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Vida de estudante: primeiro contato com a UBS | Colunistas

Vida de estudante: primeiro contato com a UBS | Colunistas

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Imagem de perfil de Diogo Medeiros

Muitos iniciam a faculdade sonhando com a prática. Aqui vou abordar a minha experiência no primeiro contato com a UBS.

Como estudantes de medicina, vivenciamos inúmeras expectativas desde o primeiro semestre de faculdade. Contamos os minutos para termos a oportunidade de um primeiro contato com a prática médica, e a cada nova experiência vemos nossa motivação se renovar.

Neste artigo gostaria de compartilhar um pouco das situações vividas em minha primeira e segunda visita a uma Unidade Básica de Atendimento, para tanto, compartilho um diário de campo adaptado, produzido por mim e um grande amigo, Cesar de Souza, com quem tive a honra de compartilhar esta experiência.

Os nomes dos profissionais e pessoas entrevistadas neste artigo são fictícios, mas sem nenhum prejuízo à mensagem e às sensações que gostaria de compartilhar, espero que gostem e desejo a todos uma boa leitura.

Primeiro dia

Muito tempo se passou desde que a primeira definição de Atenção Primária à Saúde (APS) foi proposta na Conferência Internacional Sobre Cuidados Primários de Saúde, em Alma-Ata, República do Cazaquistão.

A declaração de Alma-Ata define saúde como “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença e ou enfermidade”.

A definição de completo bem-estar físico, mental e social possui inúmeros significados e está diretamente relacionada às realidades individuais. Pessoas coexistem em mundos e realidades paralelas, muitas vezes sem que haja uma divisão geográfica. A imersão em realidades diferentes de nossas próprias pode chocar, surpreender e ser motivo de uma boa reflexão. Isso resume, em poucas palavras, a realidade que vivenciamos em nosso primeiro dia na UBS.

A Unidade Básica de Saúde (UBS) que visitamos se encontra muito próxima de uma praça pública, onde alguns dos moradores locais se banham, matam sua sede e lavam seus carros, tudo isso em uma mina, cuja água é comprovadamente imprópria para consumo e que jorra continuamente.

Nesta mesma avenida encontramos inúmeros estabelecimentos, padarias, oficinas mecânicas, bazares e bares. É uma região com um fluxo constante de pessoas e carros, mas, à medida em que adentramos suas ruas adjacentes, o movimento diminui e algumas outras características do bairro ficam evidentes.

De boca de fumos a produção têxtil ilegal, de brasileiros a bolivianos e nigerianos, de ruas limpas a entulhos acumulados, de esperança ao caos. Neste ambiente de constrates múltiplos atuam Maria e Ana, Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) há quatro e dois anos respectivamente, que possuem muita história para contar e compartilham com detalhes suas principais funções e obrigações para com a comunidade.

Cada uma atende em média 150 famílias e possui uma meta de duzentas visitas mensais. Meta facilmente cumprida dada a necessidade do contato constante com as famílias que são atendidas.

A divisão é feita por ruas próximas à UBS, e o trajeto é cumprido todo a pé. À primeira vista imagina-se uma grande área a ser percorrida pelos agentes, em função do número de famílias atendidas, mas Maria nos esclarece que uma única casa no bairro pode abrigar diversas pessoas. Os quintais compartilhados, que também servem de oficina têxtil, são a morada de algumas destas famílias.

Durante a maior parte do tempo percorremos ruas silenciosas com asfalto gasto e percebemos uma agitação maior apenas quando passamos em frente a uma pequena porta onde funciona um bar; neste momento Maria se adianta e, com tom de voz mais baixo que o habitual, diz preferir não olhar para os lados e passar despercebida em locais como esses, onde existem as famosas bocas de fumo.

Apesar de se tratar de um bairro liderado pelo tráfico, nos sentimos relativamente seguros na companhia de Maria e Ana, já que em sua agenda de visitas também constam mulheres e filhos de traficantes de drogas da região.

Atualmente a UBS conta com 5 equipes responsáveis pelo atendimento de mais de 20.000 famílias. Estas famílias são cadastradas e direcionadas à UBS para atendimento com a equipe médica responsável, com exceção de pessoas idosas e de difícil locomoção, aos quais os atendimentos médicos são realizados em sua própria residência, mediante agendamento na UBS. Atendimentos de emergência são encaixados e direcionados para equipes específicas, como o SAMU.

Dentre as situações de atendimento mais comum, está a gravidez infantil. Apesar das campanhas e disponibilização de preservativos na UBS, os fatores culturais e sociais da região são determinantes. A realidade da juventude destas regiões tem como base estruturas de hierarquias definidas pelo tráfico e atividades de lazer que favorecem uma sexualização precoce, como os famosos bailes funks, que ocorrem literalmente ao lado a UBS.

Uma vez que uma adolescente grávida solicite o atendimento, imediatamente a ACS da microrregião em que reside esta adolescente fica responsável pelo pré-natal e acompanhamento das vacinas após o nascimento desta criança.

Como visitamos a UBS em setembro, percebemos uma movimentação para divulgação do Setembro Amarelo, com campanhas contra o suicídio. Segundo Maria, que nos acompanhava, não existem muitos casos de suicídios na região e lembrou que um dos últimos ocorridos foi cometido por um senhor de idade que não suportou a perda de sua esposa, falecida anos atrás.

Em meio a invasões, drogas, famílias carentes, problemas sanitários, entre outros inúmeros problemas regionais, os ACS fazem seu trabalho, com disposição e sobretudo ciente de sua importância para comunidade. São pessoas simples e em sua simplicidade nos ensinaram, em pouco mais de uma hora, muito mais que qualquer instituição ou escola seria capaz.

Segundo Franz Kafka, “a solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana”.

A solidariedade pode ser definida como um sentimento de identificação em relação ao sofrimento dos outros. Assim nos sentimos, e é este sentimento que nos motiva a seguir na profissão de médicos. A cada paciente que atendermos, a cada bairro que visitarmos, e a cada momento em que alguém demandar de nossa ajuda, lembraremos de Maria e Ana no cumprimento de seu dever, com obstinação e um sorriso no rosto.

Segundo dia do primeiro contato com a UBS

O dia começou agitado na UBS, além dos atendimentos comuns de uma quinta-feira à tarde, entregas de fraldas geriátricas ocorriam, todos os beneficiados saíam com suas sacolas cheias pelos corredores, simultaneamente mulheres desfilavam satisfeitas pela oportunidade de serem escolhidas para um dia de massagens, acupuntura e curso de automaquiagem promovidos pela UBS.

Esta ação denominada Dia da Autoestima simboliza o encerramento do Setembro Amarelo, mês dedicado à atenção e combate ao suicídio. As pacientes agraciadas com esta oportunidade foram escolhidas pelas agentes comunitárias, que priorizaram mulheres que estavam sob cuidados psiquiátricos e que possuíam histórico de depressão.

Entrar na sala em que esta ação ocorria e ver a dedicação e satisfação das mulheres que participavam evidenciou a importância e a grandiosidade que uma ação como esta pode ter na vida de uma pessoa.

Enquanto aguardávamos a agente comunitária e enfermeira que nos acompanharia em nossa visita, tivemos a oportunidade de conhecer também uma sala improvisada, com a montagem dos equipamentos em um canto isolado, onde ocorriam os atendimentos dentários para comunidade.

Os atendimentos ocorrem por famílias e existe uma longa fila de espera, de modo que, se um paciente faltar no dia agendado, deve aguardar por meses, toda fila de atendimento rodar, para retornar a sua vez.

De volta à recepção encontramos Paula e Antônia, a primeira, enfermeira da unidade há mais de 10 anos, a segunda, agente comunitária, responsável pela microrregião que visitaríamos, nas proximidades da UBS.

Feitas as apresentações, iniciamos nossa caminhada. Ao chegarmos a nosso destino, o primeiro andar de um bloco de prédios de 4 andares construídos em uma área antes composta por moradias precárias como parte de um projeto habitacional, batemos à porta e somos recepcionados por um adolescente que informa que seu tio, paciente que visitaríamos, não estava em casa.

Frustrados pela oportunidade perdida, seguimos para nossa segunda opção de visita, a Dona Marisa, residente do 4ª andar, do mesmo prédio em que estávamos.

Enquanto subíamos os lances de escadas, a professora que nos acompanhava nos chamou a atenção com relação às portas dos apartamentos pelos quais passávamos.

Havia portas de todos os tipos, novas, velhas, decoradas, desgastadas, quebradas, rompidas, trincadas, de material caro e envernizadas.

Refletimos sobre essas portas, sobre o que isso simbolizava e como estas diferenças carregam consigo inúmeros significados e concluímos que, dentre estes significados, as portas, enquanto demonstram suas diferenças, anteviam o interior de cada apartamento e as condições e características de seu morador.

O poema Toda as Portas, de Gê Muniz, cujo trecho é reproduzido a seguir, traduz em parte os significados das portas pelas quais passamos:

“Uma porta batida

D’outro lado, ninguém…

(Uma outra bate também…)

Percebo raivas, mágoas

Fendendo portas recentes

Fincando-se nos batentes,

Nos horizontes das soleiras…

Saraivadas de emoções minhas,

Represadas, aos montes…

Há a porta de ontem

De aquém

E aquela de

Além de além-nada

Essa está estancada

Como há de ser

Esperando o tempo

Enferrujá-la…”

© Luso-Poemas

Chegando a nosso destino, batemos à porta da Dona Marisa, que de dentro responde perguntando quem bate. Antônia se antecipa e se identifica, informando o motivo da visita. Dona Marisa responde, em tom de surpresa, que não estava preparada para visitas e que a casa não está arrumada. Antônia, experiente, retruca, argumentando que o motivo da visita é vê-la e não as condições de arrumação de sua casa. Em resposta a este argumento, Dona Marisa cede e nos permite a entrada.

A primeira impressão que temos é de um apartamento, apesar de simples, bem organizado, espaçoso e acolhedor, com pinturas texturizadas e um sofá em frente a uma TV, com um cobertor convidativo para as tarde frias, provavelmente o local onde Dona Marisa descansava quando chegamos.

Dona Marisa, uma mulher negra, magra e que aparentava possuir em torno de 65 anos, nos recebe de maneira simples e agradável. Quando perguntada sobre seu estado de saúde, imediatamente se volta para os seus pés e informa que as manchas pretas já não estavam mais presentes. Demonstra preocupação e um grande alívio em relação a este fato.

Fumante a mais de 30 anos, convive com problemas circulatórios e pressão alta, além de um nítido problema na visão, provavelmente cataratas. Quando questionada sobre o uso de cigarros, se esquiva, dizendo que não está fumando, ao mesmo tempo que percebemos um cigarro recém apagado disposto em um cinzeiro ao seu lado. Esta é apenas uma das ocasiões em que tenta desviar a atenção e articular desculpas que facilmente são percebidas, como quando, por três vezes seguidas, informa que possui idades diferentes, 52, 67 e 62 anos, ou quando diz estar sozinha em casa e ouvimos barulhos e tosses vinda de um quarto cuja porta está fechada (mais tarde seríamos informados pela enfermeira Paula que um dos filhos mora junto com Dona Marisa, mas em segredo, para que não percam um auxilio fornecido pelo estado).

Além do filho que lá estava, Dona Marisa possui mais dois filhos vivos e um falecido, que deixou cinco netos, cujas fotos decoram suas paredes. As crianças moravam com a avó, até que sua nora entrou na justiça e conseguiu a guarda definitiva. Hoje as crianças moram em outro município.

Dona Marisa é acompanhada pela agente em consultas regulares para ajuste de suas medicações e, quando questionada se está tomando todos os seus remédios, retira de uma bolsa inúmeras cartelas e receitas, inclusive vencidas, e se confunde quando Paula tenta explicar qual das receitas e remédios ainda estão válidos.

Em meio a esta conversa, Dona Marisa questiona sobre o atendimento dentário e demonstra estar bastante envergonhada com as condições de seus dentes, aparentemente os únicos que restam são os dentes da arcada inferior. Em sua opinião, a melhor saída é retirá-los e passar a fazer uso de dentaduras. Este assunto ainda retornaria em alguns outros momentos, demonstrando um legítimo incômodo a este respeito.

A condição de Dona Marisa é agravada pelo uso excessivo de cigarros, e insistimos neste assunto, tentando convencê-la de que a melhor saída para uma vida duradoura e de qualidade seria o abandono do vício. Paula reforça a ação da UBS nesses casos, com um grupo dedicado aos dependentes de nicotina. A UBS possui inúmeras atividades voltadas à comunidade além dos grupos de apoio, como caminhadas, acupuntura, Oficina do Verde, dança circular, coral, entre outros. São atividades que aproximam a comunidade e auxiliam na melhora de condição de vida das pessoas.

Uma das atividades especiais deste mês iria acontecer um dia depois de nossa visita, a Festa da Primavera, onde a comunidade e UBS se unem com a promoção de atividades lúdicas e oferta de comidas e bebidas. Insistimos para que Dona Marisa participasse, e esta por sua vez perguntava se estaríamos presentes. Nós, como alunos, mesmo que inexperientes e incapazes de contribuir como gostaríamos, naquele momento nos sentimos importantes e sentimos que, ao menos, fizemos uma pequena diferença por estarmos ali.

Encerramos nossa visita e regressamos à UBS comentando a respeito das condições de Dona Marisa e de como ela se esquivava de nossas perguntas, uma pessoa acessível, mas melindrosa e de difícil compreensão. Nossa reflexão se encerra com a comprovação da importância da UBS na vida dessas pessoas e como profissionais como Paula e Antônia fazem a diferença em comunidades por vezes esquecidas. Dona Marisa deixou sua marca, assim como todos que contribuíram com essa nossa primeira experiência, sabemos que o tempo irá passar e que estas experiências serão mais comuns e rotineiras, mas os momentos que vivemos nestes primeiros contatos com a UBS ficarão guardados para sempre em nossa memória e com prazer compartilhamos, a partir desse relato, um pouquinho desta história que vivemos.

Muito obrigado pela leitura!

O texto acima é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

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Referências Bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Saúde. Biblioteca Virtual em Saúde. Declaração de Alma Ata sobre cuidados primários. Disponível em: < https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_alma_ata.pdf> Acesso dia 07/12/2020.

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