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HISTÓRIA CLÍNICA
L.R.F., 31 anos, masculino, contador, natural e procedente de cidade de grande porte, encaminhado para hospital pela equipe do serviço de atendimento móvel, vítima de assalto a mão armada, na região da estrada velha do aeroporto há, aproximadamente, uma hora antes de chegar à unidade, com três perfurações por arma de fogo (PAF) em braço esquerdo e uma em antebraço direito, fratura exposta de úmero esquerdo e de ulna direita (com orifício de entrada e saída apenas em antebraço).
Paciente alerta/vigil, queixa-se de dor intensa em locais da PAF, nega desmaio. Perda de sangue sem reflexos em hemodinâmica, realizada hemostasia por compressão pela equipe de atendimento pré-hospitalar.

Figura 1. (A) Braço esquerdo com três perfurações por arma de fogo;

(B). Perfuração de saída em antebraço direito, visualiza-se lesões em epiderme por estilhaços.
AVALIAÇÃO PRIMÁRIA
Geral: Regular Estado Geral, lúcido e orientado, corado, taquipneico, afebril.
Dados Vitais: FC: 92bpm; FR: 24 ipm; PA: 140 x 80 mmHg; sp02: 96%.
A (vias aéreas): Vias aéreas pérvias (VAP), traquéia centralizada e móvel sem enfisema subcutâneo, sem uso de colar cervical;
B (respiração e ventilação): Murmúrios vesiculares bem distribuídos (MVBD), sem ruídos adventícios (RA), expansibilidade preservada e simétrica;
C (circulação): Bulhas rítmicas normofonéticas (BRNF) em dois tempos, sem sopros, pele quente, pulso radial cheio, forte e simétrico, tempo de enchimento capilar menor que dois segundos (TEC < 2s);
D (avaliação neurológica): Glasgow 15, pupilas isocóricas fotorreagentes;
E (exposição completa): sem outros sangramentos e/ou lesões visíveis. Realizada prevenção de hipotermia;
Antecedentes Pessoais (HISTÓRIA SAMPLA): sinais vitais estáveis. Nega alergia alimentar e medicamentosa, uso de medicamentos e doenças de base (Hirpentensão Arterial Sistêmica e Diabetes Mellitus). Ingeriu alimento há aproximadamente 2 horas.
EXAME FÍSICO SEGMENTAR
Vigil, alerta, comunicativo e colaborativo. Glasgow 15.
Murmúrios Vesiculares Bem Distribuídos, sem ruídos adventícios. Sem evidências de hematomas, sem crepitações. Som claro pulmonar em todos os quadrantes à persussão.
Bulhas Rítmicas Normofonética (BRNF) em dois tempos, sem sopros. Precórdio calmo. Ictus cordis em linha média clavicular, no quinto espaço intercostal, medindo 2 cm, em ritmo regular.
Semigloboso, Ruídos Hidroaéreos +, indolor à palpação superficial e profunda. Ausência de cicatrizes e estrias. Cicatriz umbilical retrusa e centralizada.
Membro Superior Direito: pulso radial e ulnar palpáveis em todo o trajeto; sem sangramento ativo e hematomas. Ausência de frêmitos e sopros.
Membro Superior Esquerdo: pulso braquial, radial e ulnar presentes. Ausência de frêmitos e sopros, com as lesões mostradas na figura.
CONDUTA INICIAL
MONITORIZAÇÃO – OXIGÊNOTERAPIA –VENÓCLISE
Analgesia, hidratação lenta – manutenção de acesso venoso, antibióticoterapia profilática com cefalosporina de primeira geração e aminoglicosídeo, profilaxia antitetânica, estabelecimento de dieta zero, aviso de reserva de sala cirúrgica, repouso livre e coleta/realização de exames.
EXAMES COMPLEMENTARES
Hemograma completo e testes de coagulação dentro dos parâmetros de normalidade.
Exames de imagem: Radiografia de braço esquerdo e antebraço direito.
ECG: Laudo normal.

Figura 2. Imagens pré-operatórias: A – Radiografia de braço esquerdo. B – Radiografia de antebraço direito. São visualizados pontos radiopacos relacionados a fragmentos dos projéteis (lado A). Nota-se presença de fratura ulnar (lado B) e enfisema subcutâneo em região da sindesmose radio-ulnar (lado B), a trajetória transfixante do projétil justifica a presença do ar. Visualiza-se uma pulseira de origem afoxé – com um búzio presa à mesma (lado B) que não deve ser confundida com projétil no antebraço direito.
PONTOS DE DISCUSSÃO
1. Fratura exposta – sua definição e classificação.
2. Conduta cirúrgica desenhada para o caso e técnica e método utilizado.
3. Violência urbana como uma triste e endêmica realidade brasileira.
DISCUSSÃO
A definição de fratura exposta (fx) atualmente possui um conceito ampliado e é entendida como “uma grande lesão de partes moles com um osso fraturado no meio” ou de forma mais pragmática como “fratura óssea com perda da continuidade da epiderme e comunicação com o meio externo”. O Tratado de Fratura de Rockwood aborda a definição: “Quando a ruptura da pele e tecidos moles subjacentes permite a comunicação direta com a fratura e seu hematoma”.1 É importante ressaltar que o diagnóstico deve ser clínico e radiológico. A classificação da fratura exposta é contemplada pela escala de Gustilo e Anderson (GA) que gradua a mesma em um crescente de pior prognóstico. A escala de GA é internacionalmente utilizada para comunicação médica bem como é amplamente empregada no Brasil nas regulações e transferências de pacientes.2-4 A classificação mais frequentemente utilizada para classificar fraturas abertas encontrada na literatura foi a de GA com 78,5% das escolhas entre especialistas. A classificação da AO- -ASIF (Arbeitsgemeinschaftfür Osteosynthesefragen – Association for the Study of Internal Fixation) foi evidenciadaem 22,9% das fontes.2 Assim optamos pela classificação GA neste caso.

Trauma que envolva ferimento de alta energia como PAF de grande calibre (a partir de .40 – pistola) classificam a fratura como III também. No nosso caso não foi realizada balística, mas pela experiência do cirurgião inferiu-se que eram projéteis de .38. A peculiaridade do caso envolve o múltiplo trauma e sua grande lesão de partes mole associada. Desta forma, no caso classificamos a Fx de úmero como GA IIIa e a Fx de Ulna como GA II. Existe ainda a classificação AO qual também é linguagem internacional na localização e classificação das fraturas, criada por grupo da Suíça. No caso classificamos as fx como: AO 12B3 para fx do úmero e AO 22A3 para fx da ulna.8 Foi definida conduta de urgência para limpeza mecânico cirúrgica (LMC) e de redução aberta e fixação interna (RAFI) das fraturas registradas na Figura 2. O tratamento das fraturas expostas deve ser realizado com limpeza e desbridamento cirúrgico, estabilização da fratura, uso de antibióticos e cobertura precoce das partes moles.1 Recentemente, com a procura por técnicas minimamente invasivas, uma nova opção terapêutica surgiu para o tratamento dessas fraturas: as placas em ponte.10 A radiografia de braço esquerdo e antebraço direito são fundamentais para planejamento e conduta cirúrgica da RAFI. Definida exploração aberta do braço esquerdo com variação de técnica de acesso cirúrgico de incisão delto-peitoral com extensão lateral para o úmero. Foram removidos dois projéteis de arma de fogo em meio ao foco de fratura cominuída, estilhaços metálicos presentes visualizados foram removidos. No entanto não é objetivo da cirurgia remover todos os mínimos fragmentos, essa peculiaridade do caso pode ser visualizada na radiografia do braço esquerdo (Figura 2A) na qual projéteis ocupam o foco da fratura, a não remoção dos mesmos impossibilitaria o sucesso da cirurgia e recuperação do paciente inviabilizando a consolidação óssea e alinhamento anatômico do membro. Após exploração foi seguida a lavagem de área contaminada, remoção de coágulos e fragmentos/corpos estranhos visíveis. Optado por princípio da estabilidade relativa – permite movimento no foco da fx. O método realizado compreende tutor extra medular por via de placa ponte (dynamic compression plate – DCS) de 14 orifícios (maior disponível em centro cirúrgico – material DCS larga) e fixação com formação de “saco de ossos”.6,10 Em região distal de antebraço direito foi realizada incisão em linha ulnar, lavagem de foco contaminado com remoção de fragmentos metálicos, localização de fratura e estabilização com placa DCS de cinco orifícios. Não houve intercorrências nem maiores complicações na cirurgia. Em acompanhamento 24 e 48 horas pós- -operatório o paciente apresentava ótima recuperação, sinais vitais estáveis, apirético e sem sinais de lesão vascular e nervosa. No terceiro dia o paciente foi transferido para unidade de menor complexidade para dar continuidade ao tratamento e acompanhamento por equipe de ortopedia.
IMAGEM PÓS-OPERATÓRIA

Figura 3. Radiografia de braço esquerdo
Em radiografia do pós-operatório visualiza-se a placa ponte ligando fragmentos distal e proximal do úmero esquerdo com formação de “saco de ossos” e fixação com parafusos proximais e distais; fragmentos metálicos vestigiais são normais.

Figura 4. Radiografia de antebraço direito
Observa-se na Figura 4, placa em terço distal de ulna direita. Fragmentos metálicos vestigiais são visualizados.
IMPACTO SOCIAL
Por fim, mas não menos importante, trazemos à tona alguns dados da violência urbana que assolam nosso país e mais especificamente o estado da Bahia. Uma breve comparação com a realidade internacional é feita. No Brasil, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública em sua mais atual versão (2014), nossos dados superam inclusive a realidade de países declaradamente em guerra.9 Os dados são alarmantes e trazem números como: a cada 10 minutos uma pessoa é assassinada em nosso país; foram mais de 53 mil mortos decorrentes de violência urbana classificada como assassinato doloso ou latrocínio (roubo seguido de morte). O recente trabalho aponta um aumento de 1% em relação ao último publicado.9
Uma comparação preocupante é feita entre dados policiais do Brasil e EUA: entre os anos de 2009-2013 foram mortos por policiais brasileiros aproximadamente 11.197 pessoas. Por sua vez entre os anos de 1983-2012 a polícia americana matou 11.090 pessoas. Ou seja, em um período de cinco anos os policiais brasileiros mataram o equivalente ao que as polícias dos EUA mataram em 30 anos.9 O gasto com segurança pública (custos da violência que engloba medidas socioeducativas, prisões etc.) ultrapassa os 5% do PIB brasileiro, um montante de 250 bilhões de reais aproximado, quase metade relacionada com a perda de vidas humanas. Países como EUA, Reino Unido, França e Chile juntos não gastaram mais do que 1,5% do PIB cada um.9
Possuímos em nossa federação 16 cidades selecionadas entre as 50 mais violentas do mundo. Salvador no estado da Bahia configura a 13ª cidade mais violenta do mundo, dentre as avaliadas.5 A Bahia tem o terceiro maior número de mortos por políciais no Brasil, fica atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.9
OBJETIVOS DE APRENDIZADOS / COMPETÊNCIA

PONTOS IMPORTANTES
A avaliação primária do trauma por técnica do ABCDE é o método proposto pelo ATLS (Advanced Trauma Life Support® – Suporte Avançado de Vida no Trauma) que prioriza identificar lesões que comprometem a vida do paciente e, concomitantemente, estabelecer condutas para a estabilização dos sinais vitais e tratamento dessas alterações. Esse programa sistematizou o atendimento inicial ao doente traumatizado, melhorando consideravelmente o prognóstico. Utilizar a escala de GA é importante, mas é imprescindível levar em consideração situações específicas caso a caso. Por exemplo, ferimentos pequenos com grande poder de infecção (vide acidentados em zona rural, presença de fezes em curral que contaminam o foco da fratura exposta) levam a uma classificação GA automaticamente para III. Deve-se tratar todo paciente, vítima de trauma, como grave e potencialmente de alto risco. Não esquecer a abordagem completa e seguimento crucial do ATLS e é necessário entender a relevância da atuação de uma equipe multidisciplinar e relação sincronizada com todos. A integração das ações torna-se importantíssima e com o desfecho benéfico para aquele que é nossa missão: o paciente.