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No dia 17 de março de 2020, São Paulo registrou a primeira morte pelo vírus SARS-CoV-2 e, no país, já havia mais de 200 casos de COVID (além de 214 mil casos no mundo). Também a partir dessa data começaram a ser implantadas diversas medidas em todas as regiões do Brasil para impedir o aumento desenfreado de novas infecções (suspensão de aulas em escolas e universidades, fechamento de centros culturais, fechamento de teatros e cinemas, redução de jornadas de trabalho, distanciamento social, fechamento de serviços não essenciais).
O isolamento social, com o objetivo de conter aglomerações (e consequentemente novas infecções), ressaltou ou fez emergir uma série de problemas na área da saúde mental. Saúde mental, segundo definições da Organização Mundial da Saúde (OMS), consiste em um estado de bem-estar no qual um indivíduo realiza suas próprias habilidades, pode lidar com o estresse normal da vida, trabalhar produtivamente e é capaz de contribuir com sua comunidade.
Os problemas dessa ordem interferem no humor e comportamento, abuso de substâncias psicoativas, violência doméstica, relações e laços familiares. Podendo, a curto ou longo prazo, culminar em prejuízos ainda maiores.
Mudança no comportamento humano
O mundo viveu um momento de ruptura e, em sequência, reinvenção das atividades e relações pessoais e profissionais. O home office se tornou uma realidade, o fechamento de restaurantes aumentou a demanda dos sistemas de delivery, as aulas passaram a ser remotas, sair de casa envolve uma série de cuidados (uso de máscara, uso de álcool em gel, higienização de produtos comprados), redução de horários de algumas atividades. Todas essas mudanças fizeram com que o tempo dentro dos lares aumentasse, as rotinas se quebrassem, opções de lazer diminuíssem e o contato físico com outras pessoas se tornasse escasso.
O isolamento social já foi prática adotada para evitar o contágio de, por exemplo, a hanseníase (Mycobacterium leprae). É comum encontrar relatos, até mesmo religiosos, sobre o distanciamento e aversão ao grupo de infectados. Mesmo quando surgiu a cura, o isolamento havia causado uma ruptura dos laços sociais, estrutura fundamental para a humanidade e para a estabilidade nas relações humanas.
A prática do isolamento também pode ser observada nas instituições psiquiátricas do século XVII ao século XX (quando se iniciou a Reforma Antimanicomial – Franco Basaglia concluiu que o isolamento e a internação dos pacientes poderiam agravar a condição destes). Chegou-se à conclusão de que o paciente com maior exercício de cidadania, melhores vínculos familiares e sociais tem desfechos mais satisfatórios em adesão a tratamentos; diferentemente dos que se sentiam isolados e inaptos a se reinserir na sociedade.
Em relação ao impacto psicológico da COVID-19, um estudo realizado com 210 voluntários de 194 cidades da China apontou que 53,8% dos entrevistados avaliaram o impacto psicológico da quarentena como moderado ou grave; 16,5% relataram sintomas depressivos moderados a graves; 28,8% relataram moderados a graves sintomas de ansiedade e 8,1% relataram níveis de estresse moderado a grave.
Consumo de álcool
As restrições de funcionamento de restaurantes e bares fez com que o consumo de álcool, antes realizado nesses espaços, ganhasse a atmosfera privada, tendo o domicílio como local de uso.
O etanol é psicoativo e ainda possui atividade imunossupressora (reduz a capacidade do organismo de combater patógenos, incluindo COVID-19), tóxica, cancerígena e teratogênica; estando envolvida em cerca de três milhões de mortes ao ano. Segundo a OMS não existe limite seguro para o consumo de bebidas alcoólicas. É uma substância depressora do sistema nervoso central (em uma primeira fase, parece relaxar quem o consumiu, seu consumo é reforçado quando o indivíduo passa por situações de estresse) e está associada a transtornos mentais como potencializador e possível desencadeador de episódios depressivos, ansiosos e aumentando também ideações suicidas.
Além disso, as mudanças de humor provocadas por essa substância, se associadas a um ambiente hostil, podem desencadear em comportamento agressivo e violento, devido ao funcionamento inadequado do córtex pré-frontal.
Uma pesquisa on-line realizada no Brasil, com 44.062 participantes revelou que 18% da população com 18 anos ou mais de idade relatou aumento do uso de bebidas alcoólicas durante a pandemia.
Violência doméstica
A quarentena trouxe a novidade da convivência forçada com membros da família. Isso pode ter deixado mais evidente as deficiências de comunicação entre os casais e acentuado as brigas do casal, até mesmo por conta de divisões de tarefas domésticas e cuidado com as crianças. Associando isto ao consumo de álcool exacerbado e desencadeamento de episódios agressivos, potencializa-se a violência doméstica e familiar (sendo as mulheres e crianças as principais vítimas). Em todo país, em 24 dias durante o mês de março de 2020 houve um crescimento de 18% no número de denúncias de violência doméstica. Também, pode-se observar ampliação no número de feminicídios.
Os sobreviventes de violência doméstica estão sujeitos a maior consumo de álcool para lidar com a situação e desencadeamento de depressão, ansiedade e outros (no caso de crianças que passam por essas situações, pode haver propensão a transtornos de personalidade).
O aumento da convivência familiar, somado a essas hostilidades cotidianas, trouxe à tona (em alguns) a insatisfação de estar acompanhado da família. Na China, por exemplo, ao final do lockdown, o aumento dos pedidos de divórcio foi significativo, chegando a congestionar o sistema.
Trabalho remoto e filhos
A adoção do home office alterou a vivência da maternidade para as trabalhadoras. Numa pesquisa realizada com 14 mulheres, apesar dos arranjos familiares diferenciados, todas relatam maior desgaste ao conciliar as demandas do emprego, filhos e casa (ausência dos serviços habitualmente contratados). Apesar das demandas maiores, algumas relatam também aproximação da família, havendo mais tempo para atividades juntos, trazendo questionamentos sobre o impacto negativo desigual entre trabalhadores e sobre o distanciamento físico quando existe locomoção até os locais de trabalho.
É importante citar que o trabalho remoto também foi responsável por acentuar desigualdades sociais. Uma pesquisa do C6 Bank em parceria com o Datafolha mostra que as classes A e B foram as que mais conseguiram aderir ao home office, mas as classes C, D e E apresentam percentuais menores de adoção. A pesquisa ainda traz os aspectos da desigualdade de gênero e etnia (o percentual de afastamentos dos empregos foi maior entre as mulheres e entre pardos e negros).
Uma pesquisa realizada em abril de 2020 pelo LinkedIn indicou que 68% dos entrevistados têm trabalhado mais horas por dia e 20% apresentam dificuldades para conciliar o trabalho com o cuidado dos filhos, mesmo que, com a quarentena, tenham tido mais tempo de qualidade com a família.
Existem poucos estudos que abordam diretamente os impactos da questão do trabalho remoto na ocorrência de conflitos entre trabalho e família ou alterações nas dinâmicas familiares, o que reforça a relevância de se estudar mais sobre o tópico.
Educação e uso excessivo de telas
As atividades escolares passaram a ser desenvolvidas em ambientes de aprendizado virtual. A ideia é que se criem possibilidades de aprendizagem mesmo em meio à quarentena. Mas é necessário entender que o ensino remoto é algo novo (e temporário), cujos recursos ainda estão sendo aprendidos e pode trazer muitas dificuldades para os alunos de todas as etapas acadêmicas. Também é importante citar que as vulnerabilidades sociais e exclusão digital permeiam nossa sociedade, dificultando ou impossibilitando o acesso às atividades (podendo aumentar a evasão escolar).
O tempo de tela (televisão, computador, tablet, celular e mídias interativas) influencia em aspectos do desenvolvimento, saúde física e saúde mental das crianças e adolescentes. Já é conhecido o efeito negativo do uso de telas antes de dormir (atrasos para dormir e acordar, menor tempo de sono, sonolência diurna, pior qualidade de sono). Além disso, a exposição intensa pode suprimir a melatonina e diminuir a liberação do hormônio de crescimento, podendo estar associada a transtornos do sono e depressão; e ainda diminuir o tempo de atividades físicas, podendo ser ligada à resistência à insulina, comportamento sedentário e sobrepeso.
Com o distanciamento já observado pelo uso de dispositivos eletrônicos, e ainda o imposto pela quarentena, existe um dano social (reforçado pelo conteúdo infantilizado acessado – principalmente quando não há controle de conteúdo), gerando atrasos na fala, problemas de atenção (aumento dos transtornos comportamentais, transtorno de ansiedade, transtorno opositivo-desafiador, déficit de atenção, transtornos de leitura, baixo rendimento escolar) e baixa convivência familiar.
Apesar das atividades síncronas, com contato entre alunos e professores, alguns têm dificuldade de aprendizado e de sanar suas dúvidas por conta do distanciamento geográfico. Além disso, as atividades assíncronas requerem organização e algumas vezes a ajuda dos familiares (que já estão sobrecarregados de suas atividades e podem não possuir a didática necessária).
Falta de opções de lazer e estresse
Com as atividades de lazer reduzidas, alguns espaços fechados e cuidado maior em famílias com integrante do grupo de risco, as opções de entretenimento são poucas.
As crianças e adolescentes estão vivendo um aumento de casos ou intensidade de transtornos de ansiedade e depressão, fazendo com que as atividades online (jogos, streaming, redes sociais, chamadas de vídeo) se tornem refúgio para os problemas de ordem emocional, o que pode intensificar os problemas fomentados pelo uso de telas.
Em relação aos adultos, o aumento das jornadas de trabalho, ocupações domésticas e familiares associadas ao risco do desemprego e perda de renda podem estar associadas ao Burnout (distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade).
Para os idosos, grande parte da preocupação é que exista isolamento social completo e não apenas isolamento físico, podendo ressaltar sentimentos de solidão, tristeza, tédio, depressão, ansiedade. Isso é extremamente importante ao levar em consideração que a perda de contato com pessoas que lhes são importantes é um fator muito significativo, podendo evoluir para ataques de pânico, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), sintomas psicóticos, depressão e até suicídio. Além de que aqueles com diagnósticos de declínio cognitivo e demência possam se tornar mais agitados, ansiosos, tristes e até agressivos; principalmente se não têm acesso ao lazer, atividades sociais (online) e à rede de apoio.
Emoções, sentimentos e perda de entes queridos
Os sentimentos mais constantes, entre todos os grupos sociais, são os de desesperança e incerteza; muitas vezes gerado pelo excesso de informação (até mesmo fake news – causando ansiedade e medo) e pelas ações de controle da quarentena e vacinação estarem nas mãos dos governos (problema com resolução fora de alcance), atrelados ainda à saudade e isolamento social completo.
Além disso, muitas pessoas também vivenciaram o luto nesse período, que não contou com visitas aos entes queridos que estavam internados e impossibilidade de realização de velórios para despedida adequada. Para a psicóloga Maria Helena Franco (uma das maiores referências em luto no país), uma nova forma de luto está sendo desenvolvida, com um sofrimento diferenciado, por necessitar um tempo maior de elaboração dos sentimentos envolvidos.
Conclusão
É inegável que a quarentena imposta como medida de resposta ao coronavírus trouxe mudanças na saúde mental das pessoas através de mudanças de rotina, isolamento social, aumento do consumo de álcool, alterações nos relacionamentos e laços, implantação do home office e ensino remoto, potencialização do desemprego e pobreza, entre outros.
A fim de que essas transformações sociais não tenham efeitos tão prejudiciais, é necessário que se estabeleça uma rotina que inclua práticas de autocuidado e relaxamento, hobbies, atividade física, alimentação saudável e contato com pessoas queridas através dos recursos online.
Além disso, é necessário a não interrupção de tratamentos psicológicos ou psiquiátricos em andamento ou adesão desses serviços (algumas instituições oferecem esse serviço de forma gratuita ou com baixos custos). É importante que todos tenham uma rede de apoio, para minimizar os impactos da quarentena e ajudar na manutenção de uma rotina saudável.
O texto acima é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Referências:
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https://periodicos.unichristus.edu.br/jhbs/article/view/3325/1123
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