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Síndrome de obstrução sinusoidal ou doença veno-oclusiva hepática em Pediatria | Colunistas

Síndrome de obstrução sinusoidal ou doença veno-oclusiva hepática em Pediatria | Colunistas

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Contexto

– Nas últimas décadas, importantes avanços no transplante de células-tronco hematopoéticas (TCTH) levaram a uma diminuição substancial da morbimortalidade relacionada ao transplante; culminando na atual taxa de mortalidade atual < 15% .

– Atualmente denominada síndrome de obstrução sinusoidal (SOS) – anteriormente denominada doença veno-oclusiva hepática (VOD) – pertence a um grupo de condições relacionadas ao TCTH, como outras doenças endoteliais sistêmicas, como por exemplo a doença enxerto versus hospedeiro (Graft versus host disease GVHD).

Fisiopatologia

– O insulto inicial que leva à SOS é o dano direto a célula endotelial sinusoidal e o dano hepatocelular resultante de irradiação, quimioterapia ou imunossupressão. Ocorre uma resposta inflamatória no ácino hepático, levando a um estado pró-coagulante – pela liberação de fator de von Willebrand, inibidor do ativador do plasminogênio e moléculas de adesão, dentre outros fatores pró-coagulantes. A lesão das células endoteliais leva a uma ruptura na barreira sinusoidal, com aumento da permeabilidade da vênula hepática, edema subsequente e liberação de hemácias, leucócitos, fibrina e fatores de coagulação no espaço de Disse. Segue-se a trombose, levando à obstrução do fluxo sanguíneo e dilatação sinusoidal. A progressão da SOS é caracterizada por fibrose dos sinusóides e vênulas, obliteração das vênulas hepáticas terminais e necrose de hepatócitos, particularmente na zona perivascular/centrolobular – zona 3 (por isso é a zona hepática mais acometida).

Epidemiologia da SOS em Pediatria

– Ocorre 20 vezes frequentemente em crianças do que em adultos. Os números são impressionantes – incidência reportada de 20% das crianças submetidas ao TCH. Acomete em algum grau até 60% dos pacientes considerados de alto risco em pediatria.  

– Fatores de risco podem estar relacionados à drogas de escolha no condicionamento ou ao pacientes: Taxas mais altas são vistas se condicionamento mieloablativo pré-transplante. Condições que cursam com risco aumentado: osteopetrose, síndromes de ativação macrofagica, síndrome de griscelli, talassemia, neuroblastoma de alto risco.

Apresentação e Curso Clínico

– A SOS tem curso imprevisível – pode progredir para quadro grave/ disfunção de múltiplos órgãos, sendo considerada uma complicação  potencialmente fatal do TCTH… Mas, na maioria do casos, resolve espontaneamente dentro de semanas. 

– Pode ser desencadeada ou ter como fator agravantes: toxinas, citocinas, auto-retividade, anticorpos monoclonal. 

– Geralmente associada ao TCTH, a SOS pode estar associada à exposição a medicamentos fitoterápicos contendo alcalóides pirrolizidínicos, radioterapia, quimioterapia em altas doses e transplante de órgãos sólidos.

– Apresenta-se classicamente com início de hepatomegalia dolorosa, icterícia, ascite e ganho de peso inexplicável dentro de semanas após o TCTH.

Diagnóstico

– Diagnóstico é principalmente clínico – considerado clínico-laboratorial, raramente necessitando o apoio de histologia. Era historicamente nos critérios de Seattle e de Baltimore. A Tríade clínica clássica é de: ascite, hepatomegalia, ganho de peso. 

– Critério de ganho de peso para ser considerado clinicamente significativo e critério diagnóstico: para crianças, pelo critério de Seattle modificado, seria de um aumento de peso >5% (para adulto 5% ou 2%, conforme criérios de Baltimore e Seattle, respectivamente).  

– Interessantemente, a hiperbilirubinemia >2 md/dL, condição considerada  si ne qua non pelo critério de Baltimore, está ausente em cerca de 1/3 dos casos pediátricos. 

– Pico de incidência em adultos é no D12 após o TMO. Até 20% dos casos em pediatria ocorrem após D30 – excedendo os limites de 21 e 20 dias dos critérios de Baltimore e Seattle, respectivamente.

– A forma tardia ocorre em até 20% dos casos pediátricos, e a forma anictérica em até 30%. Hiperbilirubinemia, se presente, muitas vezes é condição pré-existente em pediatria, ou ocorre tardiamente no curso da doença, e ocorre mais comumente em doença grave. Presença de ascite e hepatomegalia pode ser difícil de avaliar, pela presença prévia dessas condições frequentemente antecedendo o transplante de medula óssea. 

– A sensibilidade dos critérios de Baltimore e Seattle em pediatria é cerca de 55%, e especificidade em torno de 90-95%

– Exames bioquímicos do fígado revelam elevações variáveis na bilirrubina, transaminases e fosfatase alcalina. A trombocitopenia refratária pode ser um marcador precoce de SOS em crianças. Um subconjunto de pacientes desenvolve insuficiência renal progressiva, insuficiência pulmonar e alterações do estado mental devido à falência de múltiplos órgãos relacionada a SOS. 

– A ultrassonografia pode revelar hepatomegalia, ascite e, nos estágios finais da doença, reversão do fluxo sanguíneo venoso portal. Dentre os exames de imagem, o USG é o exame mais frequentemente utilizado pela facilidade/disponibilidade. Avalia principalmente a hepatomegalia e ascite, auxilia no diagnóstico diferencial com outras condições, sobretudo diferencial com trombose de veia porta e com síndrome de Budd Chiari. 

– Histologicamente, as características da SOS hepática incluem dilatação sinusoidal acentuada e congestão com hemácias, necrose hepatocelular centrolobular, com achados progressivos de deposição de colágeno nas vênulas hepáticas terminais e ao redor delas e fibrose parenquimatosa com cirrose. Embora esses achados sejam muito sugestivos, não são patognomônicos e a SOS permanece um diagnóstico clínico. A biópsia do fígado raramente é necessária. Ademais, as biopsias hepáticas percutâneas são consideradas de alto risco de sangramento nesse pela congestão hepática. A grande maioria dos casos é conduzido sem biópsia hepática.

– Critérios EBMT (European society for blood and marrow transplantation) para o diagnóstico de VOD/ SOS em pediatria, sem limite de tempo em relação ao transplante, diagnóstico possível com presença de 2 dentre:

  • trombocitopenia de consumo não explicada por outra causa e refratária a transfusão,
  • ganho de peso não explicado em 3 dias consecutivos apesar do uso de diuréticos ou acima de 5% da linha de base,
  • hepatomegalia acima da linha de base (melhor se confirmada por imagem),
  • ascite acima da linha de base (melhor se confirmada por imagem),
  • bilirrubina subindo acima da linha de base ou >2 em 72h. 

Esses critérios e extensa evidência de literatura sobre as diferenças sobre SOS em adultos e em pediatria estão no artigo (Referencia abaixo): https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5803572/

–  Critérios de gravidade: magnitude da elevação de transaminases, magnitude da elevação da bilirrubina, grau da ascite, alteração da coagulação, persistência da trombocitopenia refratária, alteração da função renal, necessidade de oxigenioterapia, alteração do nível de consciência.

Tratamento

–  O tratamento baseia-se em cuidados de suporte para formas leves a moderadas, e uso também de defibrotide na doença grave/ disfunção de múltiplos órgãos. Os cuidados de suporte incluem restrição de fluidos, estímulo a diurese, retirada de agentes hepatotóxicos (se possível), tratamento da dor e paracentese (se necessária). Resposta ao defibrotide em pediatria é melhor que resposta em adultos. Em alguns trabalhos, a droga mostrou também mostrou eficácia em prevenir VOD/SOS em crianças, mas ainda não é indicada rotineiramente para esse uso (profilático). 

– O defibrotide, produzido pela despolimerização do DNA intestinal de suíno, é composto principalmente de oligonucleotídeos fosfodiéster de fita simples e quantidades menores de oligonucleotídeos fosfodiéster de fita dupla. Dentro desses oligonucleotídeos estão aptâmeros que possuem propriedades de antitrombina. O mecanismo de ação preciso do defibrotide é amplamente desconhecido, mas acredita-se que ele seja citoprotetor do endotélio vascular hepático por meio de múltiplos efeitos anti-inflamatórios, antitrombóticos e trombolíticos. Vários estudos clínicos apoiam o uso de defibrotide em SOS, e foi raprovado pela Food and Drug Administration, órgão regulador norte-americano para uso em adultos e crianças com SOS com complicações renais ou pulmonares. O defobrotide é também aprovado pela ANVISA e disponível no Brasil, para pacientes adultos e pediatricos, embora não seja amplamente disponível. Em 2020, a ANVISA alertou para casos de falsificação da medicação: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/alerta-sobre-falsificacao-do-medicamento-defibrotide

– Em 2 grandes estudos usando defibrotide na dose de 25 mg/kg por dia, a sobrevida de pacientes pediátricos no dia 100 com SOS foi de 65% e 54,5%. Parece que as crianças têm resultados mais favoráveis do que os adultos. Essa descoberta alimentou estudos em andamento para determinar a eficácia da profilaxia com defibrotide em crianças de alto risco submetidas ao TCTH. Os efeitos adversos mais frequentes do defibrotide são hipotensão e hemorragia pulmonar ou gastrointestinal.

– Embora alguns relatórios sugiram que esteróides em altas doses possam ser úteis no tratamento de adultos com SOS, há poucos dados em crianças.  O risco aumentado de infecção na presença de esteróides em altas doses deve ser levado em consideração. Pulso de metilprednisolona intravenosa seria mais apropriado no tratamento de GVHD, e ainda não pode ser indicado de forma rotineira em SOS.

– As estratégias preventivas para SOS geralmente incluem o uso de ácido ursodeoxicólico imediatamente antes do transplante e heparina de baixo peso molecular no período pós-transplante imediato. Porém, os dados que apoiam o uso dessas estratégias são bastante limitados.

– Por fim, há relatos de caso descrevem o uso de shunt porto-sistêmico intra-hepático transjugular (TIPS) como uma modalidade terapêutica em SOS em pacientes que não tiveram sucesso com terapia médica de primeira linha agressiva. Mas trata-se de evidência que ainda é considerada anedótica.

Referência:

Corbacioglu S, Carreras E, Ansari M, Balduzzi A, Cesaro S, Dalle JH, Dignan F, Gibson B, Guengoer T, Gruhn B, Lankester A, Locatelli F, Pagliuca A, Peters C, Richardson PG, Schulz AS, Sedlacek P, Stein J, Sykora KW, Toporski J, Trigoso E, Vetteranta K, Wachowiak J, Wallhult E, Wynn R, Yaniv I, Yesilipek A, Mohty M, Bader P. Diagnosis and severity criteria for sinusoidal obstruction syndrome/veno-occlusive disease in pediatric patients: a new classification from the European society for blood and marrow transplantation. Bone Marrow Transplant. 2018 Feb;53(2):138-145. doi: 10.1038/bmt.2017.161. Epub 2017 Jul 31. PMID: 28759025; PMCID: PMC5803572.

Autora: Natascha Silva Sandy – @natascha.sandy (esse texto também está disponível na página https://novapediatria.com.br/sindrome-de-obstrucao-sinusoidal-ou-doenca-veno-oclusiva-hepatica/


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.