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Síndrome de Trousseau de Malignidade | Colunistas

Síndrome de Trousseau de Malignidade | Colunistas

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A Síndrome de Trousseau de Malignidade, ou apenas Síndrome de Trousseau, é um distúrbio caracterizado pela hipercoagulabilidade associado a lesões neoplásicas, em sua maioria, ocultas. Considerando esse fato, e principalmente por se relacionar com tumores que não são visualizados facilmente, o conhecimento dessa síndrome possui um papel importante na rotina da Oncologia. Descreveremos a seguir como a Síndrome de Trousseau se manifesta em pacientes oncológicos, e qual a importância para o diagnóstico dessas neoplasias. Quer saber mais sobre essa manifestação clínica? Então vem comigo!

Histórico

A Síndrome de Trousseau, embora ainda pouco citada diretamente em bases de dados, é conhecida há bastante tempo, porque em 1965, Armand Trousseau, médico francês, iniciou a identificação dessa síndrome pela observação de tromboflebite migratória com o posterior aparecimento de neoplasia visceral oculta em seus pacientes. Mais tarde, especificamente dois anos depois, o próprio Trousseau foi acometido por essa mesma condição que ele mesmo descreveu e abriu portas para cientistas do mundo todo investigar, e veio a óbito devido a um carcinoma gástrico.

Anos depois, alguns cientistas resolveram ampliar e analisar melhor essa condição, surgindo daí a revisão, já em 1977, proposta por Sack, Levin e Bell, no qual foi constatado o aparecimento de tromboflebite, não majoritariamente migratória, mas que estava diretamente associadas com o surgimento de neoplasias.

Considerando os mais diversos mecanismos do organismo humano de controle hemorrágico, a ampliação da compreensão sobre esse termo se faz necessária, principalmente porque estamos vivenciando um período histórico no qual a ocorrência de câncer aumentou 28% entre 2006 e 2016 (JAMA, 2018). Desde a observação de Trousseau e a revisão sistemática de Sack et al, a associação entre distúrbios coagulativos e aparecimento de cânceres se tornou mais incidente, de forma que há casos reportados dos mais variados tipos de coagulopatias relacionados à malignidade.

Causas associadas à Síndrome de Trousseau

Partindo da compreensão acerca da manifestação da Síndrome de Trousseau, é necessário reconhecer, de modo geral, que esta se dá quando substâncias tumorais entram na corrente sanguínea e perturbam a cascata de coagulação. Quando foram observados os primeiros casos dessa doença, acreditava-se que as mucinas – proteínas altamente glicosiladas – secretadas pelos tumores, eram responsáveis por essas manifestações. Entretanto, nem todos os tumores associados à síndrome são secretores de mucina, e como as perturbações na capacidade coagulativa do paciente permanecem, outros fatores começaram a ser analisados. Portanto, lista-se abaixo três principais transtornos e suas causas dentro da compreensão acerca da Síndrome de Trousseau.

Mucinas de carcinomas

Como dito anteriormente, as mucinas foram as substâncias que primeiro foram associadas às coagulopatias relacionadas à Síndrome. As mucinas são proteínas amplamente glicosiladas, de alto peso molecular (cerca de 200kDa) e são encontradas, principalmente, na superfície de células epiteliais. Suas principais funções estão relacionadas com a proteção do nosso epitélio contra microrganismos e degradação proteolítica, melhora na absorção dos ácidos graxos, lubrificação  das superfícies epiteliais, além de alterar o potencial de crescimento da célula a partir da expressão de um gene específico, o MUC1 (DEVINE e MACKENZIE, 1992). A alteração dessa molécula, e consequentemente o direcionamento de suas funções de proteção às células tumorais, transforma-a em uma substância com alta capacidade de resistir à desnaturação, ebulição e ação de enzimas como as proteases, que possuem um alto poder lítico. Acredita-se que a alteração da mucina de uma substância fisiológica para patológica está no grau de expressão do gene MUC1. No que diz respeito às funções que passam a exercer sobre células tumorais, podemos citar a criação de um domínio funcional estendido que impede a agregação celular, promovendo a metástase da célula tumoral, além de interferir diretamente na resposta imune desempenhada pelo nosso corpo, uma vez que age como um “agente bloqueador imunológico” pela diminuição da ligação de células leucocitárias às células endoteliais, para que as células de defesa possam induzir a resposta imune do nosso corpo. A relação das mucinas com as coagulopatias está relacionado com a capacidade das mucinas de vincular P-selectina e L-selectina, estabelecendo uma relação entre os leucócitos e sua ligação com o endotélio ou as plaquetas, que culminam na formação de um micro trombo.

Fator tecidual

Outra molécula que pode estar envolvida com os fenômenos de coagulabilidade envolvidos na Síndrome de Trousseau é o fator tecidual (FT). O fator tecidual, que está relacionado com a hipercoagulabilidade, agressividade tumoral e processo de angiogênese – no qual ocorre a formação de vasos sanguíneos para suprir o aporte sanguíneo na região-, pode aparecer aumentado na circulação sanguínea por alguns motivos, são eles: a expressão dessa molécula pelo endotélio correlacionado, ativação de oncogenes ou de inativação de supressores tumorais. No que diz respeito à formação do trombo plaquetário, a importância do FT se deve ao fato de que este pode estar ligado com a produção de fatores da coagulação quando se liga ao fator VII ativado, ou VIIa. Os principais fatores expressos após a ligação do fator tecidual com o fator VIIa são os fatores IXa e Xa, que estão diretamente relacionados na transformação da protrombina em trombina diretamente, como é o caso do fator Xa, e como retroalimentação, como ocorre no fator IXa. A liberação de trombina atua na ativação do fibrinogênio em fibrina, além do recrutamento de plaquetas, auxiliando na formação do trombo plaquetário.

Hipóxia tumoral

Como citado anteriormente, a perturbação nos fatores de coagulação desempenham um papel substancial dentro da perspectiva da Síndrome de Trousseau. Uma das últimas hipóteses relacionadas ainda com esses fatores é a hipóxia tumoral, descrita por Denko e Giaccia no ano de 2001, propõe que a baixa deficiência de oxigênio era o que justificava a metástase tumoral na Síndrome de Trousseau. O postulado versa sobre a expressão de genes coagulativos, como o fator tecidual, citado anteriormente, e o inibidor do ativador de plasminogênio tipo 1,  devido a hipóxia tumoral. Devido a isso, esses fatores influem diretamente no aparecimento de trombos na circulação sanguínea do paciente

            Na figura abaixo é possível visualizar graficamente a maioria dos distúrbios supracitados e suas inter-relações.

Figura 1 – Múltiplos mecanismos da Síndrome de Trousseau. Disponível em: American Society of Hematology (ashpublications.org)

Manejo clínico

Acerca do manejo clínico dentro da assistência à saúde, a identificação do paciente com Síndrome de Trousseau tem como primeiro objetivo a eliminação do câncer. Em seguida, considerando os diversos mecanismos envolvidos, uma das principais moléculas utilizadas atualmente na clínica para o tratamento da síndrome é a heparina. É importante destacar que muitas vezes o diagnóstico do paciente acometido por essa condição é ainda muito difícil, tendo em vista que as neoplasias associadas muitas vezes estão ocultas, e o tratamento apenas direcionado para a coagulação não soluciona toda a problemática, principalmente porque o tumor é o objeto principal do manejo clínico nessa situação. Além disso, recomenda-se que a hipótese diagnóstica seja direcionada à Síndrome de Trousseau quando são observados casos de trombofilia, mas que não se relacionam com nenhum mecanismo aparente no organismo do paciente.

Como vimos anteriormente, diversos distúrbios na coagulação sanguínea, além de alguns fatores relacionados à adesão celular, têm uma ligação direta na manifestação das coagulopatias dentro da lógica da Síndrome de Trousseau. Portanto, a heparina, um fármaco anticoagulante, exerce um papel de exclusividade no tratamento dessa condição patológica. Tal fato ocorre porque a heparina tem a capacidade de inativar o fator Xa, consequentemente, interrompendo a ativação de trombina, que quando ativada, culmina na ativação do fibrinogênio em fibrina, que forma o trombo nos vasos sanguíneos.

É importante destacar que diversos mecanismos tecnológicos muito mais direcionados estão sendo desenvolvidos para que o efeito dos fármacos seja muito mais eficaz, e a heparina não foge dessa lógica. No entanto, esse fármaco consegue suprir muito bem as necessidades impostas pela Síndrome de Trousseau, sendo uma das principais vias de tratamento para pacientes nessa condição.

Considerações finais

A partir dos conhecimentos supracitados, é notório inferir a necessidade do conhecimento da Síndrome de Trousseau dentro do ambiente clínico. Faz-se também necessário um melhor conhecimento dos mecanismos fisiológicos alterados nessa condição, para que possamos expandir o norte sobre o que se sabe até hoje sobre esse processo patológico. Para além da própria importância médica, a identificação de casos interfere diretamente na eficácia do tratamento, que tem como beneficiado a principal energia motriz da medicina: o paciente.

Autor: Marianny Albino

Instagram: https://instagram.com/_maricamz


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

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DEVINE, PL, MCKENZIE, IF. Mucins: structure, function, and associations with malignancy. Bioessays. 1992 Sep;14(9):619-25. Acesso em Março de 2021. DOI: 10.1002/bies.950140909. PMID: 1365918.

JAMA ONCOLOGY. Global Burden of Disease Cancer Collaboration. Global, Regional, and National Cancer Incidence, Mortality, Years of Life Lost, Years Lived With Disability, and Disability-Adjusted Life-Years for 29 Cancer Groups, 1990 to 2016: A Systematic Analysis for the Global Burden of Disease Study. 2018;4(11):1553–1568. Acesso em 27 de Março de 2021. DOI:10.1001/jamaoncol.2018.2706

MARQUES, T.; REIS, C.A.; NOGUEIRA, A.M.M.F. O papel das mucinas gástricas na infecção por Helycobacter pylori. Revista Médica de Minas Gerais, Minas Gerais, p. 5, 2006. Disponível em: . Acesso em: 27 mar. 2021.

SACK GH Jr, LEVIN J, BELL WR. Trousseau’s syndrome and other manifestations of chronic disseminated coagulopathy in patients with neoplasms: clinical, pathophysiologic, and therapeutic features. Medicine (Baltimore). 1977 Jan;56(1):1-37. Acesso em 27 de Março de 2021. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/834136/

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