROES (2011) (2) mostrou que 81-324 mg por dia de aspirina apresentam o mesmo risco de sangramento da apixabana, um anticoagulante oral inibidor do fator Xa. Esse risco de sangramento deixou uma pulga atrás da orelha de cientistas que não consideraram o assunto encerrado: e se o risco de sangramento for maior que o benefício de redução de eventos cardiovasculares?

De 2008 em diante, os estudos de prevenção primária já foram menos animadores e fizeram as diretrizes americanas de 2016 (USPSTF) (3) darem um passo para trás e recomendar a aspirina para prevenção cardiovascular e de câncer colorretal em adultos de 50-59 anos com mais de 10 anos de expectativa de vida. O uso na população de 60-69 anos também foi indicado com grau de recomendação menor. A diretriz europeia (ESC) de prevenção primária de 2016 (4) foi ainda mais taxativa: aspirina é contra-indicada para prevenção primária cardiovascular.

O jogo já não estava bom para a aspirina. Eis que o ano de 2018 veio para praticamente sepultar essa droga em prevenção primária. Neste ano, foram lançados três importantes estudos, o ARRIVE (5), o ASCEND (6), e o ASPREE (7).

No ARRIVE, 100 mg por dia em pacientes com risco intermediário não reduziram eventos cardiovasculares combinados. Sangramento gastrointestinal, por sua vez, foi mais de 2x mais frequente entre os usuários da aspirina. Para aqueles que entendem um pouco mais de medicina baseada em evidências, esse foi um trial com grande cross-over entre os grupos, o que reduz o poder estatístico do estudo.

No ASCEND, a população estudada foi a diabética. Já já voltaremos a falar deles.

No ASPREE, indivíduos saudáveis com mais 70 anos usavam 100 mg por dia de aspirina. Não houve redução de eventos cardiovasculares, infarto ou AVC isquêmico ao fim do follow-up que foi de 4,7 anos. O aumento de sangramento, entretanto, foi substancial (38%) e mais importante: houve ainda aumento da mortalidade por todas as causas nesse estudo (14%), em particular por câncer colorretal. Isso mesmo que você leu. Quem usava aspirina morreu mais frequentemente por câncer colorretal do que quem não usava. Voltaremos a falar disso logo mais.

Uma metanálise realizada, incluindo esses três estudos, demonstrou que a aspirina evita 1 evento cardiovascular a cada 265 usuários em 10 anos de tratamento! Pra quem não sabe, esse é o famoso NNT (number needed to treat). O NNH (number needed to harm, ou o número de pessoas que terão um evento adverso entre os que usam a droga) foi de 210 para sangramento intracraniano (AVC hemorrágico) e gastrointestinal. Em diabéticos, o NNT foi de 153 e o NNH foi de 121 (8).

Vamos interpretar os números do parágrafo acima. A cada 210 pessoas que usam aspirina, uma vai ter um AVC hemorrágico ou sangramento gastrointestinal em 10 anos. A cada 256 pessoas, um evento cardiovascular será evitado em 10 anos. Percebem que a droga, à luz desses novos estudos causa mais risco que benefício?

Em 2019, a Diretriz de Prevenção Primária da ACC/AHA (9) publica indicação de aspirina para pacientes de 40 a 70 anos com alto risco cardiovascular, mas com baixo risco de sangramento como classe IIb. Classe IIb significa “benefício incerto”, em outras palavras, “assuma o risco”. Fica como classe III de indicação (ou seja, contra-indicado) em pacientes acima de 70 anos ou com alto risco de sangramento. Não há, na diretriz, indicações classe IIa e classe I. Fechou-se o caixão da aspirina.

Prevenção primária no diabético

A diretriz americana de diabetes (ADA) (10), publicada em janeiro de 2018, recomendou aspirina em prevenção primária, ou seja, diabéticos que ainda não sofreram eventos cardiovasculares, para doentes com risco cardiovascular aumentado, isto é, basicamente qualquer homem ou mulher diabéticos tipo 1 ou tipo 2 com mais de 50 anos e que tenha pelo menos um outro fator de risco, por exemplo, hipertensão ou obesidade. Vamos trocar em miúdos? Praticamente todos os diabéticos. Está ainda é a diretriz vigente da ADA.

O ASCEND, o tal estudo com diabéticos, foi lançado em outubro de 2018, ou seja, posterior à diretriz da ADA e antes da diretriz da ACC/AHA. Esse estudo demonstrou um risco 12% menor de eventos cardiovasculares, mas um risco 29% maior de sangramento maior (AVC hemorrágico, sangramentos gastrointestinal e ocular com risco de perda de visão).

Foi isso que fez a ACC/AHA omitir os diabéticos do seu texto – prevenção primária é no máximo um “benefício incerto, use por sua conta e risco” como já citado. A diretriz da ADA está desatualizada nesse quesito, pois foi lançada antes do ASCEND.

Prevenção primária de câncer colorretal

Prevenção primária é evitar que um indivíduo adquira câncer colorretal. A maior parte da evidência usada pelas diretrizes da USPSTF para recomendar o uso desta droga no intuito de prevenção de câncer colorretal vem de estudos que não tinha como objetivo avaliar a incidência de câncer, mas de eventos cardiovasculares (ou seja, os que citamos acima). Para um bom entendedor de medicina baseada em evidências meia palavra basta: essa é uma metodologia de pouca confiabilidade. A metanálise desses estudos (traduzindo, a avaliação conjunta de vários estudos cuja metodologia não foi para este fim) demonstrou redução de 20% na mortalidade por todos os cânceres com maior benefício após 5 anos de uso. A redução de cânceres colorretal e esofágico foi particularmente importante (11).

Ok, mas aí veio o ASPREE, mais um estudo não desenhado para avaliar incidência de câncer, mas que demonstrou maior mortalidade com o uso da aspirina, principalmente pela maior incidência de câncer colorretal!

Sugestão para os oncologistas de plantão: favor, conduzir um trial a respeito.

AAS na prevenção secundária

Prevenção secundária é o seguinte: o indivíduo já infartou ou teve um evento cardiovascular. Agora eu quero evitar um segundo evento.

A má notícia é que os grandes trials são da década de 80, por exemplo, o clássico ISIS-2 (1988). Os já citados “trialists” (ATT) também realizaram metanálises desses estudos e demonstraram redução de eventos cardiovasculares sérios nessa população. O problema é que na década de 80, não tínhamos algumas coisas que hoje são nosso dia-a-dia: estatinas, tratamento moderno da insuficiência cardíaca, das arritmias, não tínhamos stents, a trombólise estava engatinhando! Como a prevenção primária nos mostrou, novos tempos requerem novos estudos.

Pelo menos no contexto de prevenção secundária de eventos cardíacos em pacientes com fibrilação atrial que já infartaram, um assunto que, este sim, está em voga na comunidade científica, a aspirina também já está sendo abandonada (vide estudos AUGUSTUS, RE-DUAL PCI e PIONEER-AF) (12–14).

Conclusão

As novas diretrizes das sociedades de Cardiologia americana (ACC/AHA) e europeia (ESC) de prevenção primária são claras: o uso da aspirina para prevenção de infarto ou outro evento cardiovascular deve ser exceção, e não regra. Talvez o indivíduo que mais se beneficie desta droga seja o diabético com alto risco cardiovascular e baixo risco de sangramento. Por alto risco cardiovascular, acredito que o uso de parâmetros objetivos, como o score de cálcio por tomografia computadorizada, deve ser preferível à avaliação puramente clínica ou por calculadoras.

Em prevenção secundária, a aspirina ainda respira. Mas isso, porque os cientistas ainda não desarquivaram esse assunto – ainda.

REFERÊNCIAS

1.          Baigent C, Blackwell L, Collins R, Emberson J, Godwin J, Peto R, et al. Aspirin in the primary and secondary prevention of vascular disease: collaborative meta-analysis of individual participant data from randomised trials. Lancet (London, England). 2009 May;373(9678):1849–60.
2.          Connolly SJ, Eikelboom J, Joyner C, Diener H-C, Hart R, Golitsyn S, et al. Apixaban in Patients with Atrial Fibrillation. N Engl J Med [Internet]. 2011 Feb 10;364(9):806–17. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1007432
3.          Final Recommendation Statement: Aspirin Use to Prevent Cardiovascular Disease and Colorectal Cancer: Preventive Medication. US Prev Serv Task Force. 2016;
4.          Piepoli MF, Hoes AW, Agewall S, Albus C, Brotons C, Catapano AL, et al. 2016 European Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice: The Sixth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and Other Societies on Cardiovascular Disease Prevention in Clinical Practice (constituted by representatives of 10 societies and by invited experts)Developed with the special contribution of the European Association for Cardiovascular Prevention & Rehabilitation (EACPR). Eur Heart J [Internet]. 2016 May 23;37(29):2315–81. Available from: https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehw106
5.          Gaziano JM, Brotons C, Coppolecchia R, Cricelli C, Darius H, Gorelick PB, et al. Use of aspirin to reduce risk of initial vascular events in patients at moderate risk of cardiovascular disease (ARRIVE): a randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet [Internet]. 2018 Sep 22;392(10152):1036–46. Available from: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)31924-X
6.          Effects of Aspirin for Primary Prevention in Persons with Diabetes Mellitus. N Engl J Med [Internet]. 2018 Aug 26;379(16):1529–39. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1804988
7.          McNeil JJ, Nelson MR, Woods RL, Lockery JE, Wolfe R, Reid CM, et al. Effect of Aspirin on All-Cause Mortality in the Healthy Elderly. N Engl J Med [Internet]. 2018 Sep 16;379(16):1519–28. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1803955
8.          Zheng SL, Roddick AJ. Association of Aspirin Use for Primary Prevention With Cardiovascular Events and  Bleeding Events: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA. 2019 Jan;321(3):277–87.
9.          K. AD, S. BR, A. AM, B. BA, D. GZ, J. HE, et al. 2019 ACC/AHA Guideline on the Primary Prevention of Cardiovascular Disease. Circulation [Internet]. 2019 May 10;0(0):CIR.0000000000000678. Available from: https://doi.org/10.1161/CIR.0000000000000678
10.        9. Cardiovascular Disease and Risk Management: Standards of Medical Care in Diabetes—2018. Diabetes Care [Internet]. 2018 Jan 1;41(Supplement 1):S86 LP-S104. Available from: http://care.diabetesjournals.org/content/41/Supplement_1/S86.abstract
11.        Rothwell PM, Wilson M, Elwin C-E, Norrving B, Algra A, Warlow CP, et al. Long-term effect of aspirin on colorectal cancer incidence and mortality: 20-year follow-up of five randomised trials. Lancet (London, England). 2010 Nov;376(9754):1741–50.
12.        Lopes RD, Heizer G, Aronson R, Vora AN, Massaro T, Mehran R, et al. Antithrombotic Therapy after Acute Coronary Syndrome or PCI in Atrial Fibrillation. N Engl J Med [Internet]. 2019 Mar 17;380(16):1509–24. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1817083
13.        Cannon CP, Bhatt DL, Oldgren J, Lip GYH, Ellis SG, Kimura T, et al. Dual Antithrombotic Therapy with Dabigatran after PCI in Atrial Fibrillation. N Engl J Med [Internet]. 2017 Aug 27;377(16):1513–24. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1708454
14.        Gibson CM, Mehran R, Bode C, Halperin J, Verheugt FW, Wildgoose P, et al. Prevention of Bleeding in Patients with Atrial Fibrillation Undergoing PCI. N Engl J Med [Internet]. 2016 Nov 14;375(25):2423–34. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1611594