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A triagem neonatal, no contexto da saúde pública, busca identificar, a partir de testes específicos, indivíduos assintomáticos com idade de 0 a 28 dias de vida que tenham risco de desenvolver uma determinada doença. O objetivo da triagem é alterar a história natural da patologia e também minimizar seus riscos e complicações. O diagnóstico definitivo deve ser realizado nos casos previamente suspeitos à triagem, por meio de testes confirmatórios e/ou avaliação clínica.
Teste do Olhinho (Teste do Reflexo Vermelho)
O teste do Reflexo Vermelho (TRV) tem como objetivo a detecção precoce de patologias oculares congênitas (como por exemplo, o retinoblastoma), que causam opacificação dos meios oculares, impedindo assim o desenvolvimento visual e ocasionando ambliopia ou cegueira. O teste é feito com o oftalmoscópio direto, cuja luz atravessa as estruturas transparentes, sendo refletida pela vasculatura da retina e da coróide, causando o reflexo vermelho.
As possibilidades de resultado do teste do olhinho seriam: reflexo presente, ausente ou duvidoso (quando há assimetria nos reflexos). Se o reflexo for ausente (em um ou ambos os olhos) ou duvidoso, a criança deverá ser encaminhada ao oftalmologista para realizar o exame oftalmológico completo.
O teste do Pezinho
O teste de triagem neonatal básico do SUS compreende seis doenças: hipotireoidismo congênito, hiperplasia adrenal congênita, fenilcetonúria, doença falciforme e outras hemoglobinopatias, fibrose cística e deficiência da biotinidase. Em 2021, foi sancionada a Lei nº 14.154, a qual ampliou o teste para abranger 50 doenças. Essa ampliação ocorrerá em etapas, sendo o Ministério da Saúde responsável por estabelecer os prazos de início de cada uma.
Na primeira etapa da ampliação será feita a inclusão de doenças relacionadas ao excesso de fenilalanina, hemoglobinopatias e a toxoplasmose congênita. Na segunda etapa, doenças decorrentes do nível elevado de galactose sérica, aminoacidopatias, distúrbio do ciclo de uréia e distúrbios de betaoxidação de ácidos graxos. Na terceira, doenças que comprometem o funcionamento celular. Na quarta etapa, alterações genéticas no sistema imunológico. Por fim, na quinta etapa será testada a atrofia muscular espinhal.
Fonte: http://www.natalvoluntarios.org.br/tempo/tempo11/Cartilhatextostestedopezinho.pdf
Hipotireoidismo congênito (HC)
Nessa doença, o recém nascido é incapaz de produzir hormônios tireoidianos adequadamente, seja por insuficiência da glândula tireóide (HC primário, sendo a sua principal causa, a disgenesia tireoidiana com ectopia), da hipófise (HC secundário), do hipotálamo (terciário) ou também decorrente da resistência periférica à ação dos hormônios tireóideos. A coleta para o exame deve ser realizada entre o 3º e o 7º dia de vida do recém nascido, pois o TSH encontra-se fisiologicamente aumentado nas primeiras 24h de vida, levando a falsos positivos. O HC é considerado uma emergência pediátrica, já que, caso não seja diagnosticado e tratado precocemente, a deficiência de hormônios tireoidianos leva a um severo comprometimento no desenvolvimento mental e a lesão neurológica permanente a partir da segunda semana de vida.
Os principais sintomas apresentados no HC seriam: hipotonia muscular, choro rouco, icterícia prolongada, constipação, bradicardia, sopro cardíaco, mixedema e atraso de desenvolvimento neuropsicomotor. Após o resultado positivo na triagem, a confirmação do diagnóstico é feita pela dosagem do T4 (total e livre) e do TSH em amostra de sangue venoso. O tratamento da doença consiste na reposição de levotiroxina sódica. O tratamento deve ser monitorado pela concentração plasmática de T4 total, T4 livre e TSH.
Hiperplasia adrenal congênita (HAC)
A hiperplasia adrenal congênita é uma síndrome, caracterizada por diferentes deficiências enzimáticas que participam da síntese dos esteróides adrenais. A deficiência mais comum é a da 21-hidroxilase (cerca de 95% dos casos), enzima envolvida na síntese de cortisol e de aldosterona. Na triagem, o diagnóstico da HAC é feito pela dosagem da 17-hidroxiprogesterona, sendo o teste confirmatório feito no soro.
O quadro clínico da HAC depende da enzima acometida e do nível de deficiência enzimática (total ou parcial). Existem três tipos de apresentações clínicas na deficiência da 21-hidroxilase: a forma clássica perdedora de sal (forma mais comum), forma clássica não perdedora de sal e forma não clássica. Na forma clássica, ocorre a virilização da genitália externa (aumento de clitóris, fusão labial e formação de seio urogenital) em recém nascidos do sexo feminino devido ao excesso de andrógenos no intrautero. Também pode ocorrer uma crise adrenal (devido a deficiência de mineralocorticóides) a partir da 2ª semana de vida, manifestada por desidratação, hipotensão, hiponatremia, hipercalemia, e caso não tratada, pode evoluir para óbito. O tratamento para pacientes do sexo feminino com hiperandrogenismo, deve ser realizado por reposição hormonal com baixas doses de glicocorticoide e também deve seguir o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Síndrome dos Ovários Policísticos e Hirsutismo. Já pacientes assintomáticos com HAC na forma não clássica não necessitam de tratamento.
Fenilcetonúria (PKU)
A PKU é um erro inato do metabolismo, causado pela deficiência da enzima hepática fenilalanina hidroxilase, que gera um acúmulo do aminoácido fenilalanina (FAL) no sangue e a excreção urinária de ácido fenilpirúvico. A triagem é feita com a dosagem quantitativa da fenilalanina sanguínea em papel-filtro. A coleta deve ser realizada somente após 48 horas do nascimento, para que a criança tenha a ingestão adequada de proteínas e que o aumento da FAL possa ser detectado, evitando falsos negativos. O teste confirmatório é feito pela dosagem de fenilalanina com valores superiores a 10 mg/dL em duas amostras laboratoriais diferentes.
Caso não seja instituído o tratamento adequado antes dos 3 meses de vida, a criança apresenta um quadro clínico caracterizado por atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor, deficiência mental, convulsões, alterações eletroencefalográficas e odor característico na urina. O tratamento consiste em uma dieta hipoprotéica, suplementada por uma fórmula de aminoácidos isenta de fenilalanina, mantendo os níveis adequados desse aminoácido para permitir o crescimento e desenvolvimento normais do indivíduo. A instituição de uma dieta totalmente livre de FAL seria ainda mais prejudicial, causando a Síndrome da Deficiência de Fenilalanina (manifestando eczema grave, prostração, ganho de peso insuficiente, desnutrição, deficiência mental e crises convulsivas).
Doença Falciforme (DF) e outras hemoglobinopatias
As hemoglobinopatias são causadas por mutações nos genes estruturais das cadeias polipeptídicas de hemoglobina, o que acarreta na formação de tipos anormais de hemoglobina. A DF é uma doença causada por um defeito estrutural da cadeia beta da hemoglobina, que leva as hemácias a assumirem forma de foice quando expostas a condições de estresse, tais como febre alta, baixa tensão de oxigênio ou infecções. O quadro clínico é caracterizado por crises vaso-oclusivas (crises álgicas), dactilite, anemia hemolítica, insuficiência renal progressiva, maior susceptibilidade a infecções e sequestro esplênico.
Na triagem, é possível identificar os indivíduos que apenas possuem o traço falcêmico (Hb FAS) dos indivíduos doentes (Hb FS). O tratamento deve ser iniciado antes dos quatro meses de vida para prevenir infecções, reduzindo assim a morbimortalidade. Outras medidas que devem ser realizadas seriam: seguimento médico especializado, esquema vacinal especial, antibioticoterapia profilática e suplementação com ácido fólico.
Fibrose cística (FC)
A FC ou mucoviscidose, é gerada pela mutação do gene CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Regulator), que leva a um desequilíbrio na concentração de cloro e sódio nas glândulas exócrinas, aumentando a viscosidade das secreções. Essa afecção apresenta elevado índice de mortalidade, já que leva ao bloqueio das vias aéreas pela secreção espessa, propiciando a proliferação bacteriana (principalmente da pseudomonas aeruginosa) e levando a infecções crônicas, lesão pulmonar, e eventual óbito por disfunção respiratória. Há também uma perda de enzimas digestivas devido a obstrução dos ductos pancreáticos, gerando carência de vitaminas lipossolúveis e desnutrição. Além disso, de 5% a 10% das crianças afetadas nascem com obstrução intestinal por mecônio (síndrome íleo meconial) caracterizado por distensão abdominal, impossibilidade de evacuação e vômitos.
A triagem da FC é feita com a análise dos níveis da tripsina imunorreativa (IRT) em amostras colhidas em até 30 dias de vida do RN (coletas após esse período não são confiáveis). O exame confirmatório dos casos suspeitos é realizado pela dosagem de cloretos no suor (“teste de suor”). O tratamento do paciente com mucoviscidose envolve o acompanhamento médico regular, fisioterapia respiratória, suporte dietético, suplementação vitamínica (vitaminas lipossolúveis A, D, E, K) e a imunização antipneumocócica e anti-hemófilos, além do calendário vacinal convencional.
Deficiência de biotinidase
Doença em que ocorre um defeito no metabolismo da biotina, e por isso, há a diminuição de sua concentração endógena pela incapacidade do organismo em utilizar a biotina ligada à proteína fornecida pela dieta. As manifestações clínicas da doença iniciam a partir da sétima semana de vida, com distúrbios neurológicos (crises epiléticas, hipotonia, microcefalia, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor) e cutâneos (dermatite e alopécia). Os pacientes com diagnóstico tardio apresentam-se com sequelas visuais, auditivas e com atraso motor e de linguagem.
A triagem neonatal faz a análise da enzima biotinidase, caso esteja alterado, será realizado o exame confirmatório pelo teste quantitativo da atividade de biotinidase, podendo ser complementado com estudo genético-molecular. O tratamento é baseado na suplementação diária de biotina.
Conclusão
Os diagnósticos feitos pela triagem neonatal são de extrema importância, já que permitem que o tratamento dessas doenças seja instituído rapidamente, evitando o desenvolvimento dos sintomas e, portanto, diminuindo o risco de complicações. O diagnóstico precoce favorece a adoção de cuidados preventivos e a orientação familiar sobre a condição genética da família e sobre o risco de recorrência em gestações futuras.
Autora: Giovanna di Cola
Instagram: @giodicola
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências:
MANUAL DE NORMAS TÉCNICAS E ROTINAS OPERACIONAIS DO PROGRAMA NACIONAL DE TRIAGEM NEONATAL – https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/triagem_neonatal_biologica_manual_tecnico.pdf
Ministério da Saúde. Triagem Neonatal Biológica. Manual Técnico. Brasília, DF, 2016
Triagem neonatal: o que os pediatras deveriam saber – https://www.scielo.br/j/jped/a/rxQLMsYqQHGMxMw9WV4vXWv/?lang=pt
SAÚDE DA CRIANÇA: CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO – https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_crianca_crescimento_desenvolvimento.pdf
Teste do Pezinho será ampliado e detectará até 50 novas doenças – https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2021/05/teste-do-pezinho-sera-ampliado-e-detectara-ate-50-novas-doencas
Ingestão de vitamina A por pacientes com fibrose cística diagnosticados precocemente – https://www.nupad.medicina.ufmg.br/wp-content/uploads/2016/12/Artigo_Ingestao-de-vitamina-A-por-pacientes-com-fibrose-cistica_MichelleAlves.pdf