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Anemias hemolíticas: doença falciforme | Colunistas

Anemias hemolíticas: doença falciforme | Colunistas

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Introdução

A anemia falciforme faz parte de um grupo de doenças conhecido como síndromes falcêmicas. São distúrbios da hemoglobina em que há herança do gene de beta-globina S (S de “sickle”, foice em inglês).  Esse gene ocorre pela mudança do ácido glutâmico pela valina na posição 6 da cadeia beta. Além de ser hereditária, a anemia falciforme é caracterizada por dois fenômenos: a oclusão vascular e a hemólise.

Epidemiologia

A mutação ligada à doença falciforme era mais comum em populações descendentes da África Subsaariana, e também da Índia, da Arábia Saudita e de países mediterrâneos. Atualmente, no entanto, está presente em grande parte da população mundial, e sua prevalência no Brasil é considerável, a depender do estado, sendo uma das doenças hereditárias mais encontradas.

Acredita-se que a disseminação do gene tem ligação com a malária e o sedentarismo agrícola da espécie humana, que aumentou a transmissão por mosquito. Algo que corrobora essa teoria é o fato de existir uma conexão entre a mutação e a malária, visto que pessoas com o gene parecem ter um tipo de resistência à infecção pelo plasmódio.

Fisiopatologia

Como comentado antes, a anemia falciforme é um distúrbio genético, a homozigose da hemoglobina S.

Na cadeia beta de hemoglobina, deveria existir um aminoácido ácido glutâmico na posição 6, que se tornaria o gene normal de beta-globina. No entanto, existe uma troca de base nitrogenada adenina por tiamina, que ocasiona na substituição do ácido glutâmico pelo aminoácido valina. A hemoglobina resultante é menos solúvel que a hemoglobina normal fetal ou a hemoglobina do adulto. O polímero formado pela HbS altera a conformação da hemácia, que toma uma forma alongada, de foice, além de alterar a viscosidade do sangue.

Esses mecanismos de polimerização HbS somado ao afoiçamento das hemácias é a chave para as principais manifestações da doença, uma vez que dificulta o fluxo de hemácias, gerando a oclusão vascular e a hemólise. 

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas geralmente são mais evidentes quando existe uma crise grave ou complicação. Isso se dá porque os sintomas de anemia geralmente não condizem com a gravidade da anemia, devido a Hb S conseguir liberar oxigênio aos tecidos de maneira mais rápida que a hemoglobina adulta. Existem indivíduos que tem crises mais frequentemente e desde o nascimento, alguns morrendo na infância. Outros só desenvolvem crises vaso-oclusivas, hemolíticas ou aplásticas na adolescência.

As crises vaso oclusivas são as mais comuns. Na infância, um de seus primeiros sinais é a síndrome mão-pé, por infarto dos pequenos vasos (dactilite). Crises muito dolorosas ocorrem nos ossos do quadril (podendo afetar outros ossos, como os dos ombros), e resultam em osteonecrose de quadril ou de fêmur, mas podem também ter causa visceral.

Em crianças abaixo de 5 anos, o baço tende a ser aumentado pela hemólise, mas depois rescinde de tamanho, em decorrência de autoesplenectomia por infartos.

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(Dactilite falcêmica em recém nascido. Fonte: https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/18/2019/08/MANIFESTA%C3%87%C3%95ES-OROFACIAIS-EM-PACIENTES-COM-ANEMIA-FALCIFORME.pdf)

Complicações

Uma complicação bastante comum da doença, e causa importante de morte, é a síndrome torácica aguda. Ocorre por infecção, embolia de medula óssea necrótica, vaso-oclusão pulmonar e sequestro pulmonar, gerando acúmulo sanguíneo e piora da anemia. O paciente se apresenta com dispneia, queda de PO2, dor torácica e infiltrados pulmonares, lembrando uma pneumonia, além de serem crises recidivantes.

As crises aplásticas podem ocorrer em decorrência de processos infecciosos, as mais severas ligadas à infecção por parvovírus. São menos frequentes que outras complicações. São caracterizadas por sintomas de anemia aguda, e quando graves, até de choque hipovolêmico. Existem também as crises hemolíticas, caracterizadas por dor e aumento da destruição sanguínea, com reticulocitose.

As crises vaso-oclusivas podem ocorrer em diversas partes do organismo. Como antes mencionado, infartos no baço são comuns, mas também podem ocorrer úlceras nas pernas e infarto medular renal, podendo gerar desidratação e enurese noturna. No entanto, a mais grave das complicações vaso-oclusivas é o AVE.

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(Imagem radiológica de uma síndrome torácica aguda. Fonte: https://www.medicinanet.com.br/imagens/20160629091708.jpg)

Exames laboratoriais

Hemoglobina baixa, geralmente entre 6-9 g/dL, drepanócitos e células alvo no sangue, às vezes corpúsculos de Howell-Jolly (atrofia esplênica). À eletroforese de hemoglobina, quando Hb SS, a hemoglobina A não é detectada, enquanto a Hb F está em quantidades variáveis 5-15%, sendo a quantidade maior considerada um quadro leve da doença.

Manejo das crises e tratamento

O tratamento depende da ocorrência, mas no geral consiste de prevenir as complicações com acompanhamento médico de rotina, uso profilático de medicações, como hidroxiuréia e penicilina, como veremos a seguir.

Prevenção de crises vaso-oclusivas

O uso de hidroxiuréia é imprescindível no tratamento da anemia falciforme, pois é um fator modificante que auxilia no controle das vaso-oclusões, diminuindo as hospitalizações. O paciente sempre deve estar utilizando-a na dose máxima tolerada, existindo outras opções de medicação, mas ela é a de primeira escolha.

Manejo e prevenção das infecções

As crianças com anemia falciforme devem sempre estar com a imunização em dia (incluíndo mas não somente as vacinas contra Streptococcus pneumoniae, influenza sazonal, Neisseria meningitidis, Haemophilus influenzae B e hepatite B), além de, em crianças mais novas de até 5 anos, é possível se administrar penicilina profilática. Nessas crianças, a febre deve ser considerada uma repercussão grave, e a hospitalização se faz necessária, com coleta de cultura, hemograma e tratamento com antibióticos.

Síndrome Falcêmica Torácica Aguda

Como supracitado, é uma complicação grave da anemia falciforme, então patologias pulmonares requerem internamento hospitalar. A imagem da STA torna difícil determinar se há ou não infecção, então o ideal é que se inclua antibioticoterapia no manejo. Primeiro, devem ser solicitados alguns exames: Radiografia de tórax; Hemograma com contagem de reticulócitos; Hemocultura, BAAR e cultura de escarro (se possível); Gasometria arterial em ar ambiente ou oximetria de pulso; Títulos para Mycoplasma pneumoniae. Se raio-x de tórax normal, mapeamento cardíaco. 

Por ser uma condição dolorosa, o paciente deve ser tratado com analgesia necessária. Como antibioticoterapia, uma cefalosporina de terceira geração (como ceftriaxone ou cefuroxime)  e, se sinais de Mycoplasma, deve ser associada com claritromicina ou eritromicina via endovenosa. 

Oxigênio deve ser administrado, se a pessoa tiver hipóxia (PaO2< 80 mm Hg) demonstrada pela gasometria arterial ou oximetria de pulso. Se houver derrame pleural, toracocentese.

Transfusão somente se existir exacerbação do quadro, com queda da PaO2<70 mmHg ou queda de 25 % do nível basal; Insuficiência cardíaca congestiva, pneumonia rapidamente progressiva ou dispneia acentuada.

Cura?

O único tratamento permanente disponível é o transplante de células tronco hematopoiéticas de um irmão doador e condicionamento mieloablativo, porém essa opção está reservada apenas para crianças e adolescentes com casos mais graves, embora já existam ensaios clínicos para a oferta em adultos.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

  1. DOENÇA falciforme: condutas básicas para tratamento. [S. l.], 2013. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doenca_falciforme_condutas_basicas_tratamento.pdf. Acesso em: 15 out. 2021.
  2. FIELD, J. J. Overview of the management and prognosis of sickle cell disease. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/overview-of-the-management-and-prognosis-of-sickle-cell-disease#!. Acesso em: 15 out. 2021.
  3. VICHINSKY, E.P. Overview of the clinical manifestations of sickle cell disease. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/overview-of-the-clinical-manifestations-of-sickle-cell-disease. Acesso em: 15 out. 2021.
  4. MECHANISMS of vaso-occlusion in sickle cell disease. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/mechanisms-of-vaso-occlusion-in-sickle-cell-disease#!. Acesso em: 15 out. 2021.
  5. HOFFBRAND, A. V. Fundamentos em Hematologia de Hoffbrand. 7. ed. [S. l.]: Artmed, 2017. E-book (370 p.).