Carreira em Medicina

Caso Clínico: Encefalopatia hipertensiva no departamento de emergência | Ligas

Caso Clínico: Encefalopatia hipertensiva no departamento de emergência | Ligas

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Área: Emergência

Autores: Amanda Lopes Lorentz

Revisor(a): Adriano Gutemberg Neves Dias

Orientador(a): André Gusmão Cunha

Liga: Liga Acadêmica de Emergência e Trauma da UNEB – LIET

Apresentação do caso clínico

H.S.A, masculino, 57 anos, casado, motorista de ônibus, natural e procedente de Salvador, Bahia. Paciente chega ao departamento de emergência, acompanhado da esposa, queixando-se de cefaleia há cerca de 2 horas, de evolução progressiva, forte intensidade, holocraniana, associado a alteração visual (descrita como “pontos que se movimentam” – sic.), fraqueza em MMII e um episódio de vômito. Nega dor precordial, dispneia e quaisquer outros sintomas de início agudo ou subagudo. Refere palpitações e dispneia aos médios esforços de longa data. Acompanhante informa que o paciente possui diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica há 6 anos, mas não realiza acompanhamento regular com o especialista e não faz uso adequado das medicações. Nega internamentos prévios e alergias alimentares e/ou medicamentosas. Medicações de uso prévio: losartana, 50mg, 1x ao dia (uso irregular).

Ao exame, paciente em regular estado geral, com comportamento agitado e resposta verbal confusa, apresentando rebaixamento do nível de consciência (Glasgow = 13), mucosas normocrômicas, anictérico, acianótico e afebril ao toque. Sinais vitais: FC = 80 bpm, FR = 18 ipm, PA = 260 × 140 mmHg (com pouca variação entre os dois braços), SatO2 98% em ar ambiente. Aparelho respiratório: Tórax de conformação habitual. Expansibilidade preservada. Murmúrio vesicular presente e simétrico, sem ruídos adventícios; Aparelho cardiovascular: Precórdio ativo, ictus visível e palpável no 5º EIC na LHC, impulsivo, medindo duas polpas digitais. BRNF, presença de B4, sem sopros; Abdome: Globoso, as custas de panículo adiposo, flácido. Timpânico a percussão. Indolor a palpação superficial e profunda. Sem massas ou visceromegalias; Extremidades: Pulsos periféricos presentes e simétricos, sem edema. Neurológico: Força muscular grau 4 em membro inferior esquerdo e grau 3 em membro inferior direito, fala disártrica, restante do exame normal; Fundoscopia: Presença de edema de papila e pequena hemorragia intraocular.

Foram iniciadas as medidas iniciais de suporte no departamento de emergência (monitorização, oxigênio e obtenção de acesso venoso periférico) e realizados exames laboratoriais (hemograma, eletrólitos, ureia, creatinina e glicemia), eletrocardiograma, radiografia de tórax e tomografia computadorizada de crânio (sem contraste).

Os resultados dos principais exames estão registrados a seguir.

Exames complementares:

Hemograma completo
Eritrograma Valores encontrados Valores de referência
Hemácias (milhões/mm3) 4,77 3,9-5,2
Hemoglobina (g/dL) 14,0 11,5-16,0
Hematócrito (em %) 42,2 35,0-47,0
VGM (fL) 88,5 80-97
HGM (pg) 29,4 26-34
CHGM (g/dL) 33,2 31-37
RDW 12,5 11,0-15,0
Leucograma Valores encontrados Valores de referência
Leucócitos (por mm3) 6190 4000-10000
Bastões (% – mm3) 0 0 0-0,6 0-600
Segmentados (% – mm3) 52 3219 45-65 2000-6500
Eosinófilos (% – mm3) 2 124 1,0-4,0 45-400
Basófilos (% – mm3) 1 62 0-2,0 0-200
Linfócitos (% – mm3) 38 2352 20-39 900-3900
Linf. Atípico (% – mm3) 0 0 0 0
Monócitos (% – mm3) 7 433 2,0-10,0 80-1000
Plaquetograma Valores encontrados Valores de referência
Plaquetas (por mm3) 226000 150000-450000
Outros (laboratório) Valores encontrados Valores de referência
Creatinina (mg/dL) 1,0 0,7-1,2 (homens)
Ureia (mg/dL) 35 16-40
Sódio (mmol/L) 140 135-145
Potássio (mEq/L) 4,3 3,5-5,5
Glicemia (mg/dL) 168 <200 (sem jejum)
Sumário de urina
Exame físico Valores encontrados Valores de referência
Cor Amarelo claro Não se aplica
Aspecto Límpido Límpido
Densidade 1015 1015-1025
pH 6,0 5,0-7,0
Exame químico Valores encontrados Valores de referência
Proteína Presente (3+) Ausente
Hemoglobina Ausente Ausente
Glicose Ausente Ausente
Corpos cetônicos Ausente Ausente
Bilirrubinas Ausente Ausente
Urobilinogênio Normal Até 1mg/dL
Leucócitos Negativo Negativo
Nitrito Negativo Negativo
Sedimentoscopia Valores encontrados Valores de referência
Piócitos Raros piócitos Até 4 por campo
Hemácias Em média 3 por campo Até 3 por campo
Células epiteliais Raras Raras (até 3 por campo) Algumas (4 a 10 por campo) Numerosas (>10 por campo)
Bactérias Algumas Raras (até 10 por campo) Algumas (11 a 99 por campo) Numerosas (>99 por campo)

Eletrocardiograma

TC de crânio

Considerando-se o diagnóstico de encefalopatia hipertensiva, foi iniciado o tratamento, com posterior melhora completa do quadro.  

Questões para orientar a discussão           

1. O que diferencia uma urgência hipertensiva e emergência hipertensiva?

2. Quais achados da história, exame físico e exames complementares corroboram para o diagnóstico de encefalopatia hipertensiva?

3. Quais os principais diagnósticos diferenciais para este caso?

4. De forma geral, quais as principais diferenças no manejo de uma urgência hipertensiva e uma emergência hipertensiva?

5. Como o paciente do caso deve ser manejado?

Respostas

1. A hipertensão arterial sistêmica (HAS) afeta quase 1/4 da população adulta, o que torna muito frequente atender pacientes com pressão arterial (PA) elevada no departamento de emergência. Nesse contexto, os pacientes podem apresentar três níveis de elevação da PA: (1) PA muito elevada (hipertensão grave), onde os pacientes apresentam PA entre 180×120 mmHg e menor que 220×130 mmHg, sem lesão aguda e progressiva de órgão alvo (aparelho cardiovascular, sistema renal e sistema nervoso central), podendo os pacientes manifestarem queixas variadas, por exemplo, cefaleia, fraqueza, mal-estar, ansiedade, tontura; (2) Urgências hipertensivas são caracterizadas por elevação muito alta da PA, maior ou igual a 220×130 mmHg, sem lesão aguda e progressiva de órgão alvo, também podendo o paciente ser sintomático; (3) Emergências hipertensivas, onde além da PA muito elevada (≥220×130 mmHg) também há lesão aguda e progressiva de órgão alvo e risco iminente de morte. O valor considerado elevado é empírico. Há determinadas condições clínicas que devem ser consideradas emergências hipertensivas, apesar de valores pressóricos inferiores aos citados pela definição, como na eclampsia e na glomerulonefrite aguda. Inúmeras são as classificações de emergências hipertensivas: algumas são verdadeiras emergências hipertensivas (hipertensão com retinopatia avançada, encefalopatia hipertensiva), outras são emergências médicas (ex. SCA, hemorragias e eventos isquêmicos no SNC), e a elevação pressórica é um fator coadjuvante, sem comprovação de que a administração de fármacos anti-hipertensivos com a finalidade de promover uma redução da PA de maneira acentuada e aguda mudem sua história natural.

2. Primeiramente, para definir uma emergência hipertensiva é necessário buscar no paciente com PA muito elevada (no caso apresentado, PA = 260×140 mmHg), elementos na história e exame físico que apontem para acometimento de órgãos-alvo. As manifestações variam de acordo com o sistema acometido.

A encefalopatia hipertensiva é definida como uma síndrome cerebral orgânica aguda que ocorre como resultado da falência do limite superior da autorregulação vascular cerebral. Caracteriza-se por início agudo ou subagudo de cefaleia, letargia, confusão (rebaixamento do nível de consciência) e distúrbios visuais; crises epilépticas (focais ou generalizadas), déficits focais e sinais de hipertensão intracraniana também podem ocorrer. No exame de fundo de olho pode ser evidenciado edema de papila, hemorragias e exsudatos.

Além disso, no caso apresentado existem diversos fatores que apontam para HAS crônica mal controlada, importante fator de risco para essa condição, como é o caso de palpitações e dispneia aos médios esforços de longa data; má adesão ao tratamento; hipertrofia ventricular esquerda, traduzidos clinicamente como aumento do ictus, presença de B4, sobrecarga ventricular esquerda encontrada no eletrocardiograma e proteinúria encontrada no sumário de urina.

3. Encefalopatia hipertensiva pode ocorrer concomitantemente ou ser confundida com outras afecções cerebrovasculares, como por exemplo, acidente vascular cerebral isquêmico, hemorragia subaracnóide e hemorragia intraparenquimatosa. TC de crânio deve ser realizada rapidamente, sobretudo no paciente com déficit neurológico focal ou história de alteração neurológica súbita. Além disso, entram na lista de diagnósticos diferenciais tumores e intoxicações exógenas. Nesse caso a TC de crânio sem contraste ajuda a afastar, principalmente, a possibilidade de sangramentos no sistema nervoso central.

4. No manejo das urgências e emergências hipertensivas existem diferenças no que tange principalmente a velocidade de redução da PA e o tipo de fármaco/via de administração utilizada para este fim. Na urgência hipertensiva a redução da PA pode ser realizada em um espaço razoável de tempo, medido em horas, sendo, preferencialmente, menor do que 24 horas. A medicação empregada, em geral, inclui as formulações administradas por via oral (VO), seguida de um período de observação. Não é indicado o uso de medicações parenterais nas urgências hipertensivas, pois o risco de diminuir a PA agudamente nesses casos é maior que o benefício apresentado (risco de hipotensão sintomática e hipoperfusão em órgãos vitais).  Por outro lado, devido à gravidade do comprometimento sistêmico e risco iminente de morte, as emergências hipertensivas devem ser controladas em um curto espaço de tempo, sendo, nesse caso, a redução da PA realizada em minutos ou poucas horas. A rapidez em reduzir os níveis pressóricos exige, nesse caso, a administração de medicação por via parenteral. É importante, sempre que possível, o monitoramento adequado em unidade de tratamento intensivo e uma diminuição cautelosa e gradativa da PA, sendo não mais do que 25% do valor aferido no momento da internação, em um período de minutos a uma hora; só após a constatação de que o paciente está estável a redução deverá ser feita para valores menores do que 160×100 mmHg, em um período de 2 a 6 horas. Esse processo é necessário para prevenir eventuais complicações com o tratamento, tais como isquemia em órgãos-alvo.

5.  Inicialmente devem ser realizadas as medidas de suporte clínico. É de grande importância para os casos de encefalopatia aguda a proteção das vias aéreas (risco de vômitos e aspiração; realizar intubação orotraqueal, se necessário), realizar monitorização, prover oxigênio e disponibilizar um acesso venoso de grosso calibre com coleta de exames (MOV). A redução da PA deve ser feita de acordo com as recomendações apresentadas na questão anterior. Com relação ao anti-hipertensivo de escolha nitroprussiato de sódio é o anti-hipertensivo mais usado no Brasil (pouca disponibilidade dos outros fármacos no Brasil). No entanto, para encefalopatia hipertensiva, labetalol, esmolol ou nicardipina são as drogas de escolha.

  • Se nitroprussiato de sódio: iniciar com 0,3 μg/kg/min.
  • Se esmolol: Ataque de 250–500 μg/kg durante 1–3 min; Manutenção de 50–200 μg/kg/min.
  • Se labetalol: Iniciar com a infusão de 2 mg/min; titular até resposta satisfatória ou até a dose máxima de 300 mg.
  • Se nicardipina: Iniciar com 5 mg/h; Aumentar em 1 a 2,5 mg/hora, ao máximo de 15 mg/hora.