Neurologia

Caso clínico: Hidrocefalia de Pressão Normal | Ligas

Caso clínico: Hidrocefalia de Pressão Normal | Ligas

Compartilhar
Imagem de perfil de Comunidade Sanar

Paciente do sexo masculino, 63 anos, pardo, advogado, casado, católico, procedente e residente de Campo Grande.

Queixa principal

Esquecimentos recorrentes e progressivos há cerca de 2 anos

História da Doença Atual

Paciente procurou o ambulatório de neurologia com queixa de esquecimentos recorrentes e progressivos como, por exemplo, deixar o fogão aceso, não lembrar onde deixou a chave e esquecer de pagar algumas contas, que começaram há cerca de 2 anos. Relata também estar com dificuldade para andar há 4 anos, pois parece que seus pés estão grudados no chão. Há cerca de 6 meses não consegue chegar ao banheiro antes de urinar.

Antecedentes pessoais, familiares e sociais

Paciente diabético e hipertenso, não relata intercorrências na infância e adolescência, apresenta calendário vacinal atualizado, estrutura familiar estável. Paciente possui situação econômica estável,  realiza atividades de lazer, nega etilismo e tabagismo. Paciente nega uso de dietas vegetarianas.  Alega que a mãe possui diabetes e o pai hipertensão. Paciente nega presença de tremores, alterações no sono, hospitalizações, hemotransfusões, alergias, traumatismo, alucinações, histórico de infecções do SNC, AVC ou TCE prévios.

Exame físico

Ao exame físico, o paciente encontrava-se em estado geral regular, lúcido e orientado em tempo e espaço, afebril, acianótica, anictérico, hidratado, normocárdico e normotenso.

Ao exame físico neurológico foi encontrada uma marcha magnética, de base alargada, lenta e com aumento de passos (9 passos) para rotação em 180 graus. Seu teste neuropsicológico demonstrou um alentecimento cognitivo, com déficits leves a moderados nas funções executivas. Foi realizado o mini exame do estado mental, com pontuação de 22.  O reflexo fotomotor direto e consensual estavam presentes e os nervos cranianos sem alterações. Motricidade, reflexos e sensibilidade não apresentavam alterações. Demais sistemas encontram-se sem alterações.

Suspeitas diagnósticas

  • Hidrocefalia de pressão normal;
  • Demência vascular;
  • Parkinsonismo;
  • Hematoma subdural crônico;
  • Demência de Alzheimer.

Exames complementares

Foram solicitados exames complementares: hemograma, tomografia de crânio sem contraste, punção liquórica e sorologias para sífilis e HIV. O hemograma não evidenciou nenhuma alteração e as sorologias foram não reagentes. Os níveis de vitamina B12 E B1 estavam normais.

A punção liquórica evidenciou LCR com contagem de células, proteína e glicose normais, com pressão de abertura normal.

LAUDO: Na TC de crânio foram constatadas, por meio do cálculo do índice de Evans, uma ventriculomegalia e hidrocefalia comunicante, com atrofia cortical leve. Não foram encontrados sinais de isquemia ou presença de hematoma subdural crônico.

Após a realização dos exames, o neurologista responsável pelo caso solicitou uma punção liquórica para retirada de 30 ml de LCR, após a qual o paciente referiu melhora na deambulação.

Foi indicada como medida terapêutica para o caso uma derivação ventriculoperitoneal, a qual foi realizada 1 mês após a consulta. Após 3 meses do procedimento, o paciente voltou ao ambulatório relatando não sentir mais dificuldade em caminhar e ausência de esquecimentos, assim como da incontinência urinária.

Diagnóstico

A Hidrocefalia de Pressão Normal, ou síndrome de Hakim-Adams, é uma hidrocefalia comunicante insidiosa, na maioria das vezes idiopática, que se não tratada precocemente pode gerar déficits cognitivos, os quais geralmente são reversíveis com o tratamento adequado. O nome da doença é devido ao achado de pressão de abertura do líquor normalmente durante a punção liquórica, pois seu desenvolvimento é lento e permite ao tecido encefálico compensar o aumento ventricular.

Além da alteração cognitiva, essa doença também gera alteração da marcha e incontinência urinária. O surgimento dessas alterações não é simultâneo e geralmente as alterações de marcha são os achados mais precoces. Sua fisiopatologia decorre da compressão de vias neurais, sobretudo as originadas no lobo frontal, relacionadas com a cognição, marcha e controle da micção, devido ao aumento dos ventrículos laterais, os quais apresentam uma ampla superfície de contato com estruturas do lobo frontal e parietal. 

Todos os achados da tríade estavam presentes no caso clínico, o que nos faz pensar em hidrocefalia de pressão normal, sendo essencial a exclusão de outras causas de declínio cognitivo, como infecções (meningite tuberculosa, neurossíflis, HIV), demência vascular (múltiplas isquemias devido à doença cerebrovascular), doenças degenerativas, com destaque para a doença de Alzheimer e Parkinson, hematomas subdurais crônicos, depressão e síndrome de Wernicke-Korsakoff.

Discussão do caso de Hidrocefalia De Pressão Normal

1. Qual a tríade característica da HPN que permite a suspeição diagnóstica?

A tríade clássica da HPN é composta de alterações cognitivas, ataxia de marcha e urgência urinária que pode evoluir para incontinência urinária. Seu quadro clínico decorre de um mecanismo de pressão mecânica no circuito entre o córtex frontal e os núcleos da base e as vias periventriculares que se direcionam ao centro sacral da bexiga urinária devido à hidrocefalia comunicante. É uma doença rara, insidiosa e que constitui uma importante causa de demência reversível em idosos, compondo 5% destas.

A ataxia de marcha é a manifestação mais frequente, precoce e pode estar acompanhada de sinais extrapiramidais. Geralmente se manifesta através de uma “marcha magnética”, na qual o paciente refere dificuldade para começar a deambulação. Expressões como “pés grudados no chão” são comuns.

O comprometimento cognitivo pode ser variado, mas geralmente há lentidão psicomotora, dificuldade em manter a atenção e concentração, apatia e disfunção executiva. A incontinência urinária costuma ser o achado mais tardio da doença.

É essencial que sejam solicitados exames que possam contribuir para a investigação de diagnósticos diferenciais, como hemograma, dosagem de vitaminas, sobretudo B12 e B1, coleta de líquor para exclusão de infecções, assim como as sorologias para HIV e sífilis. Os exames de neuroimagem são essenciais para a investigação de causas comuns, como demência vascular e Alzheimer. Na demência vascular geralmente são encontradas áreas de leucoaraiose e pequenas áreas de isquemia, enquanto na doença de Alzheimer atrofia cortical e do hipocampo são os achados mais comuns. As duas etiologias podem estar presentes concomitantemente. Além disso, os exames de imagem, como TC e RMN, auxiliam na exclusão de hematomas subdurais crônicos. Na anamnese, histórico de etilismo sempre deve ser pesquisado para investigação de síndrome de Wernicke-Korsakoff.

2. Qual a causa da HPN?

A HPN pode ser idiopática, forma mais comum, ou secundária. Ambas cursam com diminuição na reabsorção do LCR pelas granulações aracnóideas e são classificadas como hidrocefalias comunicantes. As principais etiologias da HPN secundária são: hemorragia subaracnóidea, traumatismo cranioencefálico e meningite.

3. Quais são os principais achados de neuroimagem?

Os principais exames de neuroimagem utilizados são TC e RM de crânio. Os principais achados são: dilatação ventricular desproporcional à atrofia cortical (figura do caso) e sinais de transudação ependimária nas regiões periventriculares (figura 2), sobretudo no córtex frontal. A RM é o exame mais sensível para a detecção dessas alterações, além de permitir um estudo dinâmico do fluxo do LCR. A dilatação ventricular é avaliada a partir do índice de Evans (figura abaixo), no qual se divide a distância entre os dois cornos frontais do ventrículo lateral pela maior distância entre a tábua óssea interna(figura 3). Resultados maiores que 0,3 indicam dilatação ventricular.

Figura 2: Transudato ependimário.
Figura 3: cálculo do índice de Evans

4. Qual é a principal medida terapêutica na HPN?

A derivação ventriculoperitoneal é a medida terapêutica mais utilizada, com o intuito de reduzir a hidrocefalia. Sua eficácia pode ser estimada através do Tap Test, no qual são retirados de 20 a 30 ml de LCR por punção liquórica em sessões espaçadas e é avaliado se há melhora clínica. Quando esta é positiva o tratamento é indicado. As principais complicações do tratamento são as infecções e o desenvolvimento de hematomas subdurais. Sua eficácia é maior quando realizado no início do tratamento, sendo fundamental o diagnóstico precoce.

Conclusão

Apesar de ser uma doença rara, trata-se de causa reversível de demência e deve sempre ser aventada em casos de alterações cognitivas em idosos. Os exames de neuroimagem são essenciais para seu diagnóstico e constituem uma ferramenta essencial.

Autores e revisores

Liga: Liga Acadêmica de Radiologia da Bahia  – @larb.unime

Autor: Vinicius Cardoso Rocha

Autora: Mirella Cardoso dos Santos Oliveira

Revisora: Mariana Roberta Santos de Melo

Orientadora: Drª Lara  Cardoso

O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de Ligas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.


Referências

GRAFF-RADFORD, N. et. al. Normal Pressure Hydrocephalus. Continuum (Minneapolis Minn.), v. 25, n. 1, p. 165 – 186, fev. 2019.

SANVITO, W. Síndromes Neurológicas: Acrônimos e Epônimos. 4° Ed. Rio de Janeiro: Editora Atheneu, 2019.