Carreira em Medicina

Caso Clínico: Neoplasia do Trato Gastrointestinal Superior | Ligas

Caso Clínico: Neoplasia do Trato Gastrointestinal Superior | Ligas

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Nesse caso teremos a oportunidade de revisar disfagia, neoplasia, e dispepsia. É um relato de caso adaptado da realidade, para manter a anonimidade de nosso paciente, que a partir dos detalhes podemos questionar, e revisar algumas patologias gastrointestinais. Vamos lá?

Identificação do paciente

Benjamin Costa Saramandaia, 51 anos, sexo masculino, heretossexual, natural e procedente de Salvador (Bahia), afrodescendente, testemunha de Jeová, trabalha com serviços gerais (pintor, segurança, obras em geral).

Grau da informação: Regular.

Queixa principal

Dificuldade para deglutição há 2 meses e meio.

História da doença Atual (HDA)

Paciente refere disfagia de início abrupto para sólidos há aproximadamente dois meses e meio, diz se sentir “entalado” ao comer alimentos sólidos, se alimentando apenas de alimentos líquidos e pastosos desde então. Relata, ainda, dor em queimação em região epigástrica, que se iniciou juntamente com a disfagia, e o levou a procurar atendimento médico em uma Unidade de Pronto Atendimento, na qual foi prescrito omeprazol, buscopam e outro medicamento o qual paciente não soube informar o nome (SIC). Refere perda de peso significativa (20 Kg em 2 meses) e alteração do ritmo intestinal, última dejeção há 4 dias com fezes em cíbalos. Afirma estar com o apetite mantido, nega odinofagia, náuseas, vômitos, melena e enterorragia.

Antecedentes pessoais, familiares e sociais

Paciente alega ser heterossexual e apresentar vida sexual ativa. Negou diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica. Negou alergias, transfusões sanguíneas e cirurgias prévias. Relatou 03 internamentos para o tratamento do alcoolismo. Relata ter levado uma facada em região de transição toraco-abdominal esquerdo após uma briga com o seu irmão há 04 anos. Quando questionado a respeito de medicações em uso, alegou utilizar Diazepam, via oral, 01 vez ao dia.

Com relação aos hábitos de vida, o paciente afirmou ser sedentário, ex-etilista (iniciou o consumo de álcool aos 16 anos, e bebia todos os tipos de bebida), com histórico de alcoolismo e tratamento, está em abstinência alcoólica há 09 meses, tabagista (35 anos/maço) há 35 anos. Não sabe a situação de seu calendário vacinal. Possui uma alimentação hiperlipídica e hipercalórica, além de não fazer as refeições em horários regulados. Não tem costume de ingerir água, em média consumindo 02 copos de água por dia.

Paciente relata morar em casa pequena com sua irmã, com quem tem uma relação boa. Entretanto, afirma ter ficado receoso quando começou a adoecer, pois achou que a sua irmã o estava envenenando.

Antecedentes Familiares: Pai com saúde aparente, mãe com HAS, primo falecido devido à câncer (CA) não especificado, prima falecida decorrente de hemorragia digestiva alta (HDA).

Interrogatório Sistemático

Geral:

Afirma ter perdido 20 Kg em dois meses e meio.

Nega, adinamia, anorexia, fadiga, febre.

Pele e fâneros:

Pernas apresentam lesões crostosas descamativas pruriginosas sem sensibilidade no local.

Cabeça:

Nega cefaleia e tontura.

Boca e Garganta:

Relata disfagia, vide HMA.

Aparelho Respiratório (AR):

Nega dispneia, ortopenia e dispneia paroxística noturna.

Gastrintestinais:

Vide HMA.

Urinário:

Nega alteração na coloração da urina.

Sistema osteoarticular, muscular e vascular periférico (Extremidades):

Afirma ter dor nas costas em região de gradil costal esquerdo como consequência de uma queda no banheiro, não soube precisar o tempo.

Psiquiátrico:

Afirma ter dificuldades para dormir e faz uso contínuo de Diazepam para essa finalidade.

Exame físico

Dados vitais:

FC = 42 bpm

FR = 16 ipm

PA = 110/80 mmHg

Estado geral e pele:

Paciente em bom estado geral, lúcido e orientado no tempo e espaço. Humor animado, fáceis atípicas, acianótico, com mucosas hipocoradas (++/++++). Pele com coloração, temperatura e umidade normal, de espessura fina. Mobilidade, elasticidade e turgor preservados. Manchas e máculas hipercrômicas em tórax. Cicatriz na transição toraco-abdominal esquerdo. Apresenta lesões crostosas descamativas pruriginosas em ambos os membros inferiores, com perda de sensibilidade local. Pelos com distribuição, coloração e texturas normais. Unhas de forma, tamanho, cor e brilhos normais.

Cabeça e pescoço:

Crânio normocefálico/atraumático. Fios de cabelo de textura intermediária. Escleras ictéricas, conjuntivas hipocoradas. Auscuta Cardiovascular (ACV): Precórdio calmo. Ictus cordis não visível e palpável no 5º espaço intercostal esquerdo na linha médio clavicular, medindo dois centímetros, com amplitude e duração normais. Bulhas rítmicas e normofonéticas sem desdobramentos. Ausência de bulhas extras ou sopros.

Aparelho Respiratório:

Tórax simétrico, sem deformidades, sem lesões, com presença de cicatriz na junção toraco-abdominal esquerda. Paciente eupneico, ritmo respiratório normal, sem uso de musculatura acessória. Sem áreas de hipersensibilidade, expansibilidade preservada bilateralmente, FTV preservado bilateralmente, som claro pulmonar difuso à percussão, murmúrio vesicular bem distribuído, ausência de ruídos adventícios.

Exame do Abdome:

Abdome plano, cicatriz umbilical intrusa, ausência de circulação colateral. RHA preservados. Ausência de sopro em aorta abdominal, Aa. Renais, Aa. Ilíacas e Aa. Femorais. Timpânico à percussão. Sem sinais de ascite. Hepatimetria: 7 cm. Espaço de Traube livre. Abdome flácido e indolor à palpação superficial e doloroso à palpação profunda em quadrante superior esquerdo. Ausência de massas palpáveis. Fígado palpável, e não baço palpável. Sinal de Murphy ausente e sinal de Blomberg negativo. Rins não palpáveis e sinal de Giordano negativo.

Extremidades:

Membros inferiores sem edema, cianose ou varizes. Presença de lesões crostosas descamativas pruriginosas em ambos os membros inferiores.

Suspeitas diagnósticas

  • Disfagia Baixa
  • Síndrome Dispéptica
  • Síndrome Consumptiva
  • Lesões Dermatológicas

Exames complementares

Com base nos sintomas e nas suspeitas, foi solicitado uma endoscopia digestiva alta (EDA), hemograma, ferro, ferritina, dosagem de complexo B, ureia, creatinina, albumina, bilirrubina total e frações.

EDA: achado de uma massa em forma de cogumelo de 8,5cm.

  • Na biópsia: presença de carcinoma de células escamosas.

Diagnóstico

Em sua maioria, as neoplasias de esôfago são classificadas como carcinomas ou adenocarcinomas, sendo o carcinoma de células escamosas o tipo mais comum. Alguns fatores associados ao carcinoma de células escamosas do esôfago são: consumo excessivo de álcool ou cigarro, como vimos no caso, onde o paciente é ex-elitista, fez 03 internações para tratar alcoolismo, além de ser tabagista até os dias atuais.

De uma forma geral, as displasias do esôfago estão distribuídas da seguinte forma: 5% no terço superior (porção cervical), 20% no terço médio e 75% no terço distal. Sendo os sintomas iniciais voltados para uma disfagia progressiva, começa para sólidos, até o paciente se queixar da dificuldade de deglutição de líquidos, como foi visto no caso de Benjamin, com uma perda ponderal recente (20kg em 02 meses), a disfagia pode estar associada a uma odinofagia, dor que irradia para o tórax ou para o dorso e sintomas dispépticos, como também foram apresentados pelo nosso paciente.

Devemos ficar atentos para a disseminação para linfonodos, adjacentes e supraclaviculares, fígado, aparelho respiratório e ossos.

Como vimos acima, o paciente em questão apresentava lesões de pelagra, uma patologia que ocorre devido a uma hipovitaminose, que nesse caso pode estar ocorrendo devido a dificuldade de se alimentar do paciente, e/ou devido ao seu histórico de abuso do álcool.

Pacientes com câncer esofágico podem além da hipovitaminose, apresentar uma leve anemia, devido a problemas disabsortivos (muitas vezes o paciente não consegue comer, a depender do estágio, e decorrentes também de lesão celular) e consumptivos, por isso se faz necessário a análise do hemograma.

Discussão do caso de neoplasia do trato gastrointestinal superior

O carcinoma de esôfago é mais comum em homens que em mulheres, e mais prevalente na raça negra, como no caso do paciente em questão, sendo os etilistas e tabagistas um grupo de alto risco para o desenvolvimento dessa patologia. O paciente de nosso caso tinha um histórico de alcoolismo e de tabagismo (há 35 anos), que provavelmente foram fatores influenciadores para que este estivesse com um CA.

As principais manifestações da patologia em questão são: perda de peso significativo , anorexia e dificuldade progressiva para deglutir sólidos. Outros acometimentos podem levar há uma rouquidão ou perda da voz (compressão/acometimento laríngeo), fístula traqueo-esofágica e uma hipercalcemia decorrente de pseudo hiper-paratideoidismo).

A endoscopia digestiva alta com realização de biópsia vai denotar a presença de um carcinoma de células escamosas. Para realizar o estadiamento do tumor comumente são utilizadas a tomografia computadorizada (TC) e a ultrassonografia endoscópica.

Os tumores do esôfago, quando volumosos, costumam causar uma obstrução luminal, ou distensão, podendo acarretar em dor torácica e disfagia. Vamos lembrar que a queixa principal de nosso paciente era disfagia há 2 meses e meio, para líquidos e sólidos, ou seja, o tumor tinha volume suficiente para comprimir o esôfago, provocando essa dificuldade para deglutição que foi relatada.

Com relação às condutas terapêuticas nesses casos, como devemos proceder? Boa parte dos autores indicam a esofagectomia mais a linfadenectomia regional com margem de segurança de pelo menos 8 cm, nos casos de tumores de origem epitelial (tumores de células escamosas e adenocarcinomas). O tratamento cirúrgico é até o momento, o único que pode proporcionar a cura, podendo a cirurgia curativa ser tentada na ausência de metástases a distância, incluindo linfonodos a distância e de um T4 irressecavel. Pacientes com tumores T1 sem metástase (câncer de esôfago sem metatase) pode se optar pela ressecção endoscópica da lesão.

Nos casos de carcinoma de células escamosas pode-se tentar uma radioquimioterapia (5 – fluoracil + cisplatina + paclitaxel acompanhado de irradiação externa durante 6 a 7 semanas, sendo realizado 5 dias por semanas), pois essa tem evidências no aumento de sobrevida dos pacientes. A quimioterapia e a radioterapia não costumam ser feita de forma isoladas na abordagem neoadjuvante, pois não tem se mostrado eficientes no aumento da sobrevida do paciente.

Em casos onde não há a possibilidade de se realizar o tratamento cirúrgico, nos quais devemos adotar um tratamento de linha paliativa, no pacientes com um tumor que não há a possibilidade de se ressecar, pode-se fazer o uso de stents ou dilatadores esofágicos que vão permitir a reconstituição do transito esofágico por um período curto, mas que vão proporcionar um maior conforto e uma melhora da deglutição. Outra opção é a adoção de terapia fotodinâmica ou de radioterapia, que também proporcionam um alívio da disfagia em diversos pacientes durante um período mais longo. Nos casos mais avançados a gastrostomia ou jejunostomia são uma opção.

A equipe médica decidiu fazer terapia cirúrgica para tentar a ressecção tumoral do paciente, já que não havia sinal de metástase, e sendo que o tamanho do tumor (8,5 cm) era favorável.

Conclusão

Vamos revisar os pontos importantes do caso?

Sintomas do paciente:

  • Disfagia para líquidos e sólidos
  • Dispepsia
  • Perda de peso
  • Lesões dermatológicas sugestivas de pelagra devido a deficiência de absorção de vitaminas.

Como podemos perceber, o paciente está passando por uma síndrome dispéptica, e por uma disfagia, que estão impactando em sua alimentação e qualidade de vida, além de uma síndrome consumptiva com uma perda de peso estimada de 20 kg em 2 meses, todos sintomas e sinais que nos levam a crer na existência de um processo de malignidade.

Autores, revisores e orientadores

Liga: Liga Baiana de Habilidades Médicas – @libahm.unifacs

Autora: Carolina Torres – @carolina.t.a

Revisa: Luisa Lyra – @luisalyra

Orientador(a): Blener Mateus – @blenermateus

O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

Goldman Lee, et al. Cecil Medicina. 23ªth ed. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier; 2009. 1766 p. I vol. ISBN: 978-85-352-3677-4.

Jameson J. Larry, et al. Medicina Interna. 20ªth ed. Porto Alegre: AMGH; 2020. 1 e 2 vol. ISBN: 978-12-596-4403-0.